terça-feira, 3 de maio de 2011

F r i e d r i c h N i e t z s c h e

C R E P Ú S C U L O D O S Í D O L O S
(ou como filosofar com o martelo)


PREFÁCIO

Conservar a sua serenidade frente a algo sombrio, que requer responsabilidade além de toda medida, não é algo que exige pouca habilidade: e, no entanto, o que seria mais necessário do que a serenidade?

Nada chega efetivamente a vingar, sem que a altivez aí tome parte. Somente um excedente de força é demonstração de força. - Uma transvaloração de todos os valores, este ponto de interrogação tão negro,
tão monstruoso, que chega até mesmo a lançar sombras sobre quem o instaura - um tal destino de tarefa nos obriga a todo instante a correr para o sol, a sacudir de nós mesmos uma seriedade que se tomou pesada, por demais pesada. Qualquer meio para tanto é correto, qualquer "caso", um golpe de sorte.
Sobretudo a guerra. A guerra sempre foi a grande prudência de todos os espíritos que se tornaram por demais ensimesmados, por demais profundos; a força curadora está no próprio ferimento. Uma sentença, cuja origem mantenho oculta frente à curiosidade douta, tem sido há muito meu lema:
increscunt animi, virescit volnere virtus.1
Uma outra convalescença, que sob certas circunstâncias é para mim ainda mais desejável, consiste em auscultar os ídolos... Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é o meu "mau olhado" em relação a esse mundo, bem como meu "mau ouvido"... Há que se colocar aqui ao menos uma vez questões com o martelo, e, talvez, escutar como resposta aquele célebre som oco, que fala de vísceras intumescidas - que encanto para aquele que possui orelhas por detrás das orelhas! - para mim, velho psicólogo e caçador de ratos que precisa fazer falar em voz alta exatamente o que gostaria de permanecer em silêncio...
Também este escrito - o título o denuncia - é antes de tudo um repouso, um feixe de luz solar, uma escorregadela para o seio do ócio de um psicólogo. Talvez mesmo uma nova guerra? E novos ídolos são auscultados?.. Este pequeno escrito é uma grande declaração de guerra; e no que concerne à ausculta dos ídolos, é importante ressaltar que os que estão em jogo, os que são aqui tocados com o martelo como com um diapasão, não são os ídolos em voga, mas os eternos; - em última análise, não há e forma alguma ídolos mais antigos, mais convencidos, mais insuflados... Também não há de forma alguma ídolos mais ocos... Isto não impede, que eles sejam aqueles em que mais se acredita; diz-set ambém, sobretudo no caso mais nobre, : que eles não são de modo algum ídolos...
Turim, 30 de setembro de 1888, no dia em que chegou ao fim o primeiro livro da Transvaloração de todos os valores.
Friedrich Nietzsche

SENTENÇAS E SETAS
1.
O ócio é o começo de toda psicologia. Como? A psicologia seria um - vício?

2.
Mesmo o mais corajoso de nós poucas vezes tem coragem para o que propriamente sabe...

3.
Para viver sozinho, é preciso ser um animal ou um deus - diz Aristóteles. Falta ainda a terceira alternativa: é preciso ser os dois ao mesmo tempo - Filósofo... Os espíritos crescem e a virtude floresce, à medida que é ferida. (N.T.)

4.
"Toda verdade é simples (unívoca)". - Isto não é duplamente uma mentira?2 -

5.
De uma vez por todas, não quero saber muitas coisas. - A sabedoria também traz consigo os limites do conhecimento.

6.
É em nossa natureza selvagem que melhor nos restabelecemos de nosso movimento antinatural, de nossa espiritualidade...

7.
Como? O homem é apenas um erro de Deus? Ou Deus apenas um erro do homem? -

8.
Da Escola de Guerra da Vida - o que não me mata torna-me mais forte.

9.
Ajuda-te a ti mesmo: assim todos te ajudarão. Princípio do amor ao próximo.

10.
Que não se venha a cometer nenhuma covardia contra as próprias ações! Que não as abandonemos em seguida! O remorso é indecente.

11.
Um asno pode ser trágico? - Há como perecer sob um peso que não se pode nem carregar, nem lançar fora?... O caso do filósofo.

12.
Quando se possui o "por quê?" da vida, então se suporta quase todo "como?". - O homem não aspira à felicidade; somente o inglês o faz.

13.
O homem criou a mulher. A partir de que porém? De uma costela de seu Deus - de seu "Ideal"...


14.
O quê? Tu procuras? Tu gostarias de te decuplicar, de te centuplicar? Tu procuras adeptos? - Procuras zeros! -

15.
Os homens póstumos - eu, por exemplo - são pior compreendidos do que os homens ligados ao seu próprio tempo, mas melhor ouvidos. Mais exatamente: nunca somos compreendidos e é daí que provém nossa autoridade...

