quinta-feira, 9 de abril de 2009

Discurso Sobre a Servidão Voluntária

Apresenta
Discurso Sobre a Servidão Voluntária
Etienne de La Boétie
Palavras iniciais
Etienne de La Boétie morreu aos 33 anos de idade, em 1563. Deixou sonetos, traduções de Xenofonte e Plutarco e o Discurso Sobre a Servidão Voluntária, o primeiro e um dos mais vibrantes hinos à liberdade dentre os que já se escreveram.
O Discurso foi publicado após a
Toda a sua obra ficou como legado ao filósofo Montaigne (1533 – 1592), seu amigo pessoal que, diante de uma primeira publicação – pirata – do Discurso em 1571, viu-se obrigado a se pronunciar a respeito da Obra, que procura minimizar em seus efeitos apodando-lhe o epíteto de “obra de infância” e “mero exercício intelectual”. Montaigne, com todo o seu inegável brilho intelectual, era um Homem do Estado e disso não escapava.
Entre muitos pontos importantes e relevantes do Discurso em si, ressalta-se:
_ O poder que um só homem exerce sobre os outros é ilegítimo.
_ A preferência pela república em detrimento da monarquia.
_ As crenças religiosas são frequentemente usadas pelas monarquias para manter o povo sob sujeição e jugo.
_ Etienne de La Boétie afirma no Discurso a liberdade e a igualdade de todos os homens na dimensão política.
_ Evidencia, pela primeira vez na história, a força da opinião pública.
_ Repele todas as formas de demagogia.
_ Incursionando pioneiramente pelo que mais tarde ficará conhecido como psicologia de massas, informa da irracionalidade da servidão, desde o título provocativo da Obra, indicada como uma espécie de vício, de doença coletiva.
O Discurso, que no século XVI Montaigne considerava difícil prefaciar, hoje em dia é ainda tristemente atual.
O ser humano encontra-se em amarras auto-infligidas por toda a parte. Como dizia Manuel J. Gomes, importante tradutor de La Boétie para o português:
“Se em 1600 era tarefa difícil escrever um prefácio a La Boétie, hoje não é mais fácil. Hoje como nos tempos de La Boétie e Montaigne, a alienação é demasiado doce (como um refrigerante) e a liberdade demasiado amarga, porque está demasiado próxima da solidão. E da loucura.”
LCC – verão de 2004
Discurso Sobre a Servidão Voluntária
Etienne de La Boétie
Muita gente a mandar não me parece bem;
Um só chefe, um só rei, é o que mais nos convém.
Assim proclamava publicamente Ulisses em Homero [Homero, Ilíada, cap. II] Teria toda a razão se tivesse dito apenas:
Muita gente a mandar não me parece bem.
Deveria, para ser mais claro, ter explicado que o domínio de muitos nunca poderia ser boa coisa pela razão de o domínio de um só que usurpe o título de soberano ser já assaz duro e pouco razoável; em vez disso, porém, acrescentou:
Um só chefe, um só rei, é o que mais nos convém.
Uma única desculpa terá Ulisses e é a necessidade que teve de recorrer a tais palavras para apaziguar as tropas amotinadas, adaptando (julgo) o discurso às circunstâncias mais do que à verdade.
Vistas bem as coisas, não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe; nunca se pode confiar na bondade dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver.
Ter vários amos é ter outros tantos motivos para se ser extremamente desgraçado.
Não quero por enquanto levantar o discutidíssimo problema de saber se as outras formas de governar a coisa pública são melhores do que a monarquia. A minha intenção é antes interrogar-me sobre o lugar que à monarquia cabe, se algum lhe cabe, entre as mais formas de governar. Porque não é fácil admitir que o governo de um só tenha a preocupação da coisa pública.
É melhor, todavia, que esse problema seja discutido separadamente, em tratado próprio, pois é daqueles que traz consigo toda a casta de disputas políticas.
Quero para já, se possível, esclarecer tão-somente o fato de tantos homens, tantas vilas, cidades e nações suportarem às vezes um tirano que não tem outro poder de prejudicá-los enquanto eles quiserem suportá-lo; que só lhes pode fazer mal enquanto eles preferem agüentá-lo a contrariá-lo.
Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quanto impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente.
Tal é a fraqueza humana: temos frequentemente de nos curvar perante a força, somos obrigados a contemporizar, não podemos ser sempre os mais fortes.
Se, portanto, uma nação é pela força da guerra obrigada a servir a um só, como a cidade de Atenas aos trinta tiranos, não nos espanta que ela se submeta; devemos antes lamentá-la; ou então, não nos espantarmos nem lamentarmos mas sofrermos com paciência e esperarmos que o futuro traga dias mais felizes.
Está na nossa natureza o deixarmos que os deveres da amizade ocupem boa parte da nossa vida. É justo amarmos a virtude, estimarmos as boas ações, ficarmos gratos aos que fazem o bem, renunciarmos a certas comodidades para melhor honrarmos e favorecermos aqueles a quem amamos e que o merecem. Assim também, quando os habitantes de um país encontram uma personagem notável que dê provas de ter sido previdente a governá-los, arrojado a defendê-los e cuidadoso a guiá-los, passam a obedecer-lhe em tudo e a conceder-lhe certas prerrogativas; é uma
prática reprovável, porque vão acabar por afastá-lo da prática do bem e empurrá-lo para o mal. Mas em tais casos julga-se que poderá vir sempre bem e nunca mal de quem um dia nos fez bem.
Mas o que vem a ser isto, afinal?
Que nome se deve dar a esta desgraça? Que vício, que triste vício é este: um número infinito de pessoas não a obedecer, mas a servir, não governadas mas tiranizadas, sem bens, sem pais, sem vida a que possam chamar sua? Suportar a pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais dariam o sangue e a vida, mas de um só? Não de um Hércules ou de um Sansão, mas de um só indivíduo, que muitas vezes é o mais covarde e mulherengo de toda a nação, acostumado não tanto à poeira das batalhas como à areia dos torneios, menos dotado para comandar homens do que para ser escravo de mulheres?
Chamaremos a isto covardia? Temos o direito de afirmar que todos os que assim servem são uns míseros covardes?
É estranho que dois, três ou quatro se deixem esmagar por um só, mas é possível; poderão dar a desculpa de lhes ter faltado o ânimo. Mas quando vemos cem ou mil submissos a um só, não podemos dizer que não querem ou que não se atrevem a desafiá-lo.
Como não é covardia, poderá ser desprezo, poderá ser desdém? Quando vemos não já cem, não já mil homens, mas cem países, mil cidades e um milhão de homens submeterem-se a um só, todos eles servos e escravos, mesmo os mais favorecidos, que nome é que isto merece? Covardia?
Ora todos os vícios têm naturalmente um limite além do qual não podem passar. Dois podem ter medo de um, ou até mesmo dez; mas se mil homens, se um milhão deles, se mil cidades não se defendem de um só, não pode ser por covardia.
A covardia não vai tão longe, da mesma forma que a valentia também tem os seus limites: um só não escala uma fortaleza, não defronta um exército, não conquista um reino.
Que vício monstruoso então é este que sequer merece o nome vil de covardia? Que a natureza nega ter criado, a que a língua se recusa nomear?
Disponham-se de um lado cinqüenta homens armados e outros tantos de outro lado; ponham-se em ordem de batalha, prontos para o combate, sendo uns livres e lutando pela liberdade, enquanto os outros tentam arrebatá-la dos primeiros: a quais deles, por conjectura, se atribui a vitória? Quais deles irão para a luta com maior entusiasmo:
os que, em recompensa deste trabalho receberão o prêmio de conservar a liberdade ou os que, dos golpes que derem ou receberem, esperam tão-somente a servidão?
Os primeiros têm constantemente diante dos olhos a felicidade de sua vida passada, a esperança de no porvir a poderem conservar. Preocupa-os menos o que têm de sofrer no decurso da batalha do que tudo o que vão ter de suportar eles, os filhos e toda a posteridade. Os outros nada têm que os anime, a não ser um pouco de cobiça que é insuficiente para protegê-los do perigo e tão pouco ardente que não tardará a extinguir-se logo que derramem as primeiras gotas de sangue.
Nas muito famosas batalhas de Milcíades, Leônidas e Temístocles, travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem, nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro, donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar? E para desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam soldados que chegassem para preencherem, se tal fosse mister, os postos de comandantes desses navios?
É que, em boa verdade, o que estava em causa nesses dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da liberdade sobre a dominação, da razão sobre a cupidez.
Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem!
Mas o que acontece afinal em todos os países, com todos os homens, todos os dias?
Quem, só de ouvir contar, sem o ter visto, acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades, privando-as da liberdade?
Se casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros no-los contassem, quem não diria que era tudo invenção e impostura?
Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermos-nos dele.
Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo.
Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma.
Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio.
São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir.
É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.
Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem?
Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre.
Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la?
Se basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil?
Como pode alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna, para as pessoas honradas, a vida aborrecida e a morte salutar?
Veja-se como, ateado por pequena fagulha, acende-se o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontra, tanta mais consome; e como, sem se lhe despejar água, deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir, a si próprio se consome, perde a forma e deixa de ser fogo.
Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem umidade e alimento, se torna ramo seco e morto.
Os audazes, para que obtenham o que procuram, não receiam perigo algum, os avisados não recusam passar por problemas e privações. Os covardes e os preguiçosos não sabem suportar os males nem recuperar o bem. Deixam de desejá-lo e a força para o conseguirem lhes é tirada pela covardia, mas é natural que neles fique o desejo de o alcançarem. Esse desejo, essa vontade, são comuns
aos sábios e aos indiscretos, aos corajosos e aos covardes; todos eles, ao atingirem o desejado, ficam felizes e contentes.
Numa só coisa, estranhamente, a natureza se recusa a dar aos homens um desejo forte. Trata-se da liberdade, um bem tão grande e tão aprazível que, perdida ela, não há mal que não sobrevenha e até os próprios bens que lhe sobrevivam perdem todo o seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão.
A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter.
Gentes miserandas, povos insensatos, nações apegadas ao mal e cegas para o bem!
Assim deixais que vos arrebatem a maior e melhor parte das vossas riquezas, que devastem os vossos campos, roubem as vossas casas e vo-las despojem até das antigas mobílias herdadas dos vossos pais!
A vida que levais é tal que (podeis afirmá-lo) nada tendes de vosso.
Mas parece que vos sentis felizes por serdes senhores apenas de metade dos vossos haveres, das vossas famílias e das vossas vidas; e todo esse estrago, essa desgraça, essa ruína provêm afinal não dos seus inimigos, mas de um só inimigo, daquele mesmo cuja grandeza lhe é dada só por vós, por amor de quem marchais corajosamente para a guerra, por cuja grandeza não recusais entregar à morte as vossas próprias pessoas.
Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes.
Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis?
Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas?
Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos?
Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha?
Como ousaria ele perseguir-vos sem a vossa própria conivência?
Que poderia ele fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba, cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos?
Semeais os vossos frutos para ele pouco depois calcar aos pés. Recheais e mobiliais as vossas casas para ele vir saqueá-las, criais as vossas filhas para que ele tenho em quem cevar sua luxúria.
Criais filhos a fim de que ele, quando lhe apetecer, venha recrutá-los para a guerra e conduzi-los ao matadouro, fazer deles acólitos da sua cupidez e executores das suas vinganças.
Matai-vos a trabalhar para que ele possa regalar-se e refestelar-se em prazeres vis e imundos.
Enquanto vós definhais, ele vai ficando mais forte, para mais facilmente poder refrear-vos.
E de todas as ditas indignidades que os próprios brutos, se as sentissem, não suportariam, de todas podeis libertar-vos, se tentardes não digo libertar-vos, mas apenas querer fazê-lo.
Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis, mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará.
Os médicos aconselham a não se tocar com a mão nas chagas incuráveis; não é, pois, sensato que eu dê conselhos a um povo que há muito perdeu a consciência e cuja doença, uma vez que ele já não sente dor, é evidentemente mortal. Temos, antes, de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural.
Antes demais, eu creio firmemente que, se nós vivêssemos de acordo com a natureza e com os seus ensinamentos, seríamos naturalmente obedientes ao país, submissos à razão e de ninguém escravos.
Todos os homens, por si próprios, sem outro conselho que não seja o da natureza, guardam obediência ao pai e à mãe; quanto à razão, discutem muito os acadêmicos e todas as escolas filosóficas se ela nasce ou não conosco.
De momento penso não errar se crer que há na nossa alma uma semente natural de razão, a qual, se cultivada com bons conselhos e bons costumes, floresce em virtude; se, pelo contrário, é atacada pelos vícios, morre de asfixia e aborta.
Uma coisa é claríssima na natureza, tão clara que a ninguém é permitido ser cego a tal respeito, e é o fato de a natureza, ministra de
Deus e governanta dos homens, nos ter feito todos iguais, com igual forma, aparentemente num mesmo molde, de forma a que todos nos reconhecêssemos como companheiros ou mesmo irmãos.
Ao fazer as partilhas dos dons que nos legou, deu, mais a uns do que a outros, certos dons corporais e espirituais; mas é igualmente certo que não pretendeu pôr-nos neste mundo como em campo fechado, nem deu aos mais fortes e aos mais avisados ordem para, quais salteadores emboscados no mato e armados, dizimarem os mais fracos.
É de crer, isso sim, que, favorecendo alguns e desfavorecendo outros, pretendia dar lugar à fraterna afeição, dar-lhes meios de se manifestar, pois se a uns assiste o poder de ajudar, os outros tinham necessidade de ser ajudados.
Esta boa mãe deu-nos a todos a terra para nela morarmos, albergou-nos a todos numa mesma casa, moldou-nos a todos numa mesma massa, para assim todos podermos mirar-nos e reconhecer-nos uns nos outros; a todos em comum outorgou o grande dom da voz e da palavra para sermos mais amigos e mais irmãos e, pela comum e mútua declaração dos nossos pensamentos, estabelecermos a comunhão de nossas vontades.
E pois ela buscou por todos os meios apertar e estreitar mais fortemente os nós da nossa aliança e sociedade, e por todas as formas mostrou mais desejar ver-nos unidos do que unos, não há dúvida de que somos todos companheiros e ninguém poderá jamais admitir que a natureza, integrando-nos a todos numa sociedade, tenha destinado uns para escravos.
Não importa verdadeiramente discutir se a liberdade é natural, provado que esteja ser a escravidão uma ofensa para quem a sofre e uma injúria à natureza que em tudo quanto faz é razoável.
Não há dúvidas, pois, de que a liberdade é natural e que, pela mesma ordem e de idéias, todos nós nascemos não só senhores da nossa alforria mas também com condições para a defendermos.
Se acaso pusermos isso em dúvida e descermos tão baixo que não sejamos capazes de reconhecer qual o nosso direito e as nossas qualidades naturais, vou ter de vos tratar como mereceis e por os próprios animais a dar-vos lições e a ensinar-vos qual é vossa verdadeira natureza e condição.
Só quem for surdo não ouve o que dizem os animais: viva a liberdade! Muitos deles morrem quando os apanham. Como o peixe
que, fora da água, perde a vida, também outros animais se negam a viver sem a liberdade que lhes é natural.
Se os animais estabelecessem entre si quaisquer grandezas e proeminências, fariam (creio firmemente) da liberdade a sua nobreza.
Alguns há que, dos maiores aos menores, ao serem presos, opõem resistência com as garras, os chifres, as patas e o bico, demonstrando assim claramente o quanto prezam a liberdade perdida. E uma vez no cativeiro, dão evidentes sinais do conhecimento que têm da sua desgraça e deixam ver perfeitamente que se sentem mais mortos do que vivos, continuando a viver mais para lamentarem a liberdade perdida do que por lhes agradar a servidão.
O que quer dizer o elefante que, depois de se defender até mais não poder, sentindo-se impotente e prestes a ser apanhado, espeta as presas nas árvores e as quebra, assim mostrando o grande desejo que tem de continuar livre como nasceu?
Assim dá a entender que deseja negociar com os caçadores, dando-lhes os dentes para que o soltem, entregando-lhes o marfim em penhor da liberdade.
Começamos a domesticar o cavalo, desde o momento em que ele nasce, preparamo-lo para nos servir e não podemos glorificar-nos de que, uma vez domado, ele não morde o freio e não se empina quando o esporeamos, como se (assim parece) quisesse mostrar à natureza e testemunhar por essa forma que serve não de boa vontade mas por ser obrigado a servir.
Que dizer perante isto? Que
Até os bois sob o jugo andam gemendo
E na gaiola as aves vão chorando
como escrevi no tempo em que versejava à francesa (não receio, escrevendo-te me particular, citar versos meus, coisa que nunca faço; como tens mostrado gostar deles, não me acusarás de ser pretensioso).
Todas as coisas que têm sentimento sentem a dor da sujeição e suspiram pela liberdade; as alimárias, feitas para servirem o homem não são capazes de se habituar à servidão sem protestarem desejos contrários.
A que azar, pois, se deverá que o homem, livre por natureza, tenha perdido a memória da sua condição e o desejo de a ela regressar?
Há três espécies de tiranos. Refiro-me aos maus príncipes. Chegam uns ao poder por eleição do povo, outros por força das armas, outros sucedendo aos da sua raça.
Os que chegam ao poder pelo direito da guerra portam-se como quem pisa terra conquistada.
Os que nascem reis, as mais das vezes, não são melhores; nascidos e criados no sangue da tirania, tratam os povos em quem mandam como se fossem seus servos hereditários; e, consoante a compleição a que são mais atreitos, avaros ou pródigos, assim fazem do reino o que fazem com outra herança qualquer.
Aquele a quem o povo deu o Estado deveria ser mais suportável; e sê-lo-ia a meu ver, se, desde o momento em que se vê colocado em altos postos e tomando o gosto à chamada grandeza, não decidisse ocupá-los para todo o sempre. O que geralmente acontece é tudo fazerem para transmitirem aos filhos o poder que o povo lhes concedeu. E, tão depressa tomam essa decisão, por estranho que pareça, ultrapassam em vício e até em crueldade os outros tiranos; para conservarem a nova tirania, não acham melhor meio do que aumentar a servidão e afastar tanto dos súditos a idéia de liberdade que eles, tendo embora a memória fresca, começam a esquecer-se dela.
Assim, para dizer toda a verdade, encontro entre eles alguma diferença, mas não vejo por onde escolher.
Sendo diversos os modos de alcançar o poder, a forma de reinar é sempre idêntica.
Os eleitos procedem como quem doma touros; os conquistadores como quem se assenhoreia de uma presa a que têm direito; os sucessores como quem lida com escravos naturais.
Se acaso hoje nascesse um povo completamente novo, que não estivesse acostumado à sujeição nem soubesse o que é a liberdade, que ignorasse tudo sobre uma e outra coisa, incluindo os nomes, e se lhe fosse dado a escolher entre o ser sujeito ou o viver a liberdade, qual seria a escolha desse povo?
Não custa a responder que prefeririam obedecer à razão em vez de servirem a um homem; a não ser que se tratasse dos israelitas, os quais, sem ninguém os obrigar e sem necessidade, elegeram um tirano [I Samuel, capítulo 8]; mas nunca leio a história de tal povo sem uma grande decepção e alguma fúria, tanta que quase me alegro por lhe terem acontecido tantas desgraças.
Uma coisa é certa, porém: os homens, enquanto neles houver algo de humano, só de deixam subjugar se foram forçados ou enganados; enganados pelas armas estrangeiras, como Esparta e Atenas pelas forças de Alexandre, ou pelas facções, como aconteceu quando o governo de Atenas caiu nas mãos de Pisístrates [Pisístrates (600 – 527) foi por três vezes tirano de Atenas. Da primeira vez foi derrubado por Licurgo. Da segunda por Hermódio e Aristogíton. Deve-se, contudo, a Pisístrates a compilação das obras de Homero, como a Ilíada e a Odisséia.].
Muitas vezes perdem a liberdade porque são levados ao engano, não são seduzidos por outrem mas sim enganados por si próprios. Assim, o povo de Siracusa, cidade capital da Sicília, denominada hoje Saragoça [aqui Boétie se equivoca...], apertado pelas guerras, sem olhar a nada a não ser o perigo, elevou ao poder Dionísio Primeiro e entregou-lhe o comando do exército. Tantos poderes lhe foi dando que o velhaco, uma vez vitorioso, como se tivesse triunfado não sobre os inimigos, mas sobre os cidadãos, subiu de capitão a rei e de rei a tirano.
Incrível coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo esquecimento da liberdade que não desperta nem a recupera; antes começa a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece ter perdido não a liberdade mas a servidão.
É verdade que, a princípio, serve com constrangimento e pela força; mas os que vêm depois, como não conheceram a liberdade nem sabem o que ela seja, servem sem esforço e fazem de boa mente o que seus antepassados tinham feito por obrigação.
Assim é: os homens nascem sob o jugo, são criados na servidão, sem olharem para lá dela, limitam-se a viver tal como nasceram, nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer, aceitam como natural o estado que acharam à nascença.
E todavia não há herdeiro tão pródigo e desleixado que uma vez não passe os olhos pelos livros de registros, para ver se goza de todos os direitos hereditários e se não foi esbulhado nos seus direitos, ele ou o seu predecessor.
Mas o costume, que sobre nós exerce um poder considerável, tem uma grande orça de nos ensinar a servir e (tal como de Mitrídates se diz que aos poucos foi se habituando a beber veneno) a engolir tudo até que deixamos de sentir o amargor do veneno da servidão.
Não pode negar-se que a natureza tem força para nos levar aonde ela queira e fazer a nós livres ou escravos; mas importa confessar que ela tem sobre nós menos poder do que o costume e que a natureza, por muito boa que seja, acaba por se perder se não for tratada com os cuidados necessários; e o alimento que comemos transmite-nos muito de seu, faça a natureza o que fizer.
As sementes do bem que a natureza em nós coloca são tão pequenas e inseguras que não agüentam o embate do alimento contrário. Não se mantêm facilmente, estragam-se, desfazem-se, reduzem-se a nada. Como acontece com as árvores de fruto, possuidoras de uma natureza própria que conservarão enquanto as deixarem; mas passarão a ter outra e a dar frutos estranhos, não os delas, a partir do momento em que sejam enxertadas.
As ervas têm cada uma a sua propriedade, a sua natureza e a sua singularidade próprias; mas o frio, o tempo, a terra ou a mão do jardineiro acrescentam-lhe ou tiram-lhe muitas das suas virtudes. Vê-se num sítio uma planta que outro sítio não reconhece.
Vejam-se os venezianos, um punhado de pessoas livres, tanto que até o pior de todos se recusaria a ser rei, nascidos e criados de tal modo que a grande ambição deles é defenderem ciosamente a liberdade de cada um; educados desde o berço nestes princípios, não aceitariam todas as outras felicidades da terra, se para isso tivessem de perder a menor de suas liberdades. Vejam-se os venezianos, repito, e repare-se depois nos que habitam as terras daquele a que chamamos Grão-Senhor, gente que nada mais faz do que servi-lo e que, para o manterem no poder, dão a própria vida.
Diria quem visse uns e outros que possuem todos a mesma natureza?
Não julgaria antes que saíra de uma cidade de homens para entrar num curral de animais? Licurgo, reformador de Esparta, criara (diz-se) dois cães que eram irmãos, alimentados com o mesmo leite, um deles habituado a ficar na cozinha e o outro acostumado a correr pelo campo, ao som da trompa e da corneta; querendo mostrar ao povo lacedemônio que os homens são o que a educação faz de cada um, colocou os dois cães no meio da praça e, no meio deles, uma sopa e uma lebre. Um correu para o prato e o outro para a lebre. Muito embora (disse ele) fossem irmãos.
Lembrarei com prazer um dito dos favoritos de Xerxes, senhor da Pérsia, a respeito dos espartanos.
Quando Xerxes se aparelhava para conquistar a Grécia, mandou embaixadores às cidades gregas, a pedir-lhes água e terra. A Esparta e Atenas não os enviou, porque os enviados de seu pai, Dario que lá tinha ido fazer igual pedido, tinham-nos os espartanos e atenienses lançado em covas e outros em poços, dizendo-lhes que tirassem terra e água à vontade e que fossem levá-la a seu príncipe.
Nenhum daqueles povos tolerava que, sequer por palavras, alguém lhes tocasse na liberdade.
Por assim terem feito, viram os espartanos que tinham incorrido no ódio dos próprios deuses, especialmente no de Taltíbio, deus dos arautos.
Para os apaziguarem, mandaram a Xerxes dois cidadãos, para que fossem à presença dele e ele os tratasse como lhe aprouvesse, tirando assim a desforra dos embaixadores que seu pai enviara e tinham sido mortos. Dois espartanos, um de nome Specto e outro Bulis, ofereceram-se voluntariamente para esta missão.
Foram e, pelo caminho, entraram no palácio de um persa chamado Gidarno, lugar-tenente do rei em todas as cidades do litoral da Ásia. Este os recebeu com muita honraria. E como fossem conversando sobre vários assuntos, perguntou-lhes que motivos tinham para recusarem a amizade do rei. “Podeis crer, espartanos (dizia-lhes), juro-vos que o rei sabe honrar quem o merece e, se vos tornardes seus súditos, vereis que assim é. Se aceitardes e ele vos conhecer, vereis como será cada um de vós nomeado imediatamente senhor de uma cidade da Grécia.”
Ao que lhe responderam os lacedemônios: “Ruim conselho é o que nos dás, Gidarno. O bem que nos prometes, já o experimentaste, mas nada sabes do que nós já possuímos; gozas do favor do rei, mas nada sabes da liberdade, do gosto que ela tem, da sua doçura. Se a conhecesses, havias de nos aconselhar a defendê-la, não só com lança e escudo, mas até com unhas e dentes.”
O espartano é que tinha razão; mas um e outro falavam de acordo com o que tinham aprendido.
Não era possível ao persa avaliar a liberdade, pois nunca a tivera, nem ao lacedemônio aceitar a sujeição, depois de ter conhecido o gosto da liberdade.
Catão de Útica, quando era ainda menino de escola, entrava muitas vezes na casa do ditador Sila cujas portas lhe estavam abertas, não só por pertencer a uma família nobre, como até por ser parente próximo de Sila.
Acompanhava-o sempre o preceptor, como era costume entre os filhos de boas famílias.
Deu ele então conta de que em casa de Sila, na presença deste ou por sua ordem, muitos cidadãos eram presos e condenados, eram uns banidos e outros estrangulados, decretava-se a confiscação dos bens e era perdida a cabeça de muitos.
Ou seja, mais parecia o paço do tirano do que a morada do governador da cidade, era menos um tribunal de justiça do que uma espelunca da tirania.
Perguntou o nobre infante ao preceptor: “Dar-me-eis um punhal? Metê-lo-ei sob a toga e, como entro muitas vezes nos aposentos de Sila, antes de ele acordar, o meu braço há de ter força suficiente para libertar o povo.”.
Este é um dito digno de Catão. Assim já se revelava digno da morte que teve.
Mas se porventura a história não referisse o nome dele nem o local, seria facílimo adivinhar que se trata de um romano e natural de Roma, da verdadeira Roma, quando ela era livre.
Mas para que dizer mais? Em boa verdade não creio que o país o a terra importem muito. Em todos os países em todos os climas, sabe mal a sujeição e é gostosa a liberdade.
Dignos de dó são os que nasceram com a canga no pescoço.
Devem ser desculpados e perdoados, pois, nunca tendo visto sequer a sombra da liberdade e ninguém lha tendo mostrado, não sabem como é mal serem escravos.
Há países em que o Sol aparece de modo diverso daquele a que estamos habituados: depois de brilhar durante seis meses seguidos, deixa-os ficar mergulhados na escuridão, nunca os visitando no meio do ano; se os que nasceram durante essa longa noite nunca tivessem ouvido falar do dia, seria de espantar que eles se habituassem às trevas em que nasceram e nunca desejassem a luz?
Nunca se lastima o que não se conhece, só se tem desgosto depois de ter gozado o prazer, depois de se ter conhecido o bem e se recordar a alegria passada.
É natural no homem o ser livre e o querer sê-lo; mas está igualmente na sua natureza ficar com certos hábitos que a educação lhe dá.
Diga-se, pois, que acaba por ser natural tudo o que o homem obtém pela educação e pelo costume; mas da essência da sua natureza é o que lhe vem da mesma natureza pura e não alterada;
assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito: provam-no os cavalos sem rabo que no princípio mordem o freio e acabam depois por brincar com ele; e os mesmos que se rebelavam contra a sela acabam por aceitar a albarda e usam muito ufanos e vaidosos os arreios que os apertam.
Afirmam que sempre viveram na sujeição, que já os pais assim tinham vivido. Pensam que são obrigados a usar freio, provam-no com exemplos e com o fato de há muito serem propriedade daqueles que os tiranizam.
Mas a verdade é que os anos não dão o direito de se praticar o mal, antes agravam a injúria.
Sempre haverá umas poucas almas melhor nascidas do que outras, que sentem o peso do jugo e não evitam sacudi-lo, almas que nunca se acostumam à sujeição e que, à imitação de Ulisses, o qual por mar e terra procurava avistar o fumo de sua casa, nunca se esquecem dos seus privilégios naturais, nem dos antepassados e de sua antiga condição.
São esses dotados de claro entendimento e espírito clarividente; não se limitam, como o vulgo, a olhar só para o que têm adiante dos pés, olham também para trás e para frente e, estudando bem as coisas passadas, conhecem melhor o futuro e o presente.
Além de terem um espírito bem formado, tudo fazem para aperfeiçoá-lo pelo estudo e pelo saber.
Esses, ainda quando a liberdade se perdesse por completo e desaparecