terça-feira, 2 de março de 2010

Incidente em Antares

Olá alunos, abaixo, vcs encontrarão os primeiros capítulos do livro de Érico Verrissimo. Sucesso!Se quiserem o livro todo, digite o endereço abaixo, entre na pasta - 3 Ano - e copie. Sucesso!!!

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ERICO VERÍSSIMO INCIDENTE EM ANTARES

Copyright © 1971 by Erico Verissimo
Copyright © 1988 by Herdeiros de Erico Verissimo
Ilustração de capa: Iberê Camargo (detalhe)
Foto de Geraldo Viola / Arq. Editora Globo
Direitos mundiais de edição em língua portuguesa cedidos a
EDITORA GLOBO S.A.
Rua Domingos Sérgio dos Anjos, 277
CEP 05136-170 - Fax: (011) 864-0271, São Paulo, SP
Brasil

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Impressão e acabamento:
RR Donnelley & Sons Company - EUA

CIP-Brasil. Catalogaçào-na-fonte – Câmara Brasileira do livro, SP
Veríssimo, Erico, 1905-1975.
Incidente em Antares / Erico Verissimo. – 45ª ed. - São Paulo: Globo, 1995
ISBN 85-250-0590-8 1. Romance brasileiro I. Título 88-05189 CDD-869935
Índices para catalogo sistemático:
1. Romances: Século 20: Literatura brasileira 869-935
2. Século 20: Romances: Literatura brasileira 869.935

Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados pelos seus nomes verdadeiros.
(Nota do Autor)

primeira parte

ANTARES

I
Afirmam os entendidos que os ossos fósseis recentemente encontrados numa escavação feita em terras do município de Antares, na fronteira do Brasil com a Argentina, pertenciam a um gliptodonte, animal antediluviano, que, segundo as reconstituições gráficas da Paleontologia, era uma espécie de tatu gigante dotado duma carapaça inteiriça e fixa, mais ou menos do tamanho dum Volkswagen, afora o formidável rabo à feição de tacape ricado de espigões pontiagudos. Calcula-se que durante o Pleistoceno, isto é, há cerca de um milhão de anos, não só gliptodontes como também megatérios habitavam essa região diabásica da América do Sul, onde – só Deus sabe ao certo quando – veio a formar-se o rio hoje conhecido pelo nome de Uruguai. Ignora-se, todavia, em que época da Era Cenozóica surgiram naquela zona do Brasil meridional os primeiros espécimes do Homo sapiens. Tudo nos leva a crer, entretanto, que esse problema jamais tenha preocupado os antarenses. O que até hoje ainda os deixa ocasionalmente irritados é o fato de car-tógrafos, não só estrangeiros como também nacionais, n|o mencionarem nunca em seus mapas a cidade de Antares, como se São Borja fosse a única localidade digna de nota naquelas paragens do Alto Uruguai. De pouco ou nada têm servido os memoriais assinados pelo Prefeito Municipal, pelos membros da Câmara de Vereadores e por outras pessoas gradas e repetidamente dirigidos ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, protestando contra a acintosa omissão. O Pe. Gerôncio Albuquerque, quando ainda vigário da Matriz local, mais de uma vez encaminhou, mas em vão, idêntica reclamação ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, do qual era membro correspondente.
No entanto a verdade clara e pura é que, a despeito da má vontade ou da ignorância dos fazedores de cartas geográficas, a cidade de Antares, sede do município do mesmo nome, lá está, visível e concreta, à margem esquerda do grande rio.

O incidente que se vai narrar, e de que Antares foi teatro na sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963, tornou essa localidade conhecida e de certo modo famosa da noite para o dia – fama um tanto ambígua e efêmera, é verdade – não só no Estado do Rio Grande do Sul como também no resto do Brasil e mesmo através de todo o mundo civilizado. Entretanto, esse fato, ao que parece, não sensibilizou até agora geógrafos e cartógrafos.
Tão insólitos, lúridos e tétricos – e estes adjetivos foram catados no artigo alusivo àquele dia aziago, escrito pelo jornalista Lucas Faia para o seu diário A Verdade, porém jamais publicado, por motivos que oportunamente serão revelados – tão fantásticos foram esses acontecimentos, que o Pe. Gerôncio chegou a exclamar, dentro de seu templo, que aquilo era o começo do Juízo Final. Nesse momento de susto e angústia coletiva, um cético gaiato, desses que costumam menosprezar a terra onde nasceram e vivem, murmurou: “A troco de quê Deus havia de começar o Juízo Final logo neste cafundó onde Judas perdeu as botas?”
Bem, mas não convém antecipar fatos nem ditos. Melhor será contar primeiro, de maneira tão sucinta e imparcial quanto possível, a história de Antares e de seus habitantes, para que se possa ter uma idéia mais clara do palco, do cenário e principalmente das personagens principais, bem como da comparsaxia, desse drama talvez inédito nos anais da espécie humana.

II
O mais antigo documento escrito que se conhece referente ao lugar onde mais tarde viria a ser fundada essa comunidade da região missioneira do Rio Grande do Sul, encontra-se no livro do naturalista francês Gaston Gontran d’Auberville, intitulado Voyage Pittoresque au Sud du Brésil (1830-1831). Escreveu o ilustre cientista em seu diário de viagem :
24 de abril. – Cruzamos esta manhã o Rio Uruguai, numa balsa, e entramos em território do Brasil. Estes campos verdes, duma beleza idílica, lembram os da nossa Provence. Aqui as pastagens são boas e o gado bovino, abundante. Os primeiros homens que encontramos, tanto os brancos como os índios, me olham com uma curiosidade meio desconfiada, que acho justificável, pois devem estranhar a minha indumentária, o meu aspecto físico e principalmente a minha bagagem: as gaiolas em que trago os pássaros vivos que apanhei no Paraguai e na Argentina, e os sacos e caixas cheios das plantas e pedras que venho colecionando desde o momento em que pisei terras do Novo Mundo.
Cerca das dez horas da manhã, chegamos a um lugarejo pertencente à comarca de São Borja e conhecido como Povinho da Caveira, formado por uma escassa dúzia de ranchos pobres, perto da barranca do rio. A pouca distância deles, situa-se a casa do proprietário destas terras, que me recebeu com certa cortesia. E um homem ainda jovem, de compleição robusta, cabelos e barbas castanhos e pele clara. Tem um ar autoritário, costuma falar muito alto, parece habituado a dar ordens e a ser obedecido. Chama-se Francisco Vacariano, nome provavelmente derivado da palavra “vaca” e que não me parece legítimo, mas adotado. A casa da estância de gado do Sr. Vacariano é apenas um rancho maior que os outros da povoação. Comunico-me com esse senhor no meu -precário espanhol, e ele me responde na mesma língua mas usando, uma vez que outra, palavras portuguesas.
Almoçamos ao meio-dia e o estancieiro nos serviu, numa grande marmita de ferro, pedaços de carne seca (aqui chamada “charque”) com farinha de mandioca, tudo misturado com gordura animal. O Sr. Vacariano imaginava que eu era uma espécie de mascate. Ficou desapontado quando verificou que eu não trazia tabaco, açúcar nem sal, gêneros de que carece no momento. Expliquei-lhe que sou um cientista e o meu hospedeiro pareceu não me dar crédito, pois acha impossível que um homem empreenda uma tão longa e penosa viagem apenas para apanhar bichos e juntar plantas e pedras.
Percebi que o Sr. Vacariano não confia nos “homens do outro lado do rio” nem parece gostar deles. Tal coisa não é para estranhar-se, se levarmos em conta que recentemente o Brasil esteve envolvido numa guerra com a Argentina pela posse da chamada Banda Oriental.
O meu guia, que é um homem loquaz e grande conhecedor desta região e desta gente, duma margem e outra do rio, assegurou-me que o meu hospedeiro não só herdou as sesmarias que a Coroa de Portugal concedeu ao seu avô, no início do povoamento desta província, como também se apossou pela força de algumas léguas de campo -pertencentes a outros estancieiros vizinhos, que pôs em fuga, sob ameaças. Contou-me ainda o dito guia que boa parte do rebanho de gado que o Sr. Vacariano hoje possui é formado de descendentes dos bois e vacas que o seu pai roubou na Argentina, aproveitando a confusão de tempos de desordens e lutas intestinos no país vizinho. O guia me pediu discrição absoluta, quanto a essas informações, pois, ao que diz, o Sr. Vacariano é um homem violento e vingativo.
Fui informado de que os índios deste pouoado pensam que sou um feiticeiro, e que o capataz do meu hospedeiro está convencido de que não passo de um bispo disfarçado que aqui veio, a mandado do Papa, para estudar a possibilidade do restabelecimento das reduções jesuíticas que outro-ra floresceram nesta região. O que, porém, mais me perturbou foram as palavras que o próprio Sr. Vacariano pronunciou, ao fim de nosso almoço. Reproduzo-as aqui, verbatim: “Sabe o que fiz com o último lotador de impostos que apareceu nestas terras’! Mandei matá-lo e atirei seu corpo no rio”. Felizmente, depois dessa ameaça soltou uma risada, deu-me uma palmada cordial nas costas e declarou que era um homem de boa-fé e portanto acreditava em que eu era mesmo um colecionador de plantas e passarinhos, pois “cada louco tem a sua mania”.
Passei a tarde herborizando nos arredores do povoado. A hora de recolher, o Sr. Vacariano prometeu proporcionar-me, ao amanhecer do dia seguinte, “um espetáculo inesquecível”.
Passei a noite quase sem dormir, por causa dos mosquitos.

III
25 de abril. – Antes do nascer do sol montamos a cavalo, meu hospedeiro e eu, e nos dirigimos para uma várzea, a uma escassa légua de sua estância, e apeamos perto dum bosque, onde ficamos à espera do clarear do dia. Quando o sol apareceu, vi diante de mim uma planície pantanosa cheia duma grande variedade de aves aquáticas. Mal consegui esconder o meu pasmo e o meu júbilo, pois aquilo se me afigurava o sonho dourado dum naturalista. No primeiro relance, pude perceber ali graciosas garças, íbis, grous, galinhas-d’agua, patos, narcejas, alguns exemplares dum pássaro que, à distância, me pareceu do gênero Francoli-nus, mas dum tamanho acima do comum. Tive im.pe.tos de correr na direção daquele congresso de aves e apanhar as que pudesse, mas o Sr. Vacariano me segurou o braço, di-zendo-me que esperasse, pois havia “algo e spedar que me queria mostrar. Pouco depois apontou para uma árvore des-folhada, a uns vinte metros de onde estávamos, e eu vi, em-poleirada num dos seus galhos, uma garça dum alvor de neve, de linhas elegantes, e que em dado momento voltou a cabeça na direção do sol nascente, perfilou-se, esticou o longo pescoço e soltou um assobio prolongado, duma suavidade indescritível, a um tempo bucólico e triste, lembrando o pífaro dum pastor. Era como se a ave estivesse cantando um hino ao dia nascente. Numa espécie de transe, eu pensava nas belezas que a imaginação criadora e dadivosa de Deus espalhou pelo universo, quando o Sr. Vacariano me disse que os índios chamavam àquela garça “flauta do sol”. (Tratava-se evidentemente de um exemplar da Ardea cyanoce-phala.)
Voltamos para a estância e durante o resto do dia colhi exemplares de gramináceas e solanáceas e outras plantas que encontrei naqueles prados paradisíacos. O meu hospedeiro pareceu ter simpatizado comigo, pois quando lhe pedi emprestadas duas juntas de bois, para substituir os animais cansados que haviam puxado nossa carreta até ali, ele acedeu prontamente ao vieu pedido.
A noite, depois do jantar, saímos ambos a caminhar nos arredores da casa da estância. Como para lhe pagar pelo formoso espetáculo da manhã, localizei no céu a constelação de Escorpião, que no hemisfério austral começa a aparecer no horizonte, a leste, depois de 15 de abril, mostrei ao Sr. Vacariano a bela estrela chamada Antares, e disse-lhe que, embora não parecesse, ela era maior do que o Sol. O meu hospedeiro olhou para a estrela em silêncio e mais tarde, quando chegamos a casa, murmurou: “Antares.... Bonito nome. Para mim quer dizer ‘lugar onde existem muitas antas’, bem como nestas terras perto do rio”. Pediu-me que escrevesse essa palavra, o que fiz, num pedacinho de papel, para o qual o Sr. Vacariano ficou olhando durante algum tempo, murmurando: “Bonito nome para um povoado... melhor que Povinho da Caveira”. Depois, guardando o papel no bolso, sorriu com seus fortes dentes de carnívoro e acrescentou: “Mas não acredito que essa estrela seja mesmo maior que o Sol”.

IV
Outro documento, pouquíssimo conhecido mas também importante, sobre o que se poderia chamar de pré-história de Antares é uma carta escrita pelo P.« Juan Bautista Otero, S. J., ao provincial de sua ordem, em Buenos Aires. Conta o missionário nessa missiva, datada de 4 de dezembro de 1832, que cruzou o Rio Uruguai e chegou ao Povinho da Caveira onde pediu e obteve permissão do dono daquelas terras, um certo Sr. Francisco Bacariano (sic) para fazer casamentos e batizados. Eis um trecho da referida carta:
Aqui vivem muitos índios e índias em estado de indi-gência e, o que é ainda pior, em pecaminosa mancebia. Por outro lado, a ausência de mulheres da raça branca neste aldeamento leva os homens de origem portuguesa a servirem-se dessas indígenas para a satisfação de sua luxúria. O próprio Sr. Bacariano, segundo me informou pessoa digna de fé, é pai de quase uma dezena de filhos naturais com várias destas süvícolas, mas não os batiza nem legitima. Horroriza-me a idéia de que um dia quando adultas, essas criaturas venham, sem o saber, a cometer incesto. Este é, porém, um problema que por ora temos de deixar nas mãos misericordiosas de Deus. Assim, nestes últimos três dias tenho celebrado muitos casamentos e batizado grande número de pagãos, não só crianças como também adultos. Ontem, domingo, rezei uma missa ao ar livre, com apreciável concorrência. O Sr. Bacariano não me parece ter muito respeito pela nossa religião ou por qualquer outra, mas apesar disso me tem tratado com consideração e até facilitado o meu trabalho apostolar. Perguntei-lhe, com o devido respeito, se não pretendia casar-se, e ele me respondeu que, dentro de poucos meses, iria a Alegrete para contrair núpcias com uma moça, de nome Angélica, filha dum abastado estancieiro daquela localidade.

V
Que esse casamento se realizou, é fato fora de dúvida, pois seu registro se encontra nos velhos livros da Matriz de Alegrete.
Chico Vacariano teve com sua esposa legítima ao todo sete descendentes-, entre homens e mulheres. Para grande alegria sua, nasceu-lhe primeiro um filho macho, que recebeu o nome de Antônio Maria.
Um ano após o nascimento do primogênito, teve Francisco Vacariano de enfrentar um longo período de dificuldades e agruras, durante o qual se viu mais de uma vez na iminência de perder suas terras, seu gado e o resto de seus bens. Foi por ocasião da chamada Guerra dos Farrapos deflagrada por milhares de homens daquela província que se 3rgueram em armas contra o governo imperial, então nas mãos dum Regente, pois o príncipe Dom Pedro, herdeiro do trono, não atingira ainda a maioridade.
Francisco Vacariano jamais tomou uma posição definida nessa luta. Se por um lado estava convencido da justiça da causa revolucionária, por outro o fato de os rebeldes haverem proclamado a República do Piratini lhe causava um certo desagrado, que ele exprimiu à sua mulher nestas palavras: “Um imperador é uma espécie de pai que a gente tem. Numa república me parece que todo o mundo fica meio órfão...”.
Assim, Chico Vacariano – como mais tarde viria a dizer com malícia um de seus inimigos – tratou de “jogar com pau de dois bicos”. Abrigava altemadamente em suas terras ora tropas revolucionárias ora tropas legalistas. Atendeu as requisições de cavalos, gado e mantimentos que lhe faziam ambas as facções. De resto, como poderia dizer “não” a maiorias armadas?
O que muito o favoreceu nesse jogo dùplice foi o fato de o Povinho da Caveira ser uma localidade de difícil acesso, pouco lembrada pela revolução e completamente esquecida pelo resto do mundo. Mesmo assim, duma feita Chico Vacariano e seus familiares tiveram de cruzar o rio às pressas, refugiando-se durante mais de um ano na Argentina.
A guerra civil durou quase um decênio inteiro. Vacariano costumava dizer que aquela campanha era a principal responsável pelos seus primeiros cabelos brancos e pelas precoces rugas que lhe vincavam a face. Terminada definitivamente a luta, Chico voltou ao pago, reconstruiu a sua casa, que na sua ausência quase virará tapera, e tratou de refazer aos poucos o seu rebanho bovino e recuperar o seu prestígio pessoal naquela região. O tratado de paz entre os Farrapos e os Imperiais tinha sido firmado com tanta dignidade e patriotismo, de ambas as partes, que duma simples leitura de seus termos não se poderia deduzir quem tinha sido o vencedor e quem o vencido.
Nunca ninguém perguntou a Chico Vacariano, pelo menos cara a cara, de que lado havia ele pelejado durante a guerra civil. E esse foi um assunto que o senhor de Povinho da Caveira sempre evitou pelo resto de sua vida natural.
O Povinho foi elevado a vila por alvará de 25 de maio de 1853, data em que recebeu oficialmente o nome de An-tares. Pouca gente entendeu a razão dessa mudança ou o sentido da nova denominação. Muitos, como Chico Vacariano, imaginavam que Antares significava “lugar das antas”. Houve até quem pensasse tratar-se do nome de um general brasileiro, herói de alguma daquelas muitas guerras contra os castelhanos.
Durante mais de dez anos Francisco Vacariano – como havia já acontecido desde 1829 no primitivo Povinho – foi a autoridade suprema e inconteste na vila. Nem mesmo o governo provincial tentava intervir na vida daquela pequena comunidade ribeirinha, que ainda fazia parte do município de São Borja.

VI
No verão de 1860 chegou ao conhecimento de Chico Vacariano que um certo Anacleto Campolargo, criador de gado e homem de posses, natural de Uruguaiana, ia comprar terras nas proximidades de Antares. Murmurava-se que esses Campolargos eram descendentes por linha reta dum tropeiro paulista que entrara um dia numa furna do cerro do Jarau – talvez na famosa Salamanca da antiga lenda – encontrando lá um fabuloso tesouro, pois de outro modo ninguém podia explicar como um modesto negociante de mulas andasse sempre com a sua guaiaca cheia de onças de ouro, rutilantes como sóis.
Mesmo sem jamais ter visto a cara de Anacleto Campolargo, o senhor de Antares fez o possível para que a transação não se consumasse. “Não quero intrusos por aqui!” – dizia. Ora, essas terras que Campolargo queria adquirir pertenciam a um chefe político de São Borja, homem influente, amigo íntimo do governador da província. Chico Vacariano não teve outro remédio senão “engolir o sapo”, segundo uma expressão sua.
Consumada a transação, Anacleto Campolargo mandou logo construir uma grande residência de alvenaria em Antares, na praça do Império, naquele tempo pouco mais que um potreiro onde cavalos e vacas pastavam.
A primeira vez em que Chico Vacariano e Anacleto Campolargo se defrontaram nessa praça, os homens que por ali se encontravam tiveram a impressão de que os dois estancieiros iam bater-se num duelo mortal. Foi um momento de trepidante expectativa. Os dois homens estacaram de repente, frente a frente, olharam-se, mediram-se da cabeça aos pés, e foi ódio à primeira vista. Chegaram ambos a levar a mão à cintura, como para arrancar as adagas. Nesse exato momento o vigário surgiu à porta da igreja, exclamando: “Não! Pelo amor de Deus! Não!”
Nenhum dos dois potentados parecia amar a Deus e muito menos ao vigário. Contiveram-se, porém, cada qual uma secreta razão particular, e depois retomaram ambos seu caminho, seguindo em sentidos opostos.
Foi assim que entre as duas dinastias antarenses, a dos Vacarianos e a dos Campolargos, começou uma feroz rivalidade, que deveria durar quase sete decênios, com períodos de maior ou menor intensidade, ao sabor de acontecimentos de ordem política, econômica ou puramente pessoal.

VII
Pouco a pouco Anacleto Campolargo foi conquistando amigos e impondo-se ao respeito e à estima de boa parte da população antarense. Era o primeiro homem na história daquela comunidade que ousava enfrentar o “Chico Vaca” – como lhe chamavam pelas costas os seus desafetos. Agressivo, opiniático, autoritário, o patriarca do clã dos Vacarianos era um sujeito sem tato. Suas palavras em geral soavam como chicotadas. O maioral dos Campolargos, porém, sinuoso e macio, cultivava o murmúrio, sabia “manipular” suas emoções e modular o tom da voz de acordo com a sua conveniência e os seus propósitos. Tinha um ar paternal, freqüentemente chamava o interlocutor de “meu filho”, se estava diante dum jovem, ou de “meu chefe”, se falava com um ancião. (“Já provou deste fumo? Não? É especial. Tem palha? Pois faça um crioulo. Pode ficar com esse naco. Ora, obrigado por quê?”)
Homem de algumas letras, Anacleto Campolargo organizou na vila o Partido Conservador, o que bastou para que Chico Vacariano, até então um tanto indiferente em matéria de política, tratasse de organizar o Partido Liberal.
Assim, Antares passou a ter dois senhores igualmente poderosos. Era exatamente essa igualdade de forças que impedia as duas facções de se empenharem em batalhas campais de extermínio. Continuando uma velha tradição, nas missas de domingo e dias santos, os conservadores sentavam-se nos bancos da direita, à frente do altar-mor, e os liberais nos da esquerda. Em seus sermões, pregados com voz trêmula, o vigário fazia acrobacias de retórica para não dizer nada que pudesse, mesmo de leve, descontentar qualquer dos dois grupos. Quando alguém lhe perguntava em particular para qual dos dois proceres antarenses inclinavam-se as suas simpatias, o pároco sussurrava, olhando dum lado para outro, a medo-, “Deus é o meu único chefe e a Igreja a minha única política”. Neutralidade, entretanto, era uma palavra inexistente no vocabulário político e social de An-tares. O forasteiro que ali chegasse, mesmo para uma visita breve, era praticamente obrigado a tomar logo partido.
Tanto os Campolargos como os Vacarianos eram criadores de gado e de cavalos. Foi, porém, o velho Anacleto o primeiro que começou a criação de ovelhas naqueles campos. Chico Vaca havia muito possuía lavouras de trigo, li-nho e arroz, razão por que era o mais rico senhor de escravos em toda a região.

VIII
Quando o Brasil entrou em guerra com o Paraguai, Vacarianos e Campolargos enrolaram os seus estandartes tribais e, à sombra da bandeira do Império, lutaram juntos contra a “indiada de Solano Lopes”. Chico Vacariano queixou-se-. “Só não me agrada é que desta vez temos castelhanos peleando de nosso lado”. Referia-se às forças da Argentina e da República Oriental do Uruguai, que haviam formado com o Brasil a Tríplice Aliança, para enfrentar o temível ditador paraguaio.
Como Anacleto e Francisco tivessem já passado da idade militar, cada um deles mandou dois de seus filhos alistarem-se como Voluntários da Pátria.
A guerra durou de 1865 a 1870. Foram tempos de tristeza, apreensões e durezas para os habitantes de Antares. Só depois que a campanha terminou é que chegou à vila a notícia de que Antônio Maria, o primogênito de Chico Va-cariano, havia tombado morto na batalha de Lomas Valen-tinas. Os dois Campolargos voltaram vivos mas estropiados. Benjamim, o mais velho, que havia perdido um olho num combate corpo a corpo, trazia as divisas de major e uma medalha militar. Seu irmão Gaudêncio tivera de amputar um braço. Antão Vacariano, que deixara a mão esquerda enterrada em solo paraguaio, voltara feito coronel e também condecorado por atos de bravura.
Foram esses três antarenses recebidos em sua terra com honras de heróis. Cada qual contava as suas estórias da campanha – algumas horripilantes, outras pitorescas e até jocosas. Num ponto, porém, Benjamim Campolargo e Antão Vacariano discordavam. É que cada um deles reclamava para si a dúbia glória de ter matado com um pontaço de lança o ditador Solano Lopes, na batalha de Cerro-Corá. A História, porém, desmentiu ambos.

IX
Graças aos bons ofícios e ao prestígio político de Ana-cleto Campolargo, amigo de figurões do governo da província, Antares foi separada de São Borja e elevada à categoria de cidade e sede de município, por Lei Provincial de 15 de maio de 1878. Ora, esse fora sempre um dos projetos mais caros a Chico Vacariano, agora já próximo dos oitenta anos. A idéia, porém, de que tudo se tinha conseguido por obra exclusiva de seu maior inimigo, deixou-o de tal maneira abalado que, uma semana antes de começarem os festejos com que se celebraria o grande evento, Chico Vaca caiu morto, fulminado pelo que um médico de São Borja diagnosticou como um “ataque de cabeça dos brabos”. Num gesto cavalheiresco, Anacleto transferiu os festejos para dezembro daquele ano, e até mandou em nome da família Cam-polargo uma coroa de flores para o defunto. Os Vacarianos recv saram a homenagem, vendo no gesto um intolerável “debique”.
Dezembro chegou, a cidade preparava-se para as grandes comemorações quando se espalhou a notícia de que o velho Campolargo, que estava na estância, fora picado por uma jararaca, tendo morrido em menos de meia hora, apesar das benzeduras de suas negras velhas e das ervas e un-güentos de seu curandeiro bugre.
Assim, quando entrou o ano de 1879, os dois grandes clãs de Antares tinham à sua frente novos chefes. Benjamim, o caolho, era o patriarca dos Campolargos e Antão, o maneta, o maioral dos Vacarianos – dois quarentões na força da vida. Ambos haviam jurado em silêncio, junto aos cadáveres paternos, continuar aquela luta de família até ao fim do Tempo.

X
Quando, anos mais tarde, a Princesa Isabel assinou o decreto em que se abolia a escravatura no Brasil, Antão Va-cariano disse a seus familiares que esse “ato de loucura” ia precipitar o fim do Império. Foi com relutância que, pelo menos formalmente, liberou seus escravos. Ora, Benjamim Campolargo, que havia alguns anos fundara o Grêmio Republicano de Antares, exultou com a notícia da Abolição, e mais tarde soltou vivas e foguetes ao saber que a República fora finalmente proclamada no Brasil.
Durante dias Antares esteve em pé de guerra. Mulheres e crianças foram proibidas de sair à rua. Na praça trocaram-se insultos e tiros. As vidraças do prédio do Grêmio Republicano foram partidas a pedradas e balaços por monarquistas enraivecidos. Um petardo explodiu contra a porta da residência dos Vacarianos. Houve cabeças quebradas e outros ferimentos corporais, leves uns, graves outros; morte, porém, nenhuma.
Fosse como fosse, o Império havia caído e os Vacaria-nos não tiveram outro remédio senão resignar-se. E, como faziam sempre que sofriam algum revés, fecharam a casa da cidade e refugiaram-se na estância, onde curtiram a sua vergonha, o seu despeito e o seu rancor. Antão verteu às escondidas algumas lágrimas quando soube que os republicanos haviam mandado o velho imperador para o exílio. “Este país está perdido!” – disse aos membros de sua família. – “O remédio agora é esperar a hora de fazer uma revolução e reconduzir o Velho ao trono.” Xisto, o primeiro Vacariano na ordem de sucessão, resmungou: “Essa república não se agüenta nas pernas. Dizem que o barulho já começou no Rio de Janeiro”.
Em 1890 a Matriz de Antares, cuja construção tinha sido iniciada havia vinte anos, foi inaugurada por ocasião da Festa do Divino Espírito Santo. Benjamim Campolargo, Imperador Festeiro, mandou carnear seis de suas reses para dar churrasco ao povo, organizou uma quermesse e fez queimar fogos de artifício vindos da capital do Estado.
Os Vacarianos, que tinham prometido dar um sino de bronze para o novo templo, recusaram cumprir a promessa. Quando o vigário timidamente os interpelou, alegando que a Igreja nada tinha a ver com a política, Antão retrucou truculento: “Padre, nesse assunto nem Deus pode se dar o luxo de ser neutro!”

XI
Os historiadores de Antares, que não são muitos, até hoje temem lembrar certos “fatos desagradáveis” da crônica desse município. Num ponto, porém, parecem todos de acordo. A revolução federalista, que irrompeu em 1893, foi sem a menor dúvida o mais cruel e sangrento período da luta hereditária entre as duas famílias antarenses rivais. Antão Vacariano e seus irmãos, filhos, cunhados e sobrinhos, partidários apaixonados do famoso tribuno do Império, Gaspar da Silveira Martins, tomaram o lado dos revolucionários e, num golpe de surpresa, apossaram-se de Antares. Os Cam-polargos, porém, não tardaram a reagir e, ajudados por forças republicanas vindas de São Borja, retomaram a cidade. O combate travou-se ao anoitecer. A tropa dos Vacarianos retirou-se, com algumas baixas, e em desordem. Antão, que tinha ficado para trás comandando uma dúzia de companheiros numa operação de retaguarda, para proteger a fuga do grosso de sua força, foi feito prisioneiro. Trazido à presença de Benjamim Campolargo, trocou com este palavras e frases virulentas. O comandante vencedor, porém, recobrou a calma e disse:
– Sou um homem de bem. Respeito o direito dos prisioneiros de guerra. Vou poupar a sua vida, apesar de todas as barbaridades que você e seus bandidos praticaram enquanto estavam de donos da cidade.
Antão Vacariano encarou firme o adversário e replicou :
– Não peço nem aceito favor de nenhum caolho filho da puta! Me soltem, me devolvam a minha adaga e venham de um a um, que eu mostro quem é macho e quem não é.
Benjamim sacudiu a cabeça e soltou a sua risadinha gutural.
– Não sou prevalecido. Não brigo com maneta. Como única resposta Antão escarrou-lhe na cara. E
neste ponto as versões divergem. Afirmam alguns cronistas que, cego de ódio, Benjamim tirou sua faca da bainha, precipitou-se sobre o inimigo e sangrou-o ali mesmo. Outros dizem que mandou um de seus homens degolar o prisioneiro mais tarde, a frio. A verdade é que Antão Vacariano foi assassinado naquela noite, e seu corpo, envolto num lençol, enterrado no cemitério local, numa sepultura rasa e sem marca.

XII
A vingança dos Vacarianos não tardou. Meses depois, as forças federalistas, comandadas por Xisto, retomaram Antares e conseguiram prender Terézio, o mais novo dos Campolargos.
Xisto mandou reunir na praça os homens da cidade e ordenou que mulheres e crianças ficassem fechadas em suas casas. De mãos amarradas às costas, Terézio foi trazido à sua presença, em meio de grave silêncio. Ao redor dos dois adversários agrupavam-se aqueles guerreiros barbudos, sujos, suados e alguns até com a pele e as vestes ensangüentadas do último combate.
– É do conhecimento geral – bradou Xisto Vacariano – que os Campolargos assassinaram covardemente o meu mano Antão, que não teve nem o consolo de morrer como homem, peleando de arma na mão. Foi miseravelmente sangrado como um boi no matadouro. Pois agora chegou a nossa hora. Este Campolargo vai pagar pelos crimes do seu irmão e de todos os cachorros sarnentos de sua raça maldita!
Terézio estava livido. Mal moveu os lábios quando disse:
– Guerra é guerra. Não peço clemência.
– Não pedes nem te dou, corno filho duma grã-puta! Seguiu-se uma cena digna do pincel e da imaginação
dum Hieronymus Bosch. Xisto mandou amarrar o prisioneiro pelas pernas e pendurá-lo no galho duma árvore, com a cabeça a poucos centímetros do solo. Depois acercou-se de sua vítima, empunhando um grande funil de lata, cujo longo bico lhe enfiou às cegas no ânus, profundamente. Com a cara contraída de dor e vergonha, Terézio cerrou os dentes mas não deixou escapar o menor gemido.
Nenhum daqueles homens parecia saber ao certo o que Xisto pretendia fazer. Um deles cochichou ao ouvido dum companheiro: “Acho que o coronel vai dar uma lavagem de Pimenta e mostarda nesse ‘pica-pau’”.
Os planos de Xisto, porém, eram mais terríveis. Todos compreenderam o que ele ia fazer quando gritou: “Tragam o tempero pra salada!” e dois de seus homens, vindos do quintal do casarão dos Vacarianos, aproximaram-se, conduzindo com todo o cuidado, para não se queimarem, uma grande chaleira de ferro cheia de azeite em ebulição.
O céu estava azul e limpo. Uma brisa de primavera boba nas folhas das árvores e nas rosas de todo o ano que cobriam a cerca, ao lado da residência, agora deserta, dos Campolargos. Havia um grande silêncio na praça ensolarada.
Xisto murmurou: “Sabes o que vou te fazer, sacri-panta? Te incendiar as tripas”. A uma ordem sua, os dois homens começaram a despejar lentamente no funil todo o conteúdo da chaleira. Terézio Campolargo soltou um urro e começou a estrebuchar.
Apenas um homem, de todos quantos assistiam à cena, soltou uma risada. Os outros se mantiveram num silêncio taciturno. Romualdo, o mais moço dos Vacarianos, acercou-se do chefe da família e protestou: “Mas isso é uma barbaridade, mano!” Sem desviar o olhar da vítima, que continuava a berrar e espernear como um porco que está sendo sangrado, replicou: “Precisas aprender a lidar com o inimigo, menino. Se a coisa te faz mal ao estômago, toma um chàzinho de erva-doce e vai pra casa te deitar”.
A agonia de Terézio foi de curta duração. Quando suas convulsões cessaram, Xisto olhou para o céu, aliviado. Vieram contar-lhe então que o vigário, que estava na igreja, rezando, lhe pedia o corpo do jovem Campolargo para a encomendação e o sepultamento. Xisto sacudiu negativamente a cabeça. “Encomendar pra quê? Se esse ‘pica-pau’ tinha mesmo alma, a esta hora ela já entrou nos quintos do inferno.” Disse isto, voltou as costas para o cadáver e tornou à sua casa, onde o esperava um assado de paleta de ovelha, que ele comeu com a tranqüilidade dum justo.

XIII
Seis meses mais tarde os Campolargos retomaram An-tares num ataque de surpresa, à noite. Os Vacarianos retiraram-se com a sua tropa, deixando para trás, mortos ou feridos, vários companheiros. E quando, horas depois do combate, Xisto conseguiu reunir os seus homens no topo duma coxilha e começou a chamar pelos irmãos, deu pela falta de Romualdo e ficou frio. “Quem é que viu o Romualdo por último?” Ninguém se lembrava. Xisto deu-o por perdido, encolheu os ombros e pensou: na guerra como na guerra...
Mais tarde ficou-se sabendo que Romualdo na hora do inesperado ataque dos “pica-paus” estava na cama com uma china e, não tendo tempo de fugir, fora capturado.
Benjamim Campolargo esfregou as mãos num contentamento frenético. Tinha chegado a desejada hora de vingar a morte de Terézio.
No dia seguinte, por volta das oito da manhã (era já outono, dia frio e triste, céu cor de pêlo de capivara) Benjamim tratou de saber do vigário em que árvore seu irmão havia sido torturado. O padre deu-lhe a informação, mas disse: “Por tudo quanto existe de mais sagrado na vida, pelo amor de sua mãe e de seu falecido pai, eu lhe suplico que não sacrifique esse moço. Não foi ele quem matou o Terézio”.
Benjamim sorriu: “Padre” – disse ele com brandura – “eu lhe juro por Deus Nosso Senhor que não vou matar o Romualdo”. O sacerdote arregalou os olhos, surpreso. “Jura mesmo?” O outro ergueu a voz: “Juro! Aqui na frente dos meus companheiros! Pela honra da minha mãe, da minha mulher e das minhas irmãs, juro que vou soltar o moço, e vivo!” O vigário ficou pensativo, incrédulo ainda, mas nada disse. Lavou simbolicamente as mãos e voltou para a igreja.
Romualdo Vacariano foi trazido à presença de Benjamim Campolargo, que exclamou: “Tirem toda a roupa desse sujeitinho!” Três de seus homens obedeceram à ordem. “As botas também... Bom. Agora amarrem ele na mesma árvore onde penduraram o meu irmão. Assim não! Com a barriga contra o tronco, as pernas abertas... Isso!”
Um círculo duns cento e poucos homens formava uma espécie de muro ao redor da árvore. Como no dia da tortura e morte de Terézio, todas as mulheres e crianças tinham sido fechadas nas suas casas. Os companheiros entreolha-vam-se, sem saber ao certo o que seu chefe ia fazer. Benjamim chamou um dos seus companheiros, um negro alto e corpulento, e lhe disse:
– Elesbão, você é quem vai fazer o serviço no moço. O preto levou a mão à faca. Era um exímio degolador.
Benjamim sacudiu negativamente a cabeça.
– Não. O instrumento não é esse, mas o que você tem entre as pernas.
Elesbão não entendeu imediatamente o que o seu comandante queria. Quando compreendeu, murmurou, constrangido :
– Ora, coronel, eu nunca fiz dessas coisas.
– Mas vai fazet agora. E uma ordem.
– Por que logo eu?
– Porque sim.
– Aqui na frente de todo o mundo?
– É exatamente isso que eu quero: testemunhas. Elesbão olhou para o homem nu e depois para o seu comandante :
– Me prenda, coronel, me rebaixe de posto, mas uma coisa dessas eu não faço. Degolar é diferente...
Num átimo Benjamim examinou mentalmente a difícil conjuntura. Por um lado não podia ser desautorizado na frente dos seus próprios comandados; por outro, não queria castigar e talvez perder um companheiro do valor do Elesbão. Quem’ salvou a situação foi um caboclo parrudo e mal-encarado, o Polidoro, contumaz barranqueador de éguas, que se apresentou voluntário para executar a tarefa.
– Está bem – disse o chefe Campolargo. – Está na mesa. Sirva-se.
E o caboclo violentou Romualdo. Uns três ou quatro homens soltaram risadinhas. Outros, porém – a maioria – retiraram-se do local para não assistirem à cena degradante. Um capitão bigodudo chegou a gritar: “Isso não se faz a um macho, coronel! Por que não mata logo o miserável?” Benjamim, que saboreava o espetáculo, não deu a menor atenção ao protesto.
Consumado o ato, gritou: “Agora soltem a moça!” Dois soldados desamarraram Romualdo, que deu alguns passos, cambaleante, como se estivesse bêbedo, a cara aparvalhada. De repente soltou um urro, como um animal ferido de morte e, nu como estava, saiu a correr na direção do rio, atirou-se no chão, no alto da barranca, e rolou declive abaixo, até cair nágua. Pôs-se a nadar, e, a uns trinta metros da margem, deixou-se afundar. Seu corpo jamais foi encontrado.
Depois desses atos de violência e perversidade ninguém podia sequer imaginar que fosse um dia possível para Va-carianos e Campolargos voltarem a viver na mesma cidade. Terminada a revolução, com a vitória dos republicanos, Xisto Vacariano emigrou com todo o seu clã para a Argentina, onde permaneceu por dois anos. Durante essa longa ausência, um amigo seu, homem de bem e neutro em política, tomou conta da estância e dos outros negócios dos Vacarianos e, com o auxílio de amigos influentes, conseguiu evitar que os Campolargos se apossassem discriciona-riamente dos bens móveis, imóveis e semoventes de seus velhos adversários.

XIV
Em 1898 Xisto Vacariano’tomou um vapor em Buenos Aires e viajou até ao Rio de Janeiro onde – conta-se – se avistou com o senador Pinheiro Machado, figura prestigiosa da política nacional. Eram velhos conhecidos. Havia alguns anos, o prócer republicano hospedara-se na estância dos vacarianos e, à hora do jantar – conversa vai, conversa vem —, acabaram descobrindo que Pinheiro Machado, que ?e alistara com apenas dezesseis anos como Voluntário da ratria, durante a Guerra do Paraguai, havia servido no regimento de que Xisto Vacariano era oficial. Comemoraram a descoberta bebendo vinho do Porto e Xisto deu de presente ao futuro senador da República um de seus cavalos de purosangue e um par de estribos de prata feitos na Bélgica.
Xisto valia-se agora desta amizade para tentar resolver a sua situação e a de toda a sua família. Pinheiro Machado escutou-o com atenção e prometeu “amansar” os Campolar-gos, pelos quais – confessou – não morria de amores, apesar de eles serem seus correligionários. Mandou uma carta a Júlio de Castilhos – então Presidente do Estado – explicando-lhe a situação e pedindo a sua intercessão no assunto. Castilhos escreveu a Benjamim Campolargo reco-mendando-lhe fizesse “vista grossa” ao reaparecimento dos seus inimigos Vacarianos em Antares.
Benjamim levou alguns dias para “digerir” essa carta. Respondeu, porém, a ela declarando que faria como seu “prezado chefe e amigo” pedia. Tinha antes escrito ordenava mas passou a carta a limpo para trocar o verbo. Assim os Vacarianos foram voltando pouco a pouco para Antares. com todos os membros de suas famílias.
Naquelas primeiras semanas após a volta dos proscritos (termo usado por um jornalista republicano local) não só a população de Antares como a própria cidade – casas, muros, calçadas, plantas, pedras – pareciam viver em estado de extrema tensão, na expectativa do primeiro encontro físico entre um Campolargo e um Vacariano.
Xisto e Benjamim defrontaram-se uma tarde à frente do Grêmio Republicano. O primeiro pigarreou forte. O outro fuzilou o inimigo com um olhar de seu único olho válido. Nada disseram nem fizeram. Cada qual seguiu seu caminho e Antares e os antarenses respiraram desoprimidos.

XV
Antares celebrou com grandes festas a entrada do século xx. Armou-se no centro da praça um carrossel, de propriedade dum espanhol residente em Uruguaiana. À tarde houve Cavalhadas e à noite quermesse. Acenderam-se fogueiras onde se assaram batatas-doces e lingüiças. Num grande tablado erguido à frente da Matriz, houve danças a noite inteira, ao som de músicas tocadas pelos melhores san-foneiros da cidade e redondezas. À meia-noite em ponto o sino da igreja rompeu a badalar festivamente, homens davam tiros de pistola para o ar, foguetes de lágrimas espocavam nas alturas, derramando sobre os telhados e o rio chuveiros de estrelas multicores. Homens, mulheres e crianças abraçavam-se gritando, chorando e rindo. Benjamim Campolar go, que assistia à festa da sacada de sua residência, desce« para a praça e confraternizou com o povo. Sentou-se con. a esposa à cabeceira duma mesa de cinqüenta metros de comprimento, ali ao ar livre, e deu início à grande ceia – carne de gado, ovelha e porco, galinhas e patos assados, pratarraços de arroz de carreteiro e, no firn, sobremesas feitas pelas melhores doceiras da cidade. E, a todas essas, dê-lhe vinho, dê-lhe cachaça, dê-lhe cerveja...
Os Vacarianos, esses celebraram o grande acontecimento em família, sem se misturarem com “a canalha republicana”.
A pessoa escolhida pelo intendente para falar em nome da municipalidade – um professor – saudou o século xx como a era da Luz e do Progresso, a qual, “mercê das novas invenções e descobertas do saber humano, haverá de proporcionar aos povos de todas as nações do Universo uma vida de conforto, fartara e harmonia, como nunca na História da Humanidade”.
Já quase ao clarear do dia, intoxicados de bebidas alcoólicas, dois machos do clã dos Campolargos – primos-irmãos ainda na casa dos vinte – estranharam-se, trocaram primeiro palavrões, depois bofetadas e finalmente facadas. Um deles recebeu um pontaço de faca no ventre (superficial) e o outro deixou no chão da praça um naco de seu braço esquerdo. O velho Benjamim teve de intervir pessoalmente, ajudado por dois irmãos, para evitar que o conflito se generalizasse num “pega pra capar” desastroso.
Ao saber do incidente, no dia seguinte, Xisto Vacaria-no sorriu e disse: “Começou bem pra nós esse tal de século xx”.

XVI
A esta altura da presente narrativa é natural que o leitor esteja inclinado a perguntar se não existiam em Antares homens de bem e de paz, com comportamento e sentimentos cristãos. A pergunta é pertinente e a resposta, sem a menor dúvida, afirmativa. Havia, sim, e muitos. Desgraçadamente seus ditos, feitos e gestos não foram recolhidos pela história oficial. Apenas uns poucos deles incorporaram-se à tradição oral da cidade e do municipio-, os restantes perderam-se para sempre no olvido.
Os livros escolares, cujo objetivo é ensinar-nos a história da nossa terra e do nosso povo, são em geral escritos num espírito maniqueísta, seguindo as clássicas antíteses – os bons e os maus, os heróis e os covardes, os santos e os bandidos.
Via de regra, não se empregam nesses compêndios as cores intermediárias, pois os seus autores parecem desconhecer a virtude dos matizes e o truismo de que a História não pode ser escrita apenas em preto e branco.
Por motivos puramente de economia de espaço – uma vez que o objetivo desta narrativa é tecer um sumário pano de fundo histórico contra o qual apresentar oportunamente os macabros eventos daquela sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963 – estas páginas lamentavelmente têm seguido o espírito dos citados livros escolares, focando de preferência as duas grandes oligarquias que em Antares, durante cerca de setenta anos, disputaram o predomínio político, social e econômico. Ficaram assim na penumbra do segundo, do terceiro e do último plano todos aqueles que – para usar duma expressão de Spengler – não “fazem” mas “sofrem” a História, a saber: estancieiros menores, agricultores de minifúndios, membros das profissões liberais e do magistério e ministério públicos, funcionários do governo, comerciantes, artesãos e por fim essa massamorda humana composta de párias – brancos, caboclos, mulatos, pretos, curibocas, mamelucos – gente sem profissão certa, changadores, índios vagos, mendigos, “gentinha” molambenta e descalça, que vivia num plano mais vegetal ou animal do que humano, e cuja situação era em geral aceita pelos privilegiados como parte duma ordem natural, dum ato divino irrevogável.

XVII
Tinha razão o editorialista do semanário A Verdade (fundado em 1902) quando escreveu que o Progresso se aproximava de Antares com botas de sete léguas. Nos tempos em que a localidade era ainda conhecida pelo nome de Povinho da Caveira, Chico Vacariano, seu fundador, sempre que tinha de mandar um recado, verbal ou escrito, a uma pessoa que morasse longe, valia-se dum portador, dum “chas-que”, dum “próprio”. Em fins do século xix, Antares gozava já dos benefícios e facilidades do telégrafo, isso para não falar no serviço postal.
Estradas de ferro ligavam muitas cidades do Rio Grande do Sul umas às outras, e o apito de suas locomotivas assustava os bichos do campo e do mato, ao mesmo tempo que a fumaça de suas chaminés sujava aqueles ares puros. Não parecia otimismo exagerado esperar-se que dentro duns dez anos, no máximo, seus trilhos fossem estendidos até a Antares. Agora, na primeira década do novo século, surgia o telefone, que Xisto Vacariano afirmava ter sido inventado por Dom Pedro II, com a colaboração dum mecânico norte-americano, seu amigo particular. O primeiro a instalar na sua casa um desses aparelhos foi Benjamim Campolargo, que corria sempre na dianteira de seu rival, em matéria de empreendimentos progressistas.
Os “próprios” e os “chasques” continuavam ativos e uteis. As mulheres, as crianças e os velhos usavam como veículos de transporte a aranha, a diligência e outras carruagens de tração animal. Carretas ainda rechinavam, ronceiras puxadas por bois lerdos, através daquelas campinas. Os antarenses em sua maioria achavam – e nisso não eram diferentes de outros campeiros do Rio Grande do Sul – que o único meio de locomoção digno dum homem macho continuava a ser o cavalo. Em certos casos tinha-se a impressão de que esse animal era um prolongamento do corpo do cavaleiro, assim como a pistola ou o revólver faziam já parte da sua anatomia.
Quando se instalou em Antares a primeira usina elétrica, Xisto Vacariano, sentado à cabeceira de sua mesa à hora do jantar, disse aos filhos: “No Povinho, o avô de vocês vivia muito bem se alumiando com lâmpada de óleo de peixe e vela de sebo. A máquina mais complicada que ele conhecia era o monjolo. Pra mim, lampião de querosene ou acetilene já é luxo demais. Ninguém me convence de mandar botar na minha casa a tal de luz elétrica. Dizem que esse negócio dá choque, pode até matar uma pessoa”.
Quando, no inverno de 1912, o intendente mandou instalar luz elétrica nas ruas da cidade, o velho Eusébio Reis, que durante mais de vinte e cinco anos exercera sozinho as funções de acendedor de lampiões, caiu numa tão grande depressão nervosa, que numa madrugada de julho enforcou-se num dos postes da iluminação moderna, e seu corpo amanheceu hirto, coberto de geada, balançando-se dum lado para outro, sacudido pelo vento gelado que soprava das bandas dos Andes.
Para surpresa geral, foi um Vacariano quem, em 1911, trouxe para Antares o primeiro automóvel, um Oldsmobile, que mandara vir de Buenos Aires. Depois de aprender a dirigir o veículo, um dos seus maiores prazeres era passear nele, de tolda arriada, pela cidade, apertando provocadora-mente na buzina de fonfom sempre que passava pela frente do solar dos Campolargos. Estes não tardaram em mandar buscar da Alemanha um automóvel Benz.

XVIII
Como o Dr. Júlio de Castilhos estivesse seriamente enfermo, o bacharel em Direito Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, que havia sido seu chefe de polícia, sucedera-o em 1898 como Presidente do Estado, bem como no de chefe do Partido Republicano gaúcho. Castilhos faleceu em 1903, durante a operação de garganta a que fora submetido. Benjamim Campolargo, acompanhado de dois de seus filhos, embarcou às pressas para Porto Alegre, a fim de assistir às exéquias de seu chefe e amigo. Chegou tarde, mas aproveitou a oportunidade para visitar o Dr. Borges de Medeiros, que ainda não conhecia pessoalmente. Achou-o seco, formal mas digno. Ouviu, de várias pessoas importantes da capital, os maiores elogios ao caráter do presidente. Ninguém mais probo, ninguém mais justo, ninguém mais sábio – dizia-se. “Um verdadeiro varão de Plutarco” – afirmavam os edítorialístas de A Federação, o órgão oficial do Partido Republicano Rio-Grandense. Benjamim Campolargo, graças talvez a uma autovacina, voltou para Antares incontami-nado pelas virtudes morais de seu chefe. Continuou a perseguir a oposição, a coagir juizes, promotores e jurados. Governava despoticamente o município de Antares, onde os maragatos eram minoria. Tornou-se assim, como tantos outros chefes políticos municipais do Rio Grande do Sul, uma espécie de “príncipe eleitor”. Reeleito em 1903, 1913 e 1918, Borges de Medeiros exerceu durante vinte anos a sua “ditadura científica” de inspiração positivista, fechado no palácio do governo e quase divinizado como um Lama do Tibete.
Sem recursos humanos para enfrentar seus inimigos crônicos, os Vacarianos agora competiam com eles em outros terrenos que não o da política. Todos os fins de ano, quando se tratava de eleger uma nova diretoria para o Clube Comercial, a mais fina sociedade local, havia sempre uma chapa apresentada pelos Campolargos, a oficial, e outra pelos Vacarianos. O pleito era precedido de propaganda, cabala, pressões de toda sorte, e até de suborno. No dia da eleição os eleitores compareciam à sede do clube armados de punhais e revólveres, e era raro o ano em que não houvesse bate-boca, troca de insultos, de bofetadas e até de tiros.
Desde 1915 o futebol – “o salutar esporte bretão”, segundo um redator de A Verdade – tornara-se popular em Antares. Os Campolargos haviam fundado o Esportivo Mis-sioneiro e os Vacarianos favoreciam o Fronteira F. C. Não se tem notícia duma partida entre esses dois adversários que não haja terminado sem luta corporal entre seus torcedores, isso para não falar nas trocas de caneladas e pe-chadas entre os jogadores, em disputa da bola. Conta-se a seguinte estória, que parece ter sido já incorporada ao folclore futebolístico gaúcho. O Fronteira e o Missioneiro defrontavam-se numa partida decisiva de campeonato, o jogo aproximava-se do final e nenhuma das duas esquadras conseguira ainda marcar um ponto sequer. No último minuto do jogo, Pollito, atacante do Missioneiro – um argentino “contrabandeado” do outro lado do rio, a peso de ouro – driblou quase toda a defesa do Fronteira e ia na certa marcar um tento quando um Vacariano bombachudo que estava ali por perto saltou rápido para dentro do gramado, rebolou no ar o seu laço e pealou o castelhano, que caiu de costas, batendo com a nuca no chão. O goleiro do Fronteira saltou para agarrar a bola, mas um dos Campolargos alvejou-a com um tiro de revólver, e o balão se desinflou com um longo suspiro nas mãos do keeper, que soltou um berro de horror. O público invadiu o campo e então começou uma verdadeira batalha campal que durou mais de meia hora, pois soldados da polícia municipal, chamados para impor a paz, acabaram tomando partido e participando do entrevero.

XIX
A Primeira Guerra Mundial chegou a Antares principalmente através das páginas róseas do Correio do Povo. Pela primeira vez em mais de cinqüenta anos Campolargos e Vacarianos encontravam-se por assim dizer do mesmo lado, na mesma trincheira, alvejando simbolicamente um inimigo comum, os boches. Xisto e Benjamim admiravam a França, detestavam a Alemanha e consideravam o Kaiser um bandido desalmado, um bárbaro. Papagaiando frases de jornais e folhetos de propaganda, ambos afirmavam que os
Aliados deviam a qualquer preço “salvar a Civilização das garras sanguinárias dos hunos”.
A década de 20 trouxe para Antares muito progresso, tanto de ordem material como intelectual. Durante esse pós-guerra, o ritmo de construções de casas particulares acelerou-se. Os Vacarianos reformaram o seu casarão – “uma simples meia-sola”, disseram os seus desafetos. Os Campolargos construíram um sólido palacete de dois andares.
Em 1924 uma firma norte-americana instalou um frigorífico nos arredores da cidade – o que levou o editorialista do diário local a afirmar que Antares, até então um município exclusivamente agropastoril, começava auspiciosamente a industrializar-se.
O telégrafo, o cinema, os jornais e revistas que vinham de fora, a estrada de ferro e, depois de 1925, o rádio – contribuíram decisivamente para aproximar o mundo de Antares ou vice-versa. Forasteiros também muito faziam pelo progresso social e cultural da cidade: magistrados, promotores públicos, funcionários do governo estadual e federal, caixeiros-viajantes... Era, porém, de lamentar que Antares não possuísse, como São Borja, uma guarnição militar federal, um batalhão que fosse.
Em 1925 os Vacarianos haviam comprado o primeiro sedan Chrysler que jamais sentou suas rodas nas ruas de Antares. Numa espécie de esperada represália, os Campolargos não tardaram a adquirir na Argentina um Studeba-ker preto que, na opinião de seus rivais, tinha o aspecto dum carro fúnebre.
Foi também nesse ano de 1925 que a polícia descobriu e prendeu o primeiro comunista da história de Antares, um certo Mário Pinho, um tipògrafo, natural de Santiago do Boqueirão, homem pálido e triste que se gabava de ter lido de fio a pavio, em tradução espanhola, O Capital de Karl Marx. O agente do “olho de Moscou” passou um mês na cadeia e, depois de solto, mudou-se para Santa Maria.
Nos bailes do Clube Comercial moças e rapazes das Melhores famílias locais dançavam o charleston, sob o olhar crítico das matronas. Num sarau de arte, no solar dos Cam-polargos, um forasteiro recitou versos modernos – que ninguém entendeu – de Oswald e Mário de Andrade. Antares, pois, atualizava-se, integrando-se na Era do jazz.

XX
Em 1923 os partidários do Dr. Assis Brasil – aliança de maragatos com dissidentes do Partido Republicano – haviam feito a sua revolução, protestando contra mais uma reeleição do Dr. Borges de Medeiros, confirmada pela Assembléia estadual, mas considerada pela oposição uma farsa fraudulenta, pois o candidato oficial republicano – alegavam seus inimigos – não obtivera os três quartos da votação total exigidos nesse caso pela Constituição.
Xisto V acariano a princípio pensara em ficar sossegado em sua estância (não tinha muita simpatia pessoal por Assis Brasil), mas como lhe tivesse chegado aos ouvidos o rumor de que Benjamim Campolargo ia mandar prender todos os Vacarianos machos, decidiu “ir para a coxílha” com os filhos, irmãos, genros, netos, sobrinhos, amigos, peões e demais cumpinchas: cento e vinte homens ao todo. Embora já na quadra dos oitenta, Xisto mantinha-se ainda ereto em cima do cavalo, e sentia-se apto para enfrentar mais uma campanha em sua vida. Assim, os Vacarianos se juntaram às forças de Honório Lemes. Evidenciara-se desde o primeiro momento da revolução que o número de combatentes republicanos era consideravelmente maior e mais bem armado que o dos “bandoleiros”, pois o governo estadual, além de seus partidários civis que formavam as tropas irregulares, contava também com o apoio da sua Brigada Militar, força bem armada e aguerrida.
O velho Vacariano explicava aos seus comandados: “O Gen. Honório tem razão. O plano não é dar combate de frente aos ‘chimangos’, mas negacear, atacar de surpresa, fugir na hora do aperto e voltar depois quando menos nos esperarem. O nosso chefe conhece a Serra do Caverà como a palma de suas mãos. O inimigo não ousa atacar o homem no chão dele. Assim, vamos embromando esses borgistas para provocar uma intervenção federal. O Presidente da República não gosta do Borjoca. Está louco pra meter sua cucharra na nossa panela”.
Não se teve notícia de nenhum combate, nem mesmo duma escaramuça passageira, entre os guerreiros dos Vacarianos e os dos Campolargos.
A intervenção federal foi finalmente feita no Rio Grande do Sul e dela resultou um tratado de paz. Benjamim Campolargo cantou vitória, mas Xisto Vacariano disse: “Bobagem desse caolho caduco! Quem ganhou a parada fomos nós. Com meia dúzia de espingardas descalibradas, revólveres enferrujados e lanças de guajuvira, os assisistas conseguiram o que queriam: esse tratado que reforma a Constituição do Estado, que os castilhistas consideravam intocável, e proíbe a reeleição do Chimango!”

segunda-feira, 1 de março de 2010

capítulos 20 a 47

XXI
Em meados da década de ‘20 várias mudanças eram já visíveis e audíveis no modo de vida tanto dos Campolargos como dos Vacarianos. No começo do século, membros das gerações mais novas dessas duas poderosas famílias tinham sido mandados estudar em Porto Alegre. Muitos voltaram para casa depois de terminado pelo menos o curso ginasial, e alguns obtiveram até diplomas de doutor em Direito, Medicina ou Engenharia, embora poucos deles chegassem a exercer essas profissões. Fos%e como fosse, todos traziam para Antares uma visão mais larga do mundo e da vida, e uns poucos podiam até ser considerados, se não intelectuais, pelo menos “intelectualizados”. Haviam adquirido 0 hábito da leitura, da música, do teatro e alguns deles – pouquíssimos, é verdade – compravam pinturas para pendurar nas paredes de suas residências, nas quais até então só se viam tristes retratos de antepassados mortos, com solenes molduras douradas.
Um jovem Campolargo de maneiras civilizadas chegou a publicar no jornal da terra um poema de sua autoria. (O velho Vacariano leu-o em voz alta e comentou, seco e certo: “Esse menino é fresco”.)
Em maio de 1926 causou os comentários mais desencontrados na cidade a notícia de que o herdeiro do trono dos Campolargos, Zózimo, tinha embarcado para Buenos Aires com sua esposa e prima-irmã Quitéria, para assistirem a alguns espetáculos da temporada lírica do Teatro Colón.
Até fins do século anterior os Vacarianos e os Campolargos haviam cultivado deliberadamente a endogamia, não com a finalidade de manter a pureza de suas estirpes, mas por motivos práticos, principalmente de ordem econômica. Queriam evitar, no caso das heranças, não só a divisão das terras do clã como também complicações nos inventários. Esses casamentos entre primos e primas – quase sempre sem amor e nem mesmo desejo – eram não raro ajustados pelos pais dos jovens, em concílios familiares. Com raras exceções, finda a minguada lua-de-mel, a mulher ficava em casa a engordar, a ter filhos e a cuidar (ou não) deles, ao passo que o marido passava boa parte da noite no Clube Comercial, jogando pôquer, ou na casa da amante, com a qual, continuando uma tradição centenária, também tinha filhos, que não reconhecia legalmente. O advogado que, por morte dum Vacariano ou dum Campolargo, ousasse apresentar-se como patrono dum filho natural do falecido, arriscava levar um tiro ou uma surra exemplar.
Durante a segunda década do novo século, porém, membros de outras famílias locais e até mesmo forasteiros, haviam começado a entrar nas cidadelas dos Vacarianos e dos Campolargos, pela porta do casamento. O velho Benjamim observava alarmado a tendência das novas gerações de sua tribo a produzir mais rebentos do sexo feminino que do masculino. Quando ele morresse, Zózimo – filho que lhe nascera quando ele tinha já 56 anos – ocuparia o seu lugar. Mas... e depois? Seu sucessor tinha apenas quatro filhas. Era o diacho. E o olho legítimo de Benjamim Campolargo entristecia quando ele pensava nessas coisas.
Tanto ele como Xisto relutavam em aceitar a idéia de que já não eram os senhores absolutos e discricionários dentro de seus feudos. As gerações novas rebelavam-se contra as idéias dos seus maiores em matéria de costumes e rituais domésticos. Chegavam a criticar, por antiquados, os seus métodos de trabalho campeiro, vejam só aonde chegamos!
Assim, ao findar a década de ‘20 os dois senhores de Antares pareciam-se um pouco com os gliptodontes e os me-gatérios no fim do Pleistoceno, isto é, eram dois representantes de espécies animais em processo de extinção. Mas, como é de se supor tenha acontecido com os monstros ante-diluvianos, Xisto e Benjamim não pareciam ter consciência de seu drama.

XXII
A revolução militar irrompida em São Paulo, em 1924, contra o governo do Presidente Artur Bernardes, ecoou no Rio Grande do Sul em localidades muito próximas a Antares, como São Borja, São Luís e Santo Ângelo, onde se revoltaram respectivamente dois regimentos de cavalaria e um batalhão ferroviário, este último sob o comando dum capitão de Engenharia, Luís Carlos Prestes. O velho Campolar-go chegou a organizar um corpo de voluntários para defender a sua cidade, caso ela fosse atacada. Como, porém, os insurgentes de Prestes, depois de darem combate às forças legalistas, abandonaram o Estado, rumo de Catanduvas, onde deviam reunir-se aos rebeldes de São Paulo – Antares foi poupada aos desastres de mais uma guerra, e sua população continuou a viver a vidinha de sempre.
Um dia, no princípio do verão de 1925, apareceu sorrateiro em Antares um membro da prestigiosa família Vargas, de São Borja. Chamava-se Getúlio, tinha quarenta e dois anos de idade, era bacharel em Direito e ocupava então uma cadeira de deputado na Câmara Federal, como representante do Partido Republicano de seu Estado. Homem sereno, de feições e maneiras agradáveis, sabia usar a cabeça com lúcida frieza e possuía qualidades carismáticas ainda não de todo reveladas plena e publicamente. Dizia pouco mas perguntava muito. Frio, solerte, sabia jogar com dois fatores importantes na vida: o tempo e as fraquezas humanas.
Usou de artimanhas tais, que naquele dia conseguiu reunir Xisto Vacariano e Benjamim Campolargo na casa dum amigo comum, homem apolitico e geralmente benquis-to na cidade.
Quando os dois sátrapas locais deram pela coisa, estavam já frente a frente, fechados a chave com o Dr. Getúlio numa sala de visitas que o calor de janeiro transformava num forno aceso, com a colaboração de cortinas de veludo, guardanapos de croche e tapetes felpudos. Um ventilador girava e zumbia, inócuo, em cima duma mesinha com tampo de mármore, ao lado dum vaso de alabastro com flores artificiais.
Os dois velhos inimigos naturalmente não se apertaram as mãos e nem sequer rosnaram a menor palavra um para o outro. Estavam ambos meio desarvorados. Aquilo então era coisa que se fizesse? Olhavam para Getúlio Vargas com uma expressão de censura em que se mesclavam surpresa e zanga. O deputado de São Borja, abrindo o seu sorriso mais sedutor, de excelentes dentes, convidou-os a sentarem-se, perguntando-lhes se queriam beber alguma coisa gelada. Nenhum dos dois queria. Sentaram-se com uma certa relutância pesada, cada qual na sua poltrona, separados por três metros de tapete. Getúlio Vargas acendeu com pachorra o seu charuto e por alguns instantes permaneceu silencioso a olhar, de um para outro, os dois velhos, como um árbitro que, no meio da arena, prepara-se para anunciar ao público a luta de boxe que se vai travar entre dois campeões de peso-pesado.
– Perdoem-me pela “traição” – disse ele. – Quando os fins são bons, às vezes temos de fechar os olhos à natureza dos meios. Foi essa a única maneira que encontrei para juntar numa mesma sala dois antigos adversários pessoais e políticos.
Fez uma pausa pontuada por baforadas da fumaça do charuto e pôs-se a andar dum lado para outro.
– Estou aqui a mandado de meu pai. O velho Manuel me fez portador dum pedido ao senhor, Cel. Xisto, e ao senhor, Cel. Benjamim. Os amigos hão de concordar em que os tempos estão mudando. O mundo se encontra diante da porteira duma nova Era. Essas rivalidades entre maragatos e republicanos serão um dia coisas do passado. Precisamos pacificar definitivamente o Rio Grande para podermos enfrentar unidos o que vem por aí...
Nenhum dos dois chefes antarenses perguntou o que era que vinha por aí. Mantiveram-se silenciosos e emburra-dos, bufando de calor. Getúlio ergueu a cabeça e soltou uma baforada de fumaça na direção do lustre de vidrilhos que pendia do centro do teto. Benjamim – que, por insistência de seus familiares, consentira em usar um olho de vidro para substituir o que perdera na Guerra do Paraguai – com o olho natural fit iva obsessivamente a escarradeira de louça pintada que tinha a seus pés. Xisto tamborilava nervosamente com os dedos de ambas as mãos nos braços da poltrona, enquanto seus lábios murchos e arroxeados se pre-gueavam, deixando escapar uma espécie de assobio que não passava duma ventosidade sem melodia.
– Pois o velho Manuel apela para os senhores – tornou a falar o emissário de São Borja – para que façam as pazes, apertem-se as mãos, esqueçam as diferenças e os agravos do passado e daqui por diante trabalhem juntos pelo progresso e pela grandeza de nossa terra. Não há nenhum desdouro nessa reconciliação, cuja iniciativa não partiu de nenhum dos prezados amigos aqui presentes. Foi um vizinho, um republicano, que se lembrou disso, com a melhor das intenções. Se não quiserem fazer as pazes em atenção ao meu pai ou a mim, reconciliem-se então pelo amor ao Rio Grande.
Getúlio continuou a falar sem ênfase oratória, macio e persuasivo. O Rio Grande estava destinado a cumprir no Brasil uma grande missão em prol da unidade nacional. Para isso, entretanto, era preciso primeiro recuperar a sua hegemonia política perdida após o assassinio do Senador Pinheiro Machado.

XXIII
Não passou despercebido ao jovem deputado o efeito mágico produzido pelo nome de Pinheiro Machado no Cel. Xisto, que, ao ouvi-lo, pigarreou enquanto a pàlpebra de seu olho esquerdo tremia nervosamente.
– Quem governa o Brasil – prosseguiu Getúlio – são ora os mineiros ora os paulistas, a famosa fórmula “café com leite”. – Soltou uma risada. – Não é justo que o chimarrão tenha também a sua vez?
Falou durante mais dez minutos, concluindo assim:
– Pois agora me digam sinceramente que é que ganham sendo inimigos? Quem perde é Antares e o Rio Grande. – Voltou-se para Xisto Vacariano. – Autorizo ao senhor, coronel, a dizer publicamente, a quem quiser, que foi meu pai, que fui eu, dois republicanos, que o procuraram para fazer esta proposta de paz. Que me diz, Cel. Benjamim?
O maioral dos Campolargos parecia ainda hipnotizado pela escarradeira. Finalmente ergueu o olho bom para o “moço de São Borja” e murmurou: “Pôs é...”, vago mas já meio inclinado ao sim. O cacique dos Vacarianos, que até então estiverà sentado meio de lado, mexeu-se na poltrona e transferiu o peso do busto para o outro hemisfério das nádegas, e seu assobio sem música foi substituído por uma espécie de prolongado ronco, que tanto podia ser um princípio de assentimento como o rosnar do cachorro prestes a morder. Getúlio tornou a fazer um apelo:
– Vamos, apertem-se as mãos! O que passou, passou. Os dois anciãos levantaram-se com certa má vontade, aproximaram-se um do outro com passos arrastados e lentos e, sem se olharem cara a cara, trocaram o simulacro dum aperto de mãos. Getúlio então abraçou-os a ambos, agradeceu-lhes e felicitou-os pelo gesto, em seu nome e no de seu pai.
Seguiu-se um momento de constrangido silêncio em que nenhum dos dois adversários crônicos parecia querer ser o primeiro a dirigir a palavra ao outro. Por fim o Cel. Campolargo, fazendo um esforço sobre si mesmo, olhou enviesado para Xisto e murmurou:
– Como vai a sua patroa?
Apanhado de surpresa, pois havia mais de sessenta anos que não trocava uma palavra sequer com aquele Campolargo, Xisto ficou meio estonteado, como se tivesse sido abruptamente agredido pelo outro. Mas, recompondo-se, respondeu automaticamente:
– Bem. E a sua?
– Ué... morreu o ano passado. Não sabia? Benjamim encabulou. Tinha esquecido o óbito por completo.
– Desculpe! Meus pêsames. Getúlio Vargas interveio:
– Bom, vamos agora ao “tratado de paz”. Acho necessário, indispensável mesmo, que mandemos publicar não só no jornal local, como também no Correio do Povo, no Diário do Interior de Santa Maria e no Correio do Sul de Bagé uma declaração conjunta, assinada por ambos os amigos, explicando ao eleitorado do Rio Grande o motivo e o sentido desta reconciliação. – Levou a mão ao bolso interno do casaco. – Tenho aqui um manifesto já preparado. Vou ler para ver se os amigos estão de acordo com os seus termos ...

XXIV
Momentos depois os dois velhos estavam em suas respectivas casas. Vacariano refletia, desapontado: “Acho que deixei me embrulhar por aquele deputadinho de borra”. Deu à família reunida para ouvi-lo a sua versão do encontro. Afirmou que tinha relutado muito, imposto condições, deixado bem claro que aquilo “não era casamento”, e que ele continuava a ser federalista, corno sempre.
Benjamim Campolargo não estava de todo descontente com o acordo que firmara. Getúlio Vargas bem podia ser o homem já escolhido pelo Dr. Borges de Medeiros para substituí-lo no governo do Estado. Talvez ele, Benjamim, tivesse acabado de atender a um pedido do futuro presidente do Rio Grande do Sul. Em casa também mentiu, dando a sua versão do fato. Ao fim do relato disse: “Me tragam álcool para eu me desinfetar. Toquei a mão dum Vacariano. Dizem que falta de vergonha é doença contagiosa”.
Pouco mais disse pelo resto de sua vida, que foi de apenas algumas horas, ^aquele mesmo dia teve um edema agudo de pulmão e faleceu ao anoitecer. Xisto, que logo após a reunião se havia retirado para a estância, morreu menos de uma semana mais tarde, com o ventre rasgado pela cornada dum boi xucro que seu lenço vermelho provocara. Antares entrou assim no seu Eoceno político.
Vacarianos e Campolargos – honrando o tratado de paz – trocaram-se condolências e custosas coroas de flores. Tibério fe ninguém nunca ficou sabendo ao certo por que o velho Xisto dera ao seu primogênito o nome dum imperador romano de tão equívoca fama) assumiu a chefia da família. Não houve problemas de inventário. Não apareceu nenhum advogado cabresteando filhos ou filhas naturais do velho Xisto, embora os houvesse às pencas.
Quanto a Zózimo, o único descendente macho do falecido Benjamim por linha reta, era um homem sem nenhuma vocação para a liderança. Tinha terminado o curso gi-nasial e feito dois anos de Direito. Gostava de ler, era meio indolente – homem de boa paz. Ficou desconcertado quando se viu feito patriarca do clã dos Campolargos. Respondeu a essa situação com eólicas intestinais que duraram uma semana. Por sorte ou desgraça sua – e neste particular as opiniões em Antares dividiam-se – sua mulher Quitéria, uma Campolargo tanto por parte de pai como de mãe, era uma criatura enérgica e inteligente, senhora de razoáveis leituras, e até duma certa astúcia política, de maneira que, depois da morte do velho Benjamim, embora Zózimo empunhasse, sem o menor garbo, o cetro de patriarca, D. Quita – como ela gostava de ser chamada, pois detestava, por antigo, o nome avoengo que recebera em batismo – passara a ser a “eminência parda”, o “poder por trás do trono”.
Eram bastante cordiais suas relações com a mulher de Tibério Vacariano, D. Briolanja, conhecida na intimidade como Lanja – outra que também não gostava do próprio nome de sabor arcaico. Nunca haviam tido nenhum atrito. Visitavam-se. Estimavam-se até. Trocavam-se receitas de doces, bolos e tricô. Lanja era o tipo da dona de casa, ocupada e preocupada com os filhos, os netos e os deveres domésticos, isso para não falar na sua devoção ao marido. Pode-se afirmar que as boas relações humanas entre essas duas damas contribuíram, mais que qualquer outro fator, para a consolidação da paz entre Campolargos e Vacarianos.

XXV
Quando em novembro de 1926 chegou a Antares a notícia de que Getúlio Vargas havia sido feito Ministro da Fazenda do gabinete de Washington Luís, que sucedera Artur Bernardes na presidência da República, Tibério Vacariano sorriu e, como se estivesse falando dum foguete, disse a um amigo: “Lá se foi o Baixinho! Vai subir muito alto antes de estourar”.
Não se enganava. Getúlio Vargas foi eleito presidente de seu próprio Estado quando Borges de Medeiros chegou ao termo de seu quinto mandato. Graças ao seu espírito conciliatório e à sua habilidade política, conseguiu o novo governante criar no Rio Grande um tão ameno clima político, que tornou possível a aliança de libertadores com republicanos numa Frente Única que apoiou a candidatura de Vargas à presidência da República, resultante duma desavença entre os políticos de São Paulo e os de Minas Gerais – pois estes não aceitavam o candidato que Washington Luís havia indicado intransigentemente para substituí-lo.
Consumada a Aliança Liberal em todo o Brasil, maragatos e pica-paus, cerrando fileiras no Rio Grande do Sul, de braços dados, Tibério Vacariano exclamou: “Esse Getú-lio nasceu mesmo com o rabo virado pra Lua!” E atirou-se com entusiasmo à propaganda eleitoral do “homenzinho de São Bor ja”. (“Que diria o falecido Xisto se me visse trabalhando pela candidatura dum republicano?”)
No dia das eleições nacionais ajudou os pica-paus a falsificar atas, fazendo todos os defuntos do cemitério local votar no seu candidato. Andava de mesa eleitoral em mesa eleitoral, oferecendo sugestões no sentido de aumentar fraudulentamente o número de votos favoráveis a Getúlio Vargas. (“Imaginem eu, um maragato, querendo ensinar o Padre-Nosso ao vigário”, brincava ele com os republicanos, mestres em fraudes daquela espécie.) Os fiscais do candidato oficial, em geral funcionários públicos federais que exerciam essa função a contragosto, faziam vista grossa a todas essas bandalheiras.

XXVI
Quando em 1930 o Congresso Nacional proclamou a vitória eleitoral do candidato de Washington Luís, Tibério Vacariano berrou na praça de Antares-. “Fomos esbulhados! Esses ladrões só nos podiam vencer em eleições fraudulentas! Agora só há um caminho: a revolução!”
E aqueles meses durante os quais os jornais falavam com insistência duma “arrancada” das forças do Rio Grande do Sul para derrubar o autocrata que ousava impor à nação um candidato próprio – foram tempos de impaciência, tanto para Campolargos como para Vacarianos, cavalos de guerra que mordiam o freio e escarvavam o chão. indoceis, e só não se precipitavam em épico galope rumo da capital federal porque suas rédeas estavam em mãos indecisas. “No Rio e em São Paulo já fazem troça de nós. Dizem que somos parlapatões, que a nossa decantada bravura é pura farofa!”
Zózimo Campolargo, esse parecia já disposto a aceitar o fato consumado. De resto, o Dr. Borges de Medeiros, chefe de seu partido, não lhe parecia nada entusiasmado com a idéia duma subversão da ordem. E Zózimo assim se deixou ficar na sua vidoca, lendo lenta e interminavelmente os jornais, indo de vez em quando ao cinema (gostava especialmente dos filmes de cow-boys), tomando o seu chi-marrão habitual e relendo romances de Camilo Castelo Branco, Machado de Assis e Eça de Queiroz.
Tibério, porém, não se conteve. Embarcou para Porto Alegre, confabulou com o próprio Getúlio Vargas, achou-o vago, ambíguo e ficou irritado: “Mas como é o negócio, Presidente? Vamos ou não vamos?” O Homem sorriu: “Devagar com o andor, coronel”. Tibério voltou para Antares decepcionado. Depositava agora as suas esperanças bélicas em Oswaldo Aranha, figura fascinante que lhe parecia mais gauchamente afoito que o precavido e manhoso político de São Borja.
Em princípios de outubro daquele ano, quando lhes chegou finalmente a esperada senha telegràfica (“O que é que há?”) Tibério tinha já organizado a sua tropa. E alegrava-lhe o coração ver entre seus soldados mais lenços vermelhos do que brancos.
Um dia lhe chegou a ordem de marchar. E uma das maiores decepções de sua vida foi que a batalha campal de Itararé – que poderia ter sido uma das maiores da História do Brasil, não chegou a travar-se.
Havia, porém, um Vacariano entre os membros da Legião Bento Gonçalves que, depois da vitória da revolução, amarraram seus cavalos no obelisco da Av. Rio Branco. Como observou alguém, não bastara aos gaúchos derrubar o governo federal: era preciso também, numa afirmação de machismo guasca, ridicularizar aquele símbolo fálico da cidade São Sebastião do Rio de Janeiro.

XXVII
Zózimo Campolargo seguira também rumo de Itararé com o Corpo Provisório de Antares, comandado por Tibério Vacariano. Não levava a sério o seu uniforme caqui nem as suas divisas de major. Não se considerava diminuído e, muito menos, engrandecido por servir sob as ordens dum Vacariano. Tudo aquilo lhe era indiferente. E que muito do que nele parecia pura apatia era um pouco ceticismo e um certo horror à teatralidade.
Em 1932, quando os paulistas fizeram a sua revolução, exigindo uma Constituição nova para o país e eleições presidenciais – pois lhes parecia que o “governo provisório” de Vargas estava ficando crônico – Tibério Vacariano de novo formou seus batalhões, “para defender a legalidade”, segundo ele – “para forrar o poncho”, murmuravam à so-capa seus desafetos, que conheciam todas as tramóias que o filho de Xisto fazia com as suas famosas “requisições de guerra”.
Zózimo Campolargo, entretanto, simpatizava com a revolução constitucionalista. Nada, porém, podia – nem mesmo queria – fazer de concreto a favor dela. Limitava-se a escutar às escondidas o noticiário sobre a guerra civil divulgado pelas estações de rádio dos revoltosos.
Entre os muitos bens e obrigações que lhe haviam cabido por morte do pai, herdara também, embora a contragosto, a fidelidade política que o velho Benjamim votava ao Dr. Borges de Medeiros, e da qual ele, Zózimo, participava duma maneira apenas intelectual, morna e distante. Quando se divulgou a notícia de que o velho chefe republicano, num gesto simbólico mas dum grande sentido moral, havia “ido para a coxilha” de armas na mão, cumprindo um compromisso assumido com os revolucionários paulistas – Zózimo Campolargo, que gostava de imaginar-se um homem liberto de mitos e símbolos – julgou-se no dever de juntar-se ao ídolo político de seu falecido pai. Preparou-se para isso, mas com tão pouco entusiasmo e tamanho vagar, que na véspera de deixar Antares para ir ao encontro do pequeno grupo que acompanhava o Dr. Borges de Medeiros, chegou-lhe a notícia de que o histórico varão da propaganda republicana havia sido feito prisioneiro por tropas fiéis a Getúlio Vargas, depois do combate de Cerro Alegre.
Como na cidade era bastante conhecida a sua posição ante aquela guerra civil, Zózimo Campolargo não hesitou em cruzar o rio, buscando asilo na Argentina. D. Quitéria, porém, permaneceu em Antares, para tomar conta da família e de seus negócios, e de vez em quando ia a Buenos Aires visitar o marido. Tibério Vacariano fazia vista grossa a essas idas e vindas. Gostava dos Campolargos. Dizia aos íntimos que nesse casal era a mulher quem carregava os cojones. Zózimo voltou para Antares em princípios de 1933. Quando ele e Tibério se encontraram na rua pela primeira vez, apertaram-se as mãos, abraçaram-se e o Vacariano, com um risinho entre sarcástico e afetuoso, perguntou:
– Ué? Onde andou metido todo esse tempo? Na estância?

XXVIII
Quando em 1934 o Brasil adotou uma nova Constituição e Getúlio Vargas foi eleito Presidente da República pela Assembléia Constituinte, por um período de quatro anos, Tibério Vacariano fez sua primeira visita ao Rio de Janeiro. Teve um rápido colóquio com o Presidente, que o recebeu com afabilidade, no Palácio do Catete, declarandc-lhe: “O senhor, coronel, é o meu homem de confiança em Antares”. Tibério aproveitou a oportunidade para conseguir com o chefe da nação bons empregos em repartições públicas federais para alguns de seus parentes e amigos. Fez esses pedidos como quem quer dar a entender que ele, Vacariano, não queria nada para si mesmo, pois “Deus me livre, Prendente, de abusar duma amizade...”.
Passou um mês na capital federal, conheceu-lhe a vida noturna, fez relações, insinuou-se nos bastidores da política e ficou estonteado quando teve uma visão do mundo dos negócios e especialmente do submundo das negociatas. Guardou a impressão de que o Rio era como uma daquelas localidades do Far West americano – que ele conhecia de fitas de cinema – nos tempos da corrida para o ouro. Na capital do Brasil havia ouro à flor do solo. Os primeiros faiscadores – vindos de todos os quadrantes do país – mexiam no cascalho das repartições públicas e principalmente no dos ministérios. Alguns haviam já encontrado veios riquíssimos. Era uma luta de apetites, choques de interesses, um torneio de prestígio, um jogo de “pistolões”. Muitos dos capitães e soldados da revolução que levara Vargas ao poder, cobravam agora o seu soldo de guerra. Um amigo de Tibério, um gauchão cínico, que ganhara um lucrativo cartório, lhe disse um dia, comentando aquele “garimpo” alucinado: “Para conseguir o que quer, Tibé, essa gente é capaz de tudo, até de usar meios decentes e legais”.
Tibério Vacariano voltou para casa com a cabeça cheia de planos efervescentes. Concluíra que havia chegado a sua hora de “tirar o pé do lodo”, isto é, livrar-se por uns tempos da vidinha pacata, segura mas medíocre e monótona que levava em Antares. Afinal de contas um homem só vive uma vez. Tinha já entrado na quadra dos quarenta, sentia-se em pleno meio-dia da vida. O Rio de Janeiro fervia permanentemente de fêmeas jovens e apetitosas, algumas delas fáceis. Pela primeira vez Tibério havia atentado na beleza do cenário da grande metrópole. “Ota cidade linda!” – costumava dizer aos amigos.
Em Antares encontrou tantos problemas e tarefas ato-caiados à sua espera, que se deixou envolver por eles e pela rotina, e acabou guardando seus projetos cariocas em alguma recôndita gaveta de seu ser. Algumas vezes, porém, quando estava em cima dum cavalo, na estância, parando rodeio ou simplesmente cruzando uma invernada, passavam-lhe pelo campo da memória imagens fugidias como essas que a gente mal vê pela janela dum trem em movimento. O Corcovado... a pedra da Gávea... ondas batendo na pedra do Arpoador... as areias de Copacabana... caras, coxas, seios, pernas, nádegas de mulheres, sob pára-sóis coloridos... peles reluzentes de óleo de coco... e o sol e o mar e as montanhas... “Pota que me pariu! Que é que eu estou fazendo aqui neste fim de mundo, fedendo a creolina e levando esta vida de baguai?”
Nessas ocasiões Tibé Vacariano entregava-se a algo que tinha todo o jeito duma saudade. Precisava voltar àquela “California”!

XXIX
E voltou mesmo, em 1938, depois de proclamado o Estado Novo, que lhe pareceu um “golpe genial do Baixinho” para continuar no poder sem os trambolhos do Congresso e dos partidos políticos. Antes de embarcar, conversou longamente com Zózimo, que o escutou num silêncio entre tristonho e constrangido:
– Precisas compreender, homem, que os tempos mudaram. – E, num tom quase de colegial lendo um editorial de jornal, acrescentou: – É preciso reformar as velhas estruturas chamadas democráticas liberais. O Getúlio compreendeu a coisa. Somos um país subdesenvolvido de analfabetos e indolentes. É indispensável unificar e organizar a nação com punho de ferro. Vê o caso da Itália... O Mussolini acabou com a anarquia, implantando a ordem e o respeito à autoridade, e os trens já partem e chegam dentro do horário.
– Não sabia que tinhas aderido ao fascismo – sorriu Zózimo.
– Qual fascismo qual nada! Sou um realista e como tal simpatizo com os regimes autoritários. Sempre simpatizei, tu sabes.
– Mesmo no tempo do Dr. Borges de Medeiros?
– Ó homem, estamos na era do avião e do rádio e tu me vens com o borgismo! Naquela época eu era pouco mais que um rapazola inexperiente. E se me meti na revolução de ‘23 foi só para seguir o meu velho pai. Mas não desconverses. O Hitler reergueu a Alemanha, aboliu todos os partidos (menos o dele, naturalmente), botou pra fora do país os judeus que, como se sabe, são os culpados dessas guerras e intrigas políticas e financeiras internacionais, homens gananciosos e sem pátria.
– Também não sabia que tinhas virado racista.
– Racista eu? Ora, não sejas bobo. Sabes como trato a minha negrada. Eles me adoram. Mamei nos peitos duma negra-mina. Me criei no meio de moleques pretos retintos. Quando leio esses casos de ódio racial nos Estados Unidos, comento a coisa com a Lanja e lhe digo que no Brasil a gente, graças a Deus, não tem esses problemas, pois aqui o negro conhece o seu lugar.
Logo ao chegar ao Rio, em maio de 1938, a primeira coisa que Tibério fez foi visitar Getúlio Vargas e reafirmar-lhe a sua solidariedade pessoal e política. Nessa ocasião o ditador lhe disse: “Pois me alegro de ver que o amigo compreendeu o espírito do Estado Novo, que no fundo é puro castilhismo”. Tibério, que havia herdado do pai uma antipatia invencível pela figura de Júlio de Castühos e por suas idéias políticas, limitou-se a dizer: “Mas é claro, Presidente, só não vê isso quem não quer!”
Naquele mesmo ano o chefe do clã dos Vacarianos comprou um apartamento na Av. Atlântica com o auxílio dum empréstimo conseguido rapidamente no Banco do Brasil, graças a um cartão com umas palavrinhas do Homem. Pretendia dali por diante passar uma parte do ano no Rio e a outra em Antares, evitando assim – explicava – os invernos úmidos das barrancas do Uruguai, que já começava a sentir nos ossos.

XXX
Em 1940 estava já funcionando a máquina que ele montara para ganhar dinheiro. Associado a um primo seu e amigo íntimo, formado em Direito, Tibério abrira um escritório de advocacia administrativa e começara a vender a mais curiosamente abstrata das mercadorias: influência. Era um negócio em que não empatava nenhum capital em dinheiro. Jogava com o seu prestígio pessoal, suas boas relações com indivíduos colocados em postos-chave na engrenagem governamental. Sabia-se que ele tinha trânsito livre no Catete e em vários ministérios, e isso lhe valia boas comissões pagas com muito boa vontade por quem quer que estivesse interessado em movimentar requerimentos encalhados no mar de sargaço das repartições públicas.
Esquentado, autoritário – a princípio cometeu o erro de empregar nessas gestões o que ele chamava de “sistema gaúcho” e ir levando tudo e todos por diante “a grito no mais...”. O primo foi franco com ele: “Olha, Tibé, não te esqueças que não estás na tua estância onde mandas e desmandas, gritas com os teus peões e eles baixam a cabeça e te obedecem. Esse negócio de bancar o valentão não dá resultado aqui no Rio. Os nortistas, os nordestinos e os mineiros são, sem dúvida alguma, tão machos como nós e nos levam a vantagem de serem muito mais espertos e habilidosos. Ou tu mudas de tática ou acabamos dando com os burros nágua”.
Tibério não gostou da crítica mas procurou aproveitar a lição. Mudou de método. Aos poucos aprendeu a pacienta, a blandícia, a sinuosidade. Recalcou suas cargas de cavalaria ancestrais. Pode-se até dizer que no Rio completou 0 seu aprendizado de pedestre. Não esqueceu, entretanto, flue de vez em quando, em casos extremos, quando todos os outros recursos se esgotam, dava bom resultado segurar “o sacripanta” pelas lapelas, apertá-lo contra uma parede e rosnar: “Te quebro a cara, cafajeste!” Gestos violentos como esse, porém, se foram tornando cada vez mais raros.
Aos quarenta e dois anos, era Tibério Vacariano um homem alto e corpulento, de cabeça leonina, cara larga dum moreno claro, olhos meio enviesados e escuros, denunciando antepassados bugres, denúncia essa confirmada pelos malares um pouco salientes e pela basta cabeleira negra e lisa. Trajava com essa “elegância da fronteira”, de que era exemplo típico o Dr. José Antônio Flores da Cunha – camisas e gravatas de seda, ternos de linho branco, chapéu panama. Era um bom contador de “causos”. Suas anedotas e relatos picarescos, temperados aqui e ali com castelhanismos oportunos, faziam sucesso, contribuindo para que o filho do falecido Xisto Vacariano se tornasse uma figura popular em certos círculos sociais do Rio de Janeiro, onde era considerado um “boa bola”. Tinha fama de generoso, pois as pessoas não chegavam a perceber bem que suas dádivas eram mais verbais que concretas. Tibério sabia administrar muito bem a sua “generosidade”, exercendo-a apenas com pessoas que lhe estavam sendo ou pudessem um dia vir a ser-lhe úteis.
Era visto com freqüência na madrugada dos cassinos, na companhia de belas mulheres. Jogava roleta com alguma sorte. Teve uma amante húngara, que acabou abandonando “por cara”.
Além da advocacia administrativa, ganhava dinheiro em transações imobiliárias e ocasionalmente no câmbio negro. A Segunda Guerra Mundial proporcionou-lhe oportunidades para bons negócios, uns lícitos, outros ilícitos. Habituara-se a viver à sombra do Banco do Brasil, do qual conseguia empréstimos para amigos e sócios, e para si mesmo. E, como tantos de seus pares, já possuía, num banco de Zurique, uma conta corrente numerada, cada vez mais gorda em dólares.
Em 1931 entrara no que considerava um verdadeiro “negócio da China”. Estabeleceu uma “fábrica” de seda nos arredores de Antares. Constava ela apenas dum grande barracão de madeira às margens do Uruguai, sem nenhuma máquina, apenas com mesas e prateleiras, e uma porta que dava para o rio e três na fachada. À noite vinham da margem argentina barcas carregadas de peças de seda, de origem vária, e que eram levadas para a “fábrica”, onde uns cinco ou seis empregados as enrolavam em rótulos Seda Flor da Fronteira – Indústria Nacional e depois as expediam para muitas partes do Estado e para Santa Catarina e Paraná. Os guardas aduaneiros protegiam esse contrabando. Eram “gente do Tibé”, todos bem remunerados pelo caudilho.
Ano após ano, mal entrava o mês de novembro, Tibério punha-se a caminho do Rio Grande do Sul, de Antares e das suas terras, onde tornava a ser o estancieiro, o patrão, o homem que manda, desmanda e grita. Aliviava assim o peito e a cabeça de todos os impropérios e ímpetos agressivos reprimidos durante seus meses de “atividade civilizada” no Rio de Janeiro, no convívio com gente do asfalto e da areia da praia.
De quando em vez, durante o verão, ia à cidade para conversar com seus amigos e prepostos. O prefeito de Antares era um primo-irmão seu, pois o interventor federal não nomeava ninguém para cargos públicos dentro daquele município sem antes consultar o seu cacique.
Quando, em fins de abril ou princípios de maio de cada ano, embarcava de volta à capital federal, Tibério Va-cariano, ao vestir a sua roupa de linho ou tropical, enver-gava também a sua “personalidade carioca”. Já se habituara a esse tipo de vida, e achava até um sabor esquisito nessa duplicidade. D. Briolanja, que detestava o Rio de Janeiro com um provincianismo talvez animado por uma centelha de orgulho farroupilha, via com resignada apreensão as transformações por que passava o marido. Nada dizia, porém. Tinha o hábito, que mais parecia um vício, do silêncio. Voltava-se inteira para os filhos e os sobrinhos e para as suas atividades de dona de casa. Sabia também que, se interpelasse o marido por causa daquela sua vida de cassinos e aventuras eróticas (recebia às vezes cartas anônimas) ele lhe perguntaria, como já fizera uma vez: “Por acaso está te faltando alguma coisa, Lanja?”

XXXI
Quando em 1943 um grupo de intelectuais e políticos mineiros publicou um manifesto pedindo a volta do Brasil ao regime democrático, Tibério Vacariano interpretou isso como a primeira fissura visível no baluarte do Estado Novo, cujos fundamentos – sentia ele – estavam sendo aos poucos solapados pelo trabalho subterrâneo de seus inimigos. A própria História – como lhe havia dito um amigo de boas letras – conspirava contra o regime getulista, cujas contradições eram demasiado visíveis e haviam ficado ainda mais gritantes quando, no ano seguinte, o Brasil mandou uma Força Expedicionária à Itália, para lutar ao lado dos americanos, em nome da democracia, contra o totalitarismo hitlerista, enquanto Getúlio Vargas mantinha ern casa uma versão paternalista de fascismo.
Foi com certa apreensão – e já pensando na sua retirada, caso houvesse uma radical mudança de ventos políticos – que Tibério Vacariano viu entrar o ano de 1945. Em janeiro leu nos jornais a notícia de que se havia reunido o Primeiro Congresso de Escritores Brasileiros, do qual resultará um memorial em que se reclamava publicamente a volta do país ao regime democrático. Tibério era um inveterado ledor de jornais e de vez em quando lia livros – de preferência biografias e crônicas políticas – mas em seu espírito, por alguma razão misteriosa, jamais tinha presente com clareza a relação existente entre livro e autor, como a de causa e efeito. Quando se referia a alguma pessoa incor-rigivelmente sonhadora, destituída de senso comum, costumava dizer: “E um poeta!” Estava já convencido de que os escritores em sua maioria inclinavam-se politicamente para a esquerda, sendo portanto “uns chatos”. Pois agora até esses escrevinhadores – que nem sequer constituíam uma classe pois não tinham sindicato – haviam deitado manifesto, reclamando não só completa liberdade de expressão como também eleições presidenciais por sufrágio universal e com voto secreto!
O que deu a Tibério uma idéia de como o Departamento de Imprensa e Propaganda – o famigerado D.I.P. – começara a “dormir nas palhas” foi o ter ele permitido que os jornais publicassem uma entrevista com José Américo de Almeida, e na qual o amigo do falecido João Pessoa se manifestava claramente favorável à realização de eleições presidenciais e declarava, com todas as letras, que nesse pleito dois homens havia no Brasil que não podiam ser candidatos: ele próprio e o Dr. Getúlio Vargas.
O ditador, que fazia muito andava silencioso, marom-bando, concedeu à imprensa uma entrevista coletiva na qual procurou justificar a sua discutida Constituição de ‘37, da autoria do Prof. Francisco Campos. Quando lhe perguntaram se pretendia ser candidato à reeleição, desconversou.
Falava-se, pois, e escrevia-se livremente sobre a “rede-mocratização do Brasil”. Os jornais aos quais o D.I.P. dera um dedinho de liberdade tomavam toda a mão, alguns já exigiam o braço e cedo a imprensa acabaria agarrando o corpo inteiro...
Os universitários, que tinham fundado a União Brasileira de Estudantes, realizaram no Rio um agitado comício popular pró-democracia. Seus colegas no Recife fizeram idênticas demonstrações mas a polícia lá reagira contra eles com grande violência, matando um estudante e um operário.

XXXII
Em abril de 1945 o governo de Getúlio Vargas concedeu anistia a todos os presos políticos do país, inclusive ao chefe comunista Luís Carlos Prestes, encarcerado havia quase nove anos.
As eleições presidenciais haviam sido marcadas oficialmente para o dia 2 de dezembro daquele mesmo ano. Um dia um amigo “liberalòide” de Tibério encontrou-o no saguão de um dos ministérios e saudou-o de longe com um gesto de mão e estas palavras: “A procissão está na rua, meu velho!” Tibério sacudiu a cabeça, num assentimento, e ficou pensando: “Que a procissão está na rua eu sei. Só não sei ainda que santo, que irmandade vou seguir”.
Um dos candidatos à presidência da nação já público e notório era o Brig.ro Eduardo Gomes, com o qual Tibério antipatizava por causa de sua reputação de homem impoluto, espécie de vestal do Exército e da Democracia. (A palavra democracia começava a fazer-lhe mal ao estômago.) Um novo partido, a União Democrática Nacional, formado principalmente por elementos antigetulistas, havia decidido adotar oficialmente a candidatura do Brigadeiro. Um segundo candidato surgira na pessoa do Gen. Eurico Gaspar Dutra, Ministro da Guerra do governo de Getúlio Vargas, com cujo beneplácito – já publicamente anunciado pelo próprio ditador – ele contava. (Tibério via nesse apoio um gesto de diabólica habilidade política, ao mesmo tempo de sutil humorismo e, bem no fundo, de “vingança”, como se o Baixinho pensasse assim: “Ah! Me acham ruim? Pois elejam o Dutra para ver o que é bom”.)
Para Tibério o Gen. Dutra “não cheirava nem fedia”. Era sem dúvida um cidadão honrado. Mas quantos milhões de homens decentes existiriam no território nacional mas sem competência para dirigir a nação? Outro aspecto da questão sucessória que impressionava o Cel. Vacariano era o fato de que o salafrário do Getúlio – e aqui o adjetivo salafrário tinha uma conotação positiva e afetuosa – contava ainda com a estima e a admiração de grande parte do povo brasileiro.
Um dia teve uma audiência de cinco minutos com o ditador e. depois de tratar do assunto que o levara até ele, perguntou-lhe de chofre: “Presidente, por que o senhor não se candidata em dezembro? As massas estão do seu lado. A sua eleição seria uma barbada”. O são-borjense mostrou os belos dentes no seu já lendário sorriso despistador e murmurou: “Quem sabe, coronel?” E em seguida como que se sumiu, envolto na fumaça azulada de seu longo charuto. E não tocou mais no assunto.
A Grande Guerra havia terminado. Hitler estava morto e o nazismo, aniquilado. A Força Expedicionária Brasileira em breve começaria a voltar à pátria. O Partido Comunista Brasileiro agora funcionava legalmente e realizara já um grande comício Os estudantes continuavam politicamente ativos. Os mineiros ainda conspiravam. A candidatura do Gen. Dutra contava com o apoio oficial do Partido Social Democrático, formado de elementos conservadores, forças que até então, dum modo ou de outro, haviam colaborado com Getúlio Vargas em todo o país, e que tinham grande força nas pequenas cidades das zonas rurais.
Talvez o mais certo – concluiu Tibério, pensando na sabedoria dum ditado gaúcho – seria apostar no “cavalo do comissário”, que nunca perde carreira.
Em agosto daquele ano um amigo seu, getulista dos quatro costados, lhe disse:
– Coronel, acabamos de fundar o Partido Trabalhista Brasileiro. Vai ser o mais poderoso do Brasil, o partido das massas, do operariado, do homem comum, do povo. Seja um dos nossos! O P.T.B. vai lutar contra essa idéia desastrosa das eleições presidenciais em dezembro. Queremos uma Constituinte com Getúlio ainda no poder.
– Mas esse é o programa do Partido Comunista!
– E daí? Se a idéia é boa, por que não apoiá-la?
– Com comunistas não vou nem pro Céu.
– Mas quem lhe disse que comunista entra no Céu?
– Queres que te fale com franqueza? As coisas estão de tal modo confusas que já não sei mais a quantas andamos. Depois que li nos jornais que o governo dos Estados Unidos permitiu que as tropas russas chegassem a Berlim primeiro que as deles, e depois que vi numa fotografia soldados soviéticos e americanos confraternizando... bom, não duvido de mais nada. Se me disserem que Deus Nosso Senhor deu uma guinada para a esquerda, eu acredito...
Tibério Vacariano via agora, para onde quer que se voltasse, cartazes e letreiros nas paredes e muros: Queremos Getúlio! – Abaixo as Eleições de Dezembro! – Constituinte com Getúlio. Os termos queremismo e queremista pareciam ter entrado definitivamente para o dicionário político brasileiro.
Por outro lado o Brigadeiro empolgava as chamadas elites, atraía os elementos intelectuais da nação, ao mesmo tempo que sua figura física e sua auréola de bom filho e bom católico fascinava mulheres de todas as idades. A cara do Gen. Dutra – achava Tibério – não ajudava o homem eleitoralmente. Mas um dia, por acaso, entreouviu um certo Dr. Fernando Carneiro, homem de aguda inteligência, dizer numa roda: “Ganha o Gen. Dutra. É que o eleitor brasileiro tem uma curiosa confiança e até uma certa predileção afetuosa pelos homens fisicamente feios”. Quanto ao Baixinho, continuava calado, e muitos imaginavam que ele tinha escondida na manga uma carta – um ás – que jogaria no momento oportuno.
Tibério Vacariano tratou de preparar cuidadosamente a sua retirada. Fazia já alguns anos que tinha fechado a sua “fábrica de seda” às margens do Rio Uruguai. Não queimou propriamente pontes, mas queimou papéis. Quando menino aprendera, em teatros mambembes e circos de cavalinhos, que existem principalmente dois tipos de mágicos: os sujos e os limpos. Os primeiros trabalhavam tão mal, que seus truques ficavam visíveis e risíveis, e os pobres coitados eram vaiados pelo público. Os segundos tinham tal habilidade, tal destreza, que as suas prestidigita-ções pareciam verdadeiros milagres. Tibério gabava-se de ser um “mágico limpo”. Procurava fazer as suas trapaças sem ficar com o rabo preso na ratoeira. Por princípio jamais escrevia cartas ou mesmo bilhetes. Negava-se terminante-mente a assinar compromissos escritos, até mesmo os rigorosamente legais. Com ele era tudo “no papo”. Mesmo assim, encontrou documentos que precisava destruir, por perigosos.
Quando em setembro daquele ano de 1945 voltou para Antares, ao vê-lo chegar na maciota, antes do tempo, os maldizentes murmuraram: “O navio deve estar mesmo afundando, pois os ratos já começaram a abandoná-lo...”.

XXXIII
Tibério Vacariano encontrava-se ainda na estância em outubro de 1945 quando ouviu pelo rádio a notícia de que o Exército havia forçado Getúlio Vargas a renunciar. Escutou também, e com um risinho sardònico – murmurando de quando em quando: “Pois sim...” – “Essa eu não engulo.” – “Agora é que vens nos contar isso?” – a leitura da proclamação em que o Gen. Goes Monteiro justificava o golpe de Estado, assumindo plena responsabilidade por ele.
No dia seguinte saiu para o campo, com “uma coisa no peito”. Sentia pena do Dr. Getúlio. O baque devia ter sido duro para o seu amor-próprio...
Um sobrinho seu veio da cidade para lhe comunicar que o ex-ditador já se encontrava no município de São Bor-ja, na sua estância do Itu.
– O senhor vai visitá-lo? – perguntou o rapaz. Tibério lançou-lhe um olhar enviesado:
– Não sei ainda.
Estava em dúvida. Sentia que a sua obrigação era ir ver o homem a quem tantos favores e atenções devia. Concluiu, entretanto, que numa conjuntura como aquela, o melhor era fazer como certos animais na hora do perigo: fingir de morto. Justificava-se perante si mesmo e os outros: “O Dr. Getúlio deve estar cercado de queremistas trabalhistas e sevandijas. Se eu visito o Homem agora, todo mundo vai pensar que isso é um ato de solidariedade política. Nessa eu não caio”. Deixou-se ficar em suas terras.
Voltou para Antares em meados de novembro e promoveu uma reunião do diretório local do Partido Social Democrático, do qual era presidente. Encontrou um dia Zózimo Campolargo na Praça da República, abraçaram-se, trocaram-se nacos de fumo em rama, prepararam os seus palhieiros e sentaram-se num banco, à sombra dum platano, para conversar e fumar.
– Sempre adversários, hem, Zózimo?
– Pois é. Me fizeram presidente do diretório da U.D.N. Coisas da Quita, que continua uma grande politiqueira... E por falar em política, já foste visitar o Dr. Getúlio?
– Não. Por que perguntas?
– Ele não era teu amigo?
– Era e é. Mas eu separo o homem do político. São duas coisas diferentes.
– Desde quando? – sorriu Zózimo. – Desde que ele caiu?
– Ora, vai-te à merda!
– Dela sairemos se o Brigadeiro for eleito.
– Mas não vai ser. Ganha o Gen. Dutra. Aposto um Poleango. (Era assim que Tibério pronunciava, como muitos outros gaúchos, Polled Angus.)
– Então é por isso que estás no P.S.D., não? Ou queres me fazer crer que é por convicções políticas?
– Falar em convicções políticas nesta altura dos acontecimentos é a maior bobagem deste mundo. Em matéria de idéias a tua U.D.N. e o meu P.S.D. são cavalos da mesma raça, filhos da mesma égua e do mesmo garanhão, com o mesmo pêlo e as mesmas manhas, só que com nomes diferentes. E ou não é? Confessa.
Zózimo sacudiu negativamente a cabeça.
– A U.D.N. é vinho de outra pipa – replicou. – O P.S.D. está minado de getulistas e oportunistas. O Dr. Getúlio está recomendando a seus partidários que votem no Gen. Dutra, mas presta bem atenção, Tibé, ele faz isso sem o menor entusiasmo. E ao mesmo tempo acertou a sua própria candidatura ao Senado e à Câmara federais pelo P.T.B. e pelo P.S.D. E uma duplicidade inédita na nossa vida política, acho.
Tibério, com o cigarro apertado entre os dentes, olhava fixamente para a Matriz, murmurando:
– Ê. O Getúlio nunca fecha as suas portas nem as suas janelas. Pelo menos com tranca. É um feiticeiro.
– Feiticeiro? Não sei. Talvez a feitiçaria dele esteja nas nossas fraquezas, ambições e superstições. Em qualquer caso, as urnas vão ter a última palavra. Acho que o teu amigo está politicamente liquidado.
– Não sei... não sei... até o dia 2 de dezembro muita coisa pode ainda acontecer.
– Estás vendo? Isso é que eu chamo de superstição e fraqueza. No fundo és um queremista!
De súbito, mudando o tom de voz, Tibério Vacariano disse :
– O Pe. Gerôncio me disse que a Matriz anda precisando duns consertos e duma pinturinha.
– O Brasil também, Tibé, o Brasil também.

XXXIV
Quando a eleição do Gen. Eurico Gaspar Dutra foi confirmada pelo Congresso, muitos jornais em todo o país reconheceram que o apoio de Getúlio Vargas havia sido decisivo para essa vitória. O próprio ex-ditador fora eleito por expressivo número de votos não só deputado federal como também senador.
“Eu não me enganava” – refletiu Tibério Vacariano. – “O prestígio do Homem é ainda uma coisa séria. Ele ainda é trunfo no baralho político.” Pediu a um amigo comum que sondasse o Dr. Getúlio para saber como ele receberia uma visita sua. A sondagem foi feita e a resposta veio, clara e curta. O Dr. Getúlio Vargas não o receberia.
Em fins de 1947, Tibério um dia comentou entre amigos que o Gen. Dutra, na sua opinião, havia feito uma coisa certa e outra errada. A certa era ter posto o Partido Comunista Brasileiro fora da lei. A errada, ter proibido os jogos de azar em todo o território nacional. Alguém objetou que o jogo, além de ser uma imoralidade, era a perdição das criaturas. Tibério fitou o moralista com os seus olhinhos malaios e disse: “Olhe, moço, mais desgraça tem acontecido aos homens por causa de mulher do que por causa de jogo. Você então acha que devia haver uma lei proibindo homem de gostar de mulher, e vice-versa?”
Na volta de um de seus invernos cariocas Tibério contou aos amigos que costumavam reunir-se todos os dias às dez da manhã, na Farmácia Imaculada Conceição, de propriedade de um dos genros de Zózimo Campolargo, num grupo de chimarrão conhecido na cidade como “a rodinha da Imaculada”:
– Vocês diziam que havia corrupção no tempo do Getúlio, não é? Pois fiquem sabendo que as negociatas e as roubalheiras continuam neste governo do Gen. Dutra e dizem até que a coisa agora é pior, só que mais escondida. O Presidente, que é um homem de bem, não sabe da missa a metade. Durante a guerra acumulamos reservas em ouro na importância de mais de setecentos milhões de dólares. Já não temos quase mais nada. Gastamos tudo comprando sobras de guerra e outras porcarias que os Estados Unidos nos impingiram.
– Ora, coronel, isso é exagero.
– Exagero qual nada! – vociferou o Vacariano, segurando a cuia como uma granada de mão prestes a ser atirada contra a “cambada de ladrões” que cercava o novo Presidente. – Nunca falta um sem-vergonha filho da mãe disposto a vender a pátria por trinta dinheiros. Nossa situação econômica e financeira é uma calamidade.
Alguém arriscou um resmungo:
– Afinal de contas, coronel, o general foi eleito pelo seu partido.
– Bom, mas com a gente do Brigadeiro a coisa ia ser ainda pior.
Os outros freqüentadores da “rodinha da Imaculada” entreolharam-se significativamente, mas em silêncio. Todos conheciam muito bem o Cel. Tibério Vacariano, flor do patriciado rural de Antares.

XXXV
Quando em 1950 Getúlio Vargas aceitou a sua candidatura à presidência da República, o caso foi debatido às dez de certa manhã pelos tomadores de mate da Farmácia Imaculada Conceição. Disse Zózimo Campolargo:
– Ë uma loucura. O Getúlio perdeu a noção da realidade. Nunca na História do Brasil ou de qualquer outro país, que eu me lembre, um ditador expulso do poder pelo seu próprio exército voltou ao governo eleito pelo povo.
Tibério Vacariano escutou estas palavras sem dizer água, amaciando esquírolas de fumo na palma da mão. Pouco depois, já de crioulo aceso entre os dentes, os olhos entrecerrados, murmurou: “Não sei... não sei... Acho que o Baixinho tem parte com o demônio. O eleitorado trabalhista está aumentando”. Ali mesmo em Antares, às quase três centenas de operários do Frigorífico Pan-Americano somavam-se agora os trabalhadores da Cia. Franco-Brasilei-ra de Lãs, estabelecida na periferia da cidade, fazia dois anos. Havia ainda o pessoal das indústrias menores. Calculava-se que pelo menos noventa por cento desse proletariado em idade eleitoral estava inscrito no P.T.B. e obedeciam todos à chefia dum tal Geminiano Ramos, homem de escassos trinta anos e que, além de ter fama de marxista, usava bi-godões à Stalin. Como o Partido Comunista Brasileiro estivesse fora da lei, Geminiano – operário de folha-corrida policial ainda limpa – infiltrara-se no Partido Trabalhista Que, no dizer de Tibério, era uma espécie de “sala de espera do comunismo”.
A União Democrática Nacional tentava de novo a fortuna nas urnas com o nome do Brig.r° Eduardo Gomes. O Partido Social Democrático, por insistência do Gen. Eurico Dutra, apresentara um candidato eleitoralmente inexpressivo, o Dr. Cristiano Machado, praticamente só conhecido em seu estado natal, Minas Gerais. “Esse inocente vai ser jogado na fogueira!” – profetizou Tibério.
Um dia na “rodinha da Imaculada”, poucas semanas antes da eleição, lançou um desafio geral:
– Aposto dois bois Poleangos com cada um de vocês como o Getúlio ganha a eleição, e de rebenque erguido.
No meio do silêncio que se seguiu, Zózimo Campolargo falou sereno:
– Não sou homem de apostas.
Tibé teve vontade de dizer-. “Não és homem de nada. Um água-morna dominado pela mulher”. Mas engoliu essas palavras com um sorvo quente de chimarrão.


XXXVI
Uma noite, uma semana antes da eleição, da janela de seu palacete, mas invisível para quem estivesse na rua, o patriarca dos Vacarianos assistiu ao último comício de propaganda do P.T.B., que se realizava na Praça da República. Os oradores falaram de dentro do coreto da banda de música. Alto-falantes colocados nos quatro ângulos da praça, ampliavam-lhes as vozes. “Papai” – disse uma das filhas de Tibério – “a praça está preta de gente.” Ele sacudiu a cabeça, num assentimento impaciente: “Estou vendo, menina” – disse. D. Lanja, procurando consolá-lo, murmurou: “É, mas mais da metade dessa gente decerto não vota. São curiosos”.
O marido buscou consolo num palheiro, enquanto ouvia os oradores, “papagaios queremistas” que repetiam as promessas e críticas de seu candidato. Nos seus discursos durante toda a sua campanha presidencial, Getúlio Vargas abstivera-se de atacar diretamente a figura respeitável do Presidente da República, mas dissera horrores dos desastrosos erros da política cambial de seu Ministro da Fazenda, que levava o país à bancarrota. Como Vargas, os oradores daquele comício apontavam os defeitos e injustiças da “democracia liberal capitalista” e falavam até – como tinham mudado os tempos! – em “democracia socialista de trabalhadores”. O povo reagia a essas frases com o mais frenético entusiasmo: gritos, urros, aplausos, vivas e morras.
– Veja você, Lánja – disse Tibério, atirando uma baforada da acre fumaça de seu crioulo em pleno rosto da esposa. – Quem diria que eu ia viver para testemunhar uma cena dessas! Oradores na praça, na frente da minha casa, falando em “democracia socialista” e atacando o capitalismo. Tudo obra do Getúlio! O mal que esse homenzinho tem feito ao Brasil com as suas leis sociais e as demagogias trabalhistas! Está tudo demudado. Meu pai e seus correligionários federalistas nunca conseguiram fazer nesta cidade um miserável comício durante os vinte e cinco anos da ditadura borgista.
Na praça a turba bradava ritmadamente: Ge-tú-lio! Ge-tú-lio! Quando de novo se fez silêncio para que outro orador falasse, Tibério se deu o luxo duma reminiscência em voz alta:
– Uma vez, em 1922, reunimos uns gatos-pingados nesta mesma praça pta fazer propaganda da candidatura do Dr. Assis Brasil, até que um pouco sem entusiasmo, porque meu pai não ia muito com a cara do homem de Pedras Altas. Pois bem. O velho Benjamim mandou seus capangas dissolverem o comício a rabo-de-tatu e facão. Em poucos minutos a praça se esvaziou... Quando dei pela coisa, estava só com meu pai e uns três ou quatro companheiros, de revólveres arrancados, no centro da praça, cercado pelos apaniguados do velho Campolargo. Se não fosse a intervenção do juiz de comarca, na certa eles nos liquidavam, porque eram maioria e nós estávamos dispostos a morrer brigando. No entanto agora essa canalha está aí atacando o regime, com todas as garantias legais. O Getúlio entregou o Brasil pra eles numa bandeja de ouro.
“A vitória será nossa!” – gritava na praça o orador, o industriário Geminiano Ramos. Tibério Vacariano fez um rapido exame de consciência e achou-se culpado. Na realidade, não fizera nada pelo candidato de seu partido. Durante a campanha adotara a técnica do “corpo mole”. Que diabo! Que entusiasmo a gente pode ter por um candidato desconhecido? Cristiano Machado ia ser sacrificado, espécie de Cristo político. Seu partido o havia abandonado quase por completo, pelo menos no Rio Grande do Sul. Mais uma vez se ia provar como era fantasticamente poderoso o fascínio que o “homenzinho de São Borja” exercia sobre muitos daqueles líderes do P.S.D.
No dia das eleições, quando chegou a sua hora de votar, ele próprio, Tibério Vacariano, hesitou por um instante dentro da cabina. (Não se habituava com o voto secreto, que chamava de “voto de covarde”.) E para não “embromar” a marcha da eleição, soltou um “que bosta!” e, num impulso sentimental, votou em Getúlio Vargas. Deixou a cabina meio desenxabido, como quem sai dum quarto de banho completamente nu para entrar inadvertidamente numa sala cheia de senhoras.

XXXVII
Getúlio Vargas tomou posse do cargo de Presidente da República em janeiro de 1951. No inverno desse mesmo ano Tibério Vacariano foi ao Rio de Janeiro e tentou mais uma vez reaproximar-se do Homem. Viu, porém, todas as suas tentativas frustradas, tanto as diretas como as indiretas. Ante essa repulsa obstinada, teve as mais variadas reações. A primeira foi de revolta: “Pois o pitoco que se lixe! Posso viver muito bem sem a amizade dele!” A segunda foi de estranheza: “Ué! Dizem que o Getúlio é um homem frio, sem rancores, perdoou até ao João Neves da Fontoura pelo Acuso... Que é isso comigo?” Houve depois um momento em que se sentiu vítima duma injustiça. (“Andariam me intrigando com o Presidente?”) A seguir consolou-se com a idéia, ou esperança, de que um dia o Gegê havia de precisar dele, Tibério, e seria então o primeiro a mandar-lhe emissários de paz. A todas essas o senhor de Antares sentia-se ferido no seu amor-próprio, e arrependia-se de haver-se rebaixado a pedir a Getúlio Vargas que o recebesse de novo. Isso produzia nele um constrangimento não só perante todos quantos sabiam da estória como também perante si mesmo. O diabo era que se ele, Tibério, era indulgente e compreensivo consigo mesmo, os seus desafetos, ao contrário, jamais lhe perdoavam os erros e além disso tinham uma memória de elefante.
Da janela de seu apartamento da Av. Atlântica às vezes ficava olhando para o mar, pata aquele belo mar com o qual, em todos os seus muitos anos de Rio de Janeiro, jamais tivera a menor intimidade. Gabava-se até, com um certo orgulho de campeiro, de nunca ter sequer molhado as pontas dos dedos dos pés na água do oceano. Nascera e criara-se à beira do Uruguai, onde vezes sem conta nadara, pescara e navegara de caique. Nas suas terras não podia ver lagoa, açude, sanga ou arroio que não sentisse gana de pelar-se, atirar-se nágua e dar umas braçadas ou uns mergulhos. “Sou peixe de água doce” – costumava dizer. E agora que não era mais persona grata do governo, que deixara de ser vaqueano nos labirintos daqueles ministérios e repartições públicas, chegava à conclusão de que peixe de rio não pode mesmo viver em água salgada.
Poucos dias antes de voltar para casa, Tibério Vacaria-no foi por puro acaso apresentado a um jovem industrial chinês, recém-chegado dos Estados Unidos, um certo Mr. Chang Ling, que ele passou logo a chamar de “seu Jango Lins”. Tratava-se de um dos muitos homens de negócio que tinham conseguido fugir de Changai antes de esta cidade cair em poder dos comunistas. Trouxera consigo a família, os seus móveis mais preciosos, uma carta de crédito (possuía no Chase Manhattan Bank de Nova Iorque uma conta Pessoal com um apreciável saldo credor) e o seu know-how. Queria instalar no Brasil uma fábrica de óleos comestíveis de soja e amendoim.
Mal viu na sua frente aquele homem franzino, baixo e amarelento– Tibério teve uma inspiração e convidou-o para almoçar no Bife de Ouro, juntamente com o seu intérprete, um rapaz brasileiro que sabia inglês, e que andava pajeandò Mr. Ling através do emaranhado da selva carioca. O primeiro prato não havia sido ainda servido e já o Cel. Vacariano, voltando-se para o intérprete, pedia:
– Diga aí pro seu Lins que descobri o lugar ideal para a fábrica dele.
A tradução foi feita. O chinês sorriu e quis saber onde era.
– Conta pro moço – continuou o Cel. Tibério – que sou meio dono duma cidade do Rio Grande do Sul que tem nome de estrela (ouvi dizer que chinês gosta muito de estrela) nas barrancas do Rio Uruguai, justamente na zona da soja.
Fez uma pausa para que o intérprete traduzisse as suas palavras para aquela língua bárbara. O chinês continuava a sorrir.
– Diga também que sou plantador de soja, e da boa! E se ele quiser estabelecer o negócio dele em Antares, eu arrumo tudo: o terreno para a fábrica, material de construção a preço baixo e mais ainda: cinco anos de isenção de impostos municipais! O prefeito da cidade é meu sobrinho e eu tenho na mão a Câmara de Vereadores.
O chinês escutou, sacudindo de quando em quando a cabeça, a enumeração de todas essas promessas e depois disse algo em voz baixa ao intérprete, que se voltou para o maioral de Antares :
– Mr. Ling quer saber das suas condições.
– As minhas condições? Ora, quero apenas contribuir para o progresso industrial da minha cidade, que diabo!
Na realidade pretendia fazer o chin assinar oportunamente um compromisso de compra de toda a sua safra anual de soja, esperava vender-lhe um de seus próprios terrenos para a construção do edifício da fábrica e, se possível, ainda por cima ganhar de presente algumas ações da companhia, em troca de todos esses “favores”.
Enquanto o tradutor falava, Mr. Chang Ling tomava notas numa pequena caderneta de capa azul, que depois guardou no bolso do casaco.
– Então? – perguntou Tibério Vacariano, olhando para o intérprete, que a seguir confabulou em voz baixa com o chinês.
– Mr. Ling lhe agradece por tudo, inclusive pelo delicioso almoço, e declara que, quanto ao negócio, vai ainda pensar.
Tibério Vacariano pagou a conta do restaurante com a certeza de que havia perdido naquele encontro tempo e dinheiro. Enganava-se. Três meses mais tarde Mr. Chang Ling apareceria em Antares com a mulher e seus cinco filhos e mais três compatriotas seus, especialistas na fabricação de óleos comestíveis.
Menos de um ano mais tarde inaugurava-se em Antares a Cia. de Óleos Sol do Pampa, da qual Tibério Vacariano possuía 500 ações que não lhe haviam custado um vintém. Conseguira impingir ao chinês um de seus muitos terrenos situados na periferia da cidade. Tinha agora comprador certo para toda a sua produção de feijão-soja. Mas manda a verdade que se diga que cumpriu todas as promessas que fizera no Bife de Ouro ao “seu Jango Lins”.

XXXVIII
Em dezembro daquele ano de 1951, aconteceu a Tibério algo que lhe mudou a vida por completo, fazendo-o esquecer as humilhações a que o Presidente o submeteu.
Um dia o telefone de sua casa tüintou, e ele pegou o fone, já irritado, como sempre, pois não se havia habituado ainda àquela engenhoca, pela qual tinha uma má vontade atávica.
– Pronto! – gritou como quem espera ouvir e dizer desaforos.
– É o Cel. Tibério? – perguntou uma voz melíflua de mulher.
– Quem deseja falar com ele?
– A Venusta.
Ao ouvir o nome da caftina, Tibério olhou instintivamente dum lado para outro para verificar se havia alguém mais na sala ou proximidades. Pigarreou e disse-.
– Um momento. – Largou o fone e foi fechar a porta. Não haveria perigo de outra pessoa escutar a conversação, pois aquele era o único aparelho existente no casarão. – Pronto. Pronto!
– É a Venusta.
– Já ouvi! Mas você não devia telefonar pra minha ca,sa, ora essa! Já lhe disse isso mil vezes.
– Não fique brabo, coronel. É um assunto importante. Tenho um presente de Natal pro senhor. ..
Ele escutava, desconfiado. Aquilo só podia ser um subterfúgio para um pedido de dinheiro. Havia anos ele ajudara Venusta, uma prostituta aposentada, a montar o bordel mais fino de Antares. emprestando-lhe dinheiro a juro baixo e prazo longo.
– Que negócio é esse de “presente”? – indagou, cauteloso.
– Eu não me esqueço do que o senhor fez por mim, Cel. Tibério.
– Está bem, está bem, fale baixo. E não precisa pronunciar o meu nome.
– Estou sozinha aqui em casa. Descobri a rapariga mais linda do mundo. Dezessete aninhos, coronel! O senhor vai ficar maravilhado.
– Novinha, hem? – Soltou uma risada áspera de ta-bagista. – E você vai enrolar a menina em papel celofane e memandar por portador, hem? Quanto vai me custar essa brincadeira?
– Não estou pensando em negócio. – Como Venusta ceceava, a palavra negócio soou quase como negófio. – Não sou mal-agradecida.
– Como é a moça? Ruiva? Muito branca? Morocha?
– Morena jambo. Mas não adianta descrever pelo telefone. O senhor tem que ver ela pessoalmente.
– Onde está a bichinha?
– Aqui comigo, guardadinha no refrigerador – disse a alcoviteira com uma risadinha despudorada. – Olhe, coronel, a menina caiu na vida não faz nem uma semana.
Logo que botei o olho nela pensei no senhor. É órfã de pai e vivia com a mãe. Agora está comigo há dois dias e não foi mais pra cama com ninguém. Não deixei. Reservei ela pro senhor. Venha ver. Se não gostar, fica o dito pelo não dito.
– E se eu gostar?
– É sua.
– Está bem. Hoje de noite apareço aí.
Ao jantar tomou apenas uma sopa leve. Depois disse à mulher que ia ao clube e provavelmente voltaria tarde. Saiu de casa a pé, mas entrou num carro de aluguel do outro lado da praça e pediu ao motorista que o deixasse à esquina duma determinada rua, na parte baixa da cidade.
O bordel da Venusta ficava numa ruela pouco iluminada e tinha nos fundos do seu pequeno quintal um portão que dava para um terreno baldio – espécie de entrada secreta ou pelo menos discreta, geralmente usada pelos senhores respeitáveis da cidade que queriam entrar naquela casa de rendez-vous sem serem vistos. Tibério apertou o botão da campainha da porta dos fundos. Venusta em pessoa veio recebê-lo, recendente a Tabu, com um vestido de algodão estampado, a cara exageradamente pintada, os cabelos oxigenados de fresco. Era uma cinqüentona de carnes balofas e muito alvas, que Tibério tinha levado algumas vezes para a cama nos tempos em que ela era moça e não de todo destituída de atrativos. Subiram uma pequena escada e entraram num corredor estrategicamente mal-iluminado e por fim pararam diante da porta dum quarto.
– A menina está lá dentro à sua espera, coronel. Ela já sabe quem o senhor é e está até meio nervosinha.
– Mas eu ainda não sei direito quem ela é...
– Ora, ninguém de circunstância. O pai era ferroviário e morreu esmagado por um trem, há uns quatro anos... acho que o senhor se lembra do fato. A mãe costura pra fora. Gente muito pobre. Um caixeiro-viajante fez mal pra menina e desapareceu. A mãe descobriu a coisa e botou a boca no mundo. A moça então veio pra cá, mas ninguém ainda sabe que ela está comigo. Acho que é fácil acomodar a velha com uns cobres. Deixe a coisa por minha conta.
– Essa estória está me cheirando mal. A menina é menor, a mãe pode me incomodar, fazer chantagem. Não sei... Tenho muitos inimigos. Não sei... Nunca falta um rábula filho da mãe pra pegar uma causa dessas e me extorquir dinheiro... Não sei.
Ficou ali na frente da porta murmurando “não sei... não sei...”. Mas seu corpo sabia, da cabeça aos pés, sabia com uma intensidade que aumentava com o passar dos minutos, o sangue batendo-lhe com força nas fontes, toda a sua virilidade já agressivamente esculpida, intumescida e latejante.
– Está bem – disse por fim, com voz opaca. – Já não estou pensando mais com a cabeça, mas com outra parte do corpo. Seja o que os anjos quiserem.
Venusta abriu a porta e ele penetrou no quarto como um Miúra que entra na arena.

XXXIX
Mais tarde, naquela mesma noite, no leito conjugai, com Lanja a seu lado, ressonando tranqüilamente, Tibério recordou a hora que passara com a rapariga. Que fêmea mais bem-feita de corpo! Uma potranca de raça – cabocla de pele acetinada cor de areia úmida, seios miúdos, quadris estreitos, delicada como uma flor... Em cima dela sentira-se com vinte anos menos. E, depois de descarregar a sua primeira e furiosa onda de desejo, ficara ofegante e feliz, deitado ao lado da criaturinha.
– Onde nasceste?
– No Cacequi.
– Como é o teu nome?
– Me chamo mesmo Cleopatra, mas me tratam por Cleo.
– Bonito nome, Cleo...
E então ele pusera-se a apalpá-la devagarinho, para sentir nos dedos a contextura daquela epidemie, a elasticidade daqueles músculos, o desenho daquele corpo. Chegara a inventar um brinquedo:
– Nunca ouviste a estória da Salamanca do Jarau?
– Nunca.
– Pois era uma vez um campeiro, de nome Blau Nunes. Tinha aprendido com o fantasma dum padre renegado o caminho da furna do Jarau, onde existia um tesouro escondido, e guardado pelos bichos e assombrações mais horríveis. ..
– Credo!
– Faz de conta que aqui vai o Blau Nunes...
Com os dedos indicador e médio da mão direita imitou as pernas dum homem a caminhar. Blau Nunes percorreu o braço e o ombro de Cleo, devagarinho, pisando forte.
– De repente Blau avista um cerro...
E os dedos de Tibério escalam o seio direito de Cleo e quando chegam ao cume dessa macia elevação brincam com seu mamilo – “Uma pedra?” – e a rapariga se retorce, cosquenta. “Ai! Ai! Ai!”
– Então Blau Nunes desce do cerro e começa a andar por uma linda várzea...
E agora os dedos de Tibério caminham pelo ventre levemente côncavo da menina, com lenta volúpia.
– De repente Blau Nunes avista um capão...
– Não!
E ela ergue as pernas, cruza as coxas, num movimento instintivo de defesa, procurando esconder sua furna. Mas Blau Nunes continua a andar... lá dentro está a entrada da Salamanca, do tesouro...
E os dedos de Tibério – antes, as pernas de Blau Nunes – penetram no capão e encontram a boca da furna. “Ai!” – suspira ela. – “Ai!”. Blau Nunes está alucinado.
– Onças de ouro! – exclama Tibério. – Dobrões de ouro! Jóias!
E Cleo se retorce toda, rindo, excitada.
Tibério Vacariano levantou-se num prisco. Lanja acordou, alarmada.
Que foi, Tibé? Estás sentindo alguma coisa?
Sentado na cama, meio ofegante, ele murmurou:
– Não é nada. Perdi o sono.
– Decerto tornaste muito café.
– Pois é. O calor também está brabo. Mas não é nada, Lanja. Dorme. Eu me arranjo...
Levantou-se, acendeu um cigarro, começou a passear pela casa, de pijama, sem destino certo. A imagem de Cleo não lhe saía da mente. O cheiro dela estava nas suas narinas, nos seus dedos, na sua pele, entranhado em todo o seu corpo. Abriu a janela que dava para a praça e debruçou-se nela. Vaga-lumes lucilavam por entre árvores e arbustos. Ti-bério olhou para o céu e viu o Cruzeiro do Sul bem por cima da Matriz. O vento morno chegava-lhe às narinas com um cheiro de campo queimado, de mistura com recordações de infância e adolescência.
Ali na janela o Cel. Vacariano pensou na sua idade. Cinqüenta e sete na cacunda! Não se podia dizer que fosse já um velho, mas moço, moço mesmo não era mais. Imaginou Cleo instalada na pensão da Venusta, recebendo qualquer homem que tivesse dinheiro para pagar o preço que a caftina nedia pelo seu esplêndido corpo. A idéia lhe era intolerável.
Voltou para a cama e só conseguiu adormecer madrugada alta. Levantou-se às oito horas, sentindo-se um tanto desmoralizado por ter “queimado o assado”, pois entre seus hábitos supersticiosos estava o de saltar da cama antes do sol nascer.
A primeira imagem que lhe veio à cabeça ao despertar foi a de Cleo, como a figura dum sonho bom.
Tornou a procurar a rapariga na noite daquele dia. E noutra manhã, barbeando-se no quarto de banho, conversou em silêncio consigo mesmo, puteou-se afetuosamente, examinou a própria cara no espelho, com um cuidado entre realista e tolerante. “Bonito sei que não sou, mas – que diabo! – há no mundo gente mais feia que eu.”
Tudo aquilo que sentia com relação à moça – refletiu – devia ser conseqüência da idade crítica. Sim, os homens tinham também o seu climatèrio. Ouvira esta palavra pela primeira vez da boca de seu médico carioca. O seu climatèrio finalmente chegara, e com que força!
Decidiu fazer de Cleo sua amante exclusiva, montar casa para ela. Convenceu a mãe da rapariga a vir morar com a filha, arranjou tudo com a colaboração da Venusta. Quando um novo ano entrou o Cel. Vacariano tinha o que em língua de advogado se chama de “mulher teúda e man-teúda”. Sentia-se feliz e remoçado. Se Lanja desconfiava de alguma coisa, pelo menos não dava nenhuma demonstração disso.
E agora, cada vez que Tibério queria fazer amor com a amante, bastava dizer-lhe: “Vamos brincar de Salamanca?” Blau Nunes passou a ser uma personagem importante na vida de ambos. E muitas vezes Tibério Vacariano pensou num remoto antepassado seu que, segundo uma lenda da família, tinha um dia entrado na furna encantada do Jarau e andava sempre com as guaiacas cheias de onças de ouro.

XL
Em meados do inverno de 1954, Tibério Vacariano passou duas semanas no Rio, tratando de negócios. Revisitou o cenário de suas aventuras estado-novistas, reencontrou amigos e conhecidos, ouviu boatos e confidencias em torno da situação política nacional, e um dia esteve a pique de quebrar a cara dum sujeitinho que fingiu não reconhecê-lo na rua. (O calhorda devia-lhe favores!)
De volta a Antares, contou as “novidades” aos amigos da roda de chimarrão da Imaculada, e uma noite visitou com a mulher a casa dos Campolargos, pois pelo telefone prometera a Quita, sua “inimiga íntima”, um relatório verbal sobre sua viagem “à Corte”, do ponto de vista político - que era o único que realmente interessava a mulher de Zózimo.
Quando estavam os dois casais acomodados na sala de visitas dos Campolargos, sob o olhar vigilante do falecido Benjamim, ali presente num retrato a óleo de meio-corpo – os homens acenderam os seus palheiros, após o café, e as mulheres apanharam os seus trabalhos de tricô, baixaram a cabeça e puseram-se a movimentar as agulhas.
Durante alguns minutos falou-se do rigor daquele inverno – a umidade agravava o reumatismo de D. Briolanja e não fazia nenhum bem à asma de D. Quitéria – e depois cavou-se um silêncio, seguido da esperada pergunta da senhora da casa:
– E então... como vai o teu “amigo”?
Tibério, as mãos trançadas contra o volumoso ventre, as pernas abertas, como se estivesse cavalgando a poltrona e não sentado nela, disse:
– O Getúlio está jodido.
– Tibé! – exclamou Lanja, erguendo brusca a cabeça, as orelhas subitamente avermelhadas. Zózimo sorriu ca-nhestro. Quita, porém, soltou uma risadinha em que se notava um leve ronrom de gato. Costumava dizer a amigos e familiares que não tinha medo nem vergonha de palavras.
– Diga por que, Tibé – pediu ela. – Mas não me venhas com potocas.
– Ué!? Por que eu havia de mentir?
– Sempre puxas brasa para a tua sardinha pessedista que, por sinal, já está podre.
Tibé sorriu, remexeu-se na cadeira, cocou disfarçada-mente uma das virilhas e começou:
– O governo está enfrentando uma crise brabíssima. Acho que este vai ser ou, melhor, já está sendo o pior ano de toda a vida política do Getúlio.
– Começou com o manifesto dos coronéis – disse Zózimo, enquanto Tibé era sacudido por um repentino acesso de tosse bronquítica, que lhe tingiu a cara duma escura purpura, fazendo-o lacrimejar. Quando pôde de novo falar, disse com voz meio apagada:
– Deve ter sido duro para o Homem demitir o seu filho político e espiritual do Ministério do Trabalho. A oposição exigiu a cabeça do Jango Goulart...
Zózimo lembrou a campanha que desde o início do ano fazia o Estado de São Paulo, que chamava Jango de alter ego de Getúlio Vargas e acusava-o de chefe do “peronismo brasileiro”.
– E por acaso não será? – perguntou Quita. – O Getúlio e o Jango é que encorajam os operários a fazerem greves e ameaças. Não se tem mais sossego neste país. E depois, onde se viu fazer um aumento de 100% nos salários mínimos?
– Ó Quita – interveio Zózimo, com sua habitual cordura. – Como é que os trabalhadores podem viver com esses salários de fome?
– Vivem – replicou a esposa. – Deus é grande. Vivem e se reproduzem como coelhos.
– Bom – continuou Tibério – o que a oposição afirma e certos jornais de responsabilidade glosam, é que o Getúlio mesmo provoca toda essa inquietação social para criar um clima de confusão do qual ele pessoalmente possa tirar proveito. Dizem que está procurando pretextos para evitar as eleições presidenciais e continuar no poder.
Quitéria ergueu a cabeça:
– A solução mais decente, por legal, foi a que propôs na Câmara a bancada da U.D.N. O impeachment. E se a coisa não saiu foi porque os deputados do teu P.S.D., Tibé, se juntaram com os do P.T.B. para derrotar a moção ude-nista. Te lembras da mensagem que o Getúlio apresentou ao Congresso, em março passado? Foi dum nacionalismo tão exagerado, que assustou meio mundo. Com esse seu anti-americanismo, ele vai acabar levando o Brasil pro lado de Moscou...
– Esperem! – exclamou Tibério. – Vocês não sabem do melhor... ou do pior. Sei de fonte segura que o Getúlio anda apático, desinteressado de tudo e de todos, mal lê os papéis que assina, cochila nas audiências e nas reuniões do Ministério. Enfim, não é o mesmo homem de outros tempos.
– Está velho... – murmurou Quita, de cabeça baixa, como se dissesse um segredo às suas agulhas e ao seu fino »o de lã.
– Não é isso – protestou Tibério. – Afinal de contas ele tem só setenta e dois anos... que diabo! O que está acontecendo é que o Homem anda desiludido, desencantado. Descobriu finalmente que não tem amigos, que está cercadode aproveitadores sem escrúpulos, com raras exceções.
– Quem semeia ventos – sentenciou a dona da casa – colhe tempestades. O diabo é que nesse caso a tempestade cai sobre a cabeça de todos os brasileiros.
– A U.D.N. – prosseguiu o Cel. Vacariano – desde o princípio do ano abriu as suas baterias contra o Catete. Vocês têm lido os artigos do Carlos Lacerda? Que panfletário! Que mestre da violência verbal! Seus escritos estão demolindo pouco a pouco o governo do Getúlio. Palavra de honra, se esse moço tivesse dito na imprensa sobre a minha pessoa a metade do que disse sobre o Getúlio, eu tomava um avião, ia ao Rio e metia-lhe um balaço em cada olho, palavra.
Sem erguer a cabeça, Quita troçou:
– Deixa de prosa, Tibé. O Lacerda não ia gastar pólvora em chimango.
– Mas não acredito – observou Zózimo – que o Getúlio tenha obtido qualquer resultado financeiro pessoal com esses negócios de crédito irregulares do Banco do Brasil e essas outras indecências de que está sendo acusado pela U.D.N.
Tibé reacendeu o palheiro e disse:
– Em matéria de dinheiro o Getúlio é um homem honesto. Mas finge que não vê certas safadezas que se fazem a seu redor. A sua técnica é a de corromper para governar. E nunca se roubou tanto, nunca se fez tanta negociata à sombra do Getúlio e em nome dele como neste seu atual quatriênio. Parece que no Catete todo o mundo está dançando uma espécie de galope final.
Neste ponto Quitéria ergueu os olhos sem mover a cabeça, e esse seu gesto eqüivalia a dizer: “Olhem só quem está falando em negociatas...”
Tibério põe-se de pé, subitamente animado-.
– Ah! Ainda não contei o melhor a vocês. A grande figura desta República é o negro Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do Getúlio.
– Dizem que está rico... – murmurou Lanja.
– Milionário – reforçou Quita. – Que vergonha! Temos no Brasil uma Eminência Negra!
– E nesta infeliz República – prosseguiu Tibério – o Gregório tem mais força que muito ministro. Escutem esta, que é muito boa... Um dia tive de ir ao Catete...
– Não me digas que foste outra vez procurar o Ge-túlio pra fazer as pazes com ele! – interrompeu-o a dona da casa.
– Deixa o Tibé falar, Quita – pediu Zózimo.
– Qual pazes qual nada! Vamos falar com franqueza. Se o governo do Homem está por um fio, a troco de que santo havia eu de entrar agora nessa canoa furada? Bom, mas é que precisei movimentar um requerimento e fui ao Catete me entender com um oficial de gabinete com quem tenho ainda boas relações. Entrei no palácio, me meti por uns corredores meus velhos conhecidos e de repente, sem saber como. me vi na sala onde o Gregório costuma dar as suas audiências... E que vejo? Lá estava o crioulo como um potentado africano, sentado numa cadeira, com uma toalha amarrada ao pescoço, um barbeiro escanhoando o rosto dele, uma manicura ao lado polindo as suas unhas... O negrão estava cercado pelos seus pistoleiros, moços de recado, enfim, pelos membros da sua corte. Quando me viu entrar, nem se dignou a me dar bom dia. Também fingi que não tinha visto ele e fiz meia volta. Um de seus apaniguados estava dizendo qualquer coisa sobre o João Goulart e, antes de sair, ouvi o Gregório dizer em voz alta, com um ar de superioridade: “O Jango é um premário!”
As mulheres pareciam mais entretidas nos seus trabalhos de agulha que nas estórias de Gregório Fortunato. Mas Zózimo sacudiu a cabeça dum lado para o outro, exprimindo a sua consternação ante tudo aquilo.
– E o- pior – continuou Tibério – é que senadores e outros figurões da República adulam o negrão, mandam-lhe presentes e bilhetinhos com pedidos.
– Pobre do Dr. Getúlio! – suspirou Lanja, que sem-pre tivera uma afeição quase maternal pelo homenzinho de São Bor ja.
O olho bom do retrato de Benjamim Campolargo parecia contemplar o grupo que ali estava na sala, com a mesma fixidez meio perplexa com que, havia quase trinta anos, fitara uma escarradeira de louça pintada, no dia em que o jovem deputado Getúlio Vargas, com sua lábia e a sua simpatia pessoal, persuadira-o a apertar a mão de seu arqui-inimigo, Xisto Vacariano. Como se também tivesse pensado nesse remoto acontecimento, Tibério ergueu a cabeça, mirou demoradamente o retrato do patriarca dos Campolargos e, sem tirar o cigarro da boca, disse:
– Este mundo velho dá cada voltai
Nenhum dos presentes contestou estas palavras.

XLI
Foi na casa da amante que, em princípios daquele frio e chuvoso agosto, Tibério Vacariano ouviu, pelo rádio que tinha sobre a mesinha de cabeceira, uma notícia urgente que o deixou estarrecido. No Rio de Janeiro dois desconhecidos haviam atentado contra a vida de Carlos Lacerda, à frente de sua casa, na Rua Toneleros, tendo assassinado um oficial da aeronáutica, o Maj. Rubens Florentino Vaz, que estava em companhia do diretor da Tribuna da Imprensa. Lacerda recebera num dos pés um ferimento sem gravidade, e os assaltantes haviam fugido.
Tibério, que estava deitado ao lado de Cleo, conduzindo Blau Nunes numa das suas andanças ereto-anatômicas pelo corpo da rapariga, ergueu-se rápido, exclamando: “A Ia fresca! A Ia fresca 1” E assim nu como estava, sentou-se na beira da cama para escutar o resto da notícia. Lacerda tinha visto ambos os assaltantes, que haviam escapado num automóvel. O estúpido crime causara indignação geral e havia já grande agitação nos meios políticos, militares e populares do Rio de Janeiro.
“É o fim do Getúlio”‘ – refletiu Tibério enqu?nto se vestia, depois duma excursão quase frustrada à furna do Jarau, da qual aquela vez trouxera não dobrões de ouro, mas escassas moedas de cobre azinhavrado. “Agora estão perdidos. . . Mexeram com os milicos. . . É o mesmo que bolir em casa de marimbondos. E o fim.” E tocou para casa.
No dia seguinte o assassinio do Maj. Vaz e o atentado contra a vida de Carlos Lacerda eram o assunto único na “rodinha da Imaculada”. Mais notícias haviam chegado. Um dos telegramas resumia um editorial do jornal O Globo: Getúlio Vargas atingiu ontem, pela força dos imprevistos, um dos pontos decisivos da sua carreira política. Ou S. Ex.a reconhece com suas providenciais antenas esse clamor de justiça que rompe de todas as bocas, não se fazendo nem por omissão cúmplice de seus amigos ou com estes submerge na renúncia aos deveres contraídos com o povo nas urnas em 1950. Não lhe restam senão poucas horas para optar.
Os membros habituais da “rodinha” estavam excitados. Logo que Tibério chegou à farmácia – o chimarrão se tomava a um canto, no fundo do laboratório – perguntas lhe foram atiradas, como dardos. Que era que ele pensava da situação? Quem tinha sido o mandante do atentado? Que aconteceria agora que dois mil oficiais aviadores se haviam reunido no Clube da Aeronáutica para estudar o caso e tinham decidido conduzir um inquérito próprio, paralelamente ao que estava sendo feito pelo Ministério da Justiça?
Tibério sentou-se, pegou a cuia, procurou esquentar ao seu contato as mãos enregeladas, deu o primeiro chupão na bomba de prata, provou o mate e finalmente disse com ar profético :
– Aposto como o Getúlio não passa o próximo Natal no Rio. Antes de dezembro está de volta à estância do Itu, deposto pelas Forças Armadas!
– Mas achas que foi ele o mandante do atentado?
– Não. Conheço bem o Presidente. Não seria capaz duma barbaridade dessas. Estou certo de que alguém do seu grupo de áulicos mandou fazer o serviço no Lacerda com a intenção de ser agradável ao Velho. Um dos mandatários errou a pontaria e matou o pobre do Maj. Vaz. Serviço mui porco.
O proprietário da farmácia, que aviava uma receita, metido no seu imaculado guarda-pó branco, disse em voz alta:
– Deus escreve direito por linhas tortas.
– Torta era a pontaria do bandido – retorquiu Tibério. – E não vejo por quê Deus havia de ser mais do lado do Lacerda que do major. Reconheço que às vezes Deus tem também uma pontaria miserável, Ele que me perdoei
– Mas quem foi o mandante? – tornou a perguntar um dos amigos.
Aventaram-se nomes. Benjamim Vargas? Gregório Fortunato? Luterò Vargas? Quem? Quem?
Tibério devolveu a cuia ao companheiro que estava perto da chaleira dágua quente, e, com um sorriso pícaro, improvisou:
– Hoje cedinho escrevi o nome do autor do atentado num pedacinho de papel que botei dentro dum envelope lacrado e depois fechei no cofre. Vou abrir esse envelope no dia em que o pessoal da Aeronáutica agarrar os criminosos e descobrir o nome do mandante.
Houve um silêncio geral, pois as “farsas” do Tibério eram demasiadamente conhecidas daquela companhia.
– Por que não nos dizes agora esse nome? – perguntou um dos mais assíduos membros do grupo.
– Se vocês quiserem fazer uma aposta comigo, que cada um escreva um nome num papel, meta esse papel num envelope e depois entregamos todos os envelopes ao gerente do Banco da Província para serem abertos no dia em que a Justiça divulgar a identidade do autor intelectual do atentado. Aposto com cada um de vocês dois bois Poleangos.
– Tu de novo com os teus Poleangos! – exclamou Zózimo, com ar cansado. – Aposto como estás blefando, isso sim. Mas não vou pagar pra ver.

XLII
Lucas Faia, diretor de A Verdade, tinha mandado instalar uma sereia à frente da redação de seu jornal. Sempre que havia uma notícia importante relativa ao crime, ele fazia funcionar essa sereia e em breve atraía uma pequena multidão à frente do quadro-negro em que ele pregava um papel com os dizeres do último telegrama recebido pelo jornal. Foi assim que a população de Antares acompanhou dia a dia, quase hora a hora, o desenvolvimento das investigações.
Um membro da guarda pessoal do Presidente da República tinha sido identificado como o chefe dos assaltantes. Os oficiais das Forças Aéreas haviam publicado uma nota violenta contra o governo. Na Câmara, deputados da oposição pronunciavam veementes discursos sugerindo o afastamento de Getúlio Vargas da Presidência da República. A guarda pessoal do Presidente tinha sido dissolvida. O “tenente” Gregório Fortunato havia sido submetido a um longo interrogatório. As investigações da Aeronáutica continuavam numa fúria febril mas metódica. Fora finalmente descoberto e preso o motorista do carro’ que dera fuga aos assaltantes logo após o crime. Havia agitações populares nas ruas do Rio de Janeiro. Tinha-se a impressão de que grande parte do povo responsabilizava indiretamente Getúlio Vargas pelo crime.
O noticiário de rádio do dia 12 reproduzia trechos do interrogatório de Gregório que, a certa altura, dissera: “Doutor, eu sou um negro muito posudo. Sou muito esquisito e só me meto naquilo que me diz respeito”. À pergunta “Você meteu a mão nisso, Gregório?” respondeu: “Não. Tenho matado peleando. Não sou homem que possa ser assalariado para matar alguém”. O noticiário informava também que, nos intervalos do interrogatório, Gregório lia o Fouché de Stefan Zweig, o seu livro predileto.
– Além de bandido, pernóstico! – comentou Tibério vacariano.
Na tarde do dia 14, a sereia de A Verdade tornou a soar para anunciar a notícia de que o Gen. Eurico Gaspar Dutra achava aconselhável a renúncia de Vargas. Houve protestos da parte de populares getulistas à frente da redação do diário antarense. Guardas da polícia municipal tiveram de intervir para separar um udenista e um trabalhista que, depois de se filho-da-putearem abundantemente, estavam já de revólver na mão.
Passaram-se os dias. Pelos noticiários dos jornais e das estações de rádio, ficava claro que as investigações da polícia tinham recuado para um segundo plano e quem realmente conduzia a busca dos criminosos eram os oficiais das Forças Aéreas. Um dos suspeitos tinha sido localizado, caçado e acuado como um animal, numa zona pantanosa, por cento e setenta membros da Aeronáutica, e fora capturado vivo ao cabo de vinte horas de implacável perseguição.
Dentro em pouco chegava-se à conclusão de que o mandante do atentado fora mesmo Gregório Fortunato, o anjo da guarda negro do Presidente.
Uivou a sereia de A Verdade e lá estava no quadro-negro uma notícia sensacional. O Ministro da Aeronáutica achava que os políticos tinham meios legais para obrigar o Presidente a deixar o poder. O Governador do Estado de Pernambuco manifestava-se também a favor da renúncia de Getúlio Vargas. O Ministro da Guerra havia determinado prontidão rigorosa para o Exército. No Rio tinham curso os boatos mais desencontrados.
Num discurso feito em Belo Horizonte, havia menos de duas semanas, Getúlio Vargas declarara que não renunciaria, e que havia de cumprir o seu mandato até ao fim.
No dia 22 de agosto um grupo de oficiais das Forças Aéreas encabeçado pelo Brig.ro Eduardo Gomes publicou um manifesto em que se exigia a renúncia do Presidente da República.
Getúlio, porém, recusava abandonar o seu posto, dizendo-. “Daqui só saio morto. Estou muito velho para ser desmoralizado e já não tenho, razões para temer a morte”.