16.
Jogo de palavras praticamente intraduzível: o termo "simples" em alemão significa literalmente o que só possui um setor (ein-fach). Duplo por sua vez diz-se 'zwie-fach': o que possui dois setores. Para acompanhar minimamente o intuito do texto, inserimos o termo "unívoco" entre parênteses. Entre mulheres - "A verdade? Oh, vós não conheceis a verdade! Afinal, a verdade não é um atentado contra todos os nossos pudores?" -

17.
Eis aí um artista como aprecio: modesto em suas necessidades. Só quer efetivamente duas coisas: seu pão e sua arte, - panem et Circen3...

18.
Quem não sabe colocar sua vontade nas coisas ainda insere nelas ao menos um sentido: isto é, crê que uma vontade já esteja nelas (princípio da "fé").

19.
Como? Vós escolhesses a virtude e o peito estufado, mas olhais ao mesmo tempo invejosamente para as vantagens dos inescrupulosos? Com a virtude renuncia-se contudo às "vantagens"... (escrito na porta da casa de um anti-semita.)

20.
A mulher perfeita pratica a literatura como pratica um pecadilho: a título de experiência, de passagem, olhando em torno de si para ver se alguém a nota e a fim de que alguém a note...

21.
Não devemos nos inserir senão em situações nas quais não é permitido ter nenhuma virtude aparente; nas quais, como o funâmbulo sobre a sua corda, ou caímos ou nos mantemos - ou o que vier daí...

22.
"Homens maus não possuem canções". - Como acontece de os russos possuírem canções?

23.
"O Espírito Alemão": há dezoito anos uma contradictio in adjecto.

24.
À medida que buscamos as origens, vamos nos tornando caranguejos. O historiador olha para trás; até que finalmente também acredita para trás.

25.
A satisfação protege até mesmo contra resfriados. Uma mulher que se soubesse bem vestida teria alguma vez se resfriado? Trago à baila o caso em que ela quase não estava vestida.

26.
Desconfio de todos os sistemáticos e me afasto de seus caminhos. A vontade de sistema é uma falta de retidão.

27.
Considera-se a mulher profunda. - Por quê? Porque nela nunca se chega ao fundo. A mulher não é nem mesmo rasa.

28.
Pão e circo (Nota do Pirateador)
Quando a mulher possui virtudes masculinas, não nos resta senão nos evadirmos; e quando ela não possui nenhuma virtude masculina, ela mesma se evade.

29.
"Outrora, quanto a consciência tinha de morder? Que bons dentes ela possuía? E hoje? Quantos lhe faltam?" Pergunta de um dentista.

30.
Raramente cometemos uma única precipitação. Na primeira precipitação faz-se sempre demais. Exatamente por isso comete-se habitualmente ainda uma segunda. - Daí por diante faz-se então muito pouco...

31.
O verme se enconcha quando é chutado. Essa é a sua astúcia. Ele diminui com isso a probabilidade de ser novamente chutado. Na língua da moral: humildade. -

32.
Há um ódio à mentira e à dissimulação que nasce de uma apreensão sensível da honra. Há um ódio exatamente como esse que nasce da covardia, visto que a mentira é proibida por um mandamento divino. Covarde demais para mentir...

33.
Quão poucas coisas são necessárias para a felicidade! O som de uma gaita. - Sem música a vida seria um erro. O alemão imagina Deus cantando canções.

34.
On ne peut penser et écríre qu'assis4 (G. Flaubert). É assim que te pego, Niilista! A pachorra é justamente o pecado contra o Espírito Santo. Só os pensamentos que surgem em movimento têm valor.

35.
Há casos em que somos como cavalos, nós psicólogos, e permanecemos inquietos: vemos nossas próprias sombras oscilando diante de nós para cima e para baixo. O psicólogo precisa abstrair-se de si, a fim de que seja acima de tudo capaz de ver.

36.
Se nós imoralistas fazemos mal à virtude? Tão pouco quanto os anarquistas fazem mal aos príncipes. Somente depois de lhes ter alvejado é que estes se sentam firmemente em seus tronos. Moral: é preciso alvejar a moral.

37.
Tu corres à frente? Tu fazes isto como pastor? Ou como exceção? Um terceiro caso seria o desertor... Primeiro caso de consciência.

38.
Tu és autêntico? Ou apenas um ator? Um representante? Ou o próprio representado? Por fim, talvez tu não passes da imitação de um ator... Segundo caso de consciência.

39.
4 Só se pode pensar e escrever sentado. Fala o desiludido. Eu procurei por grandes homens, mas sempre encontrei apenas os macacos de seu ideal.

40.
Tu és alguém que observa? Ou que coloca as mãos à obra? - Ou que desvia o olhar e se põe de lado?... Terceiro caso de consciência.

41.
Tu queres acompanhar? Ou ir à frente? Ou ir por sua própria conta?... É preciso saber o que se quer e que se quer. Quarto caso de consciência.

42.
Estes eram degraus para mim. Servi-me deles para subir e precisei então passar por cima deles. Mas eles pensavam que queria aquietar-me sobre eles...

43.
O que importa que eu tenha razão?!?! Eu tenho por demais razão. E quem hoje ri melhor também ri por último.

44.
A fórmula de minha felicidade: um sim, um não, uma linha reta, uma meta...

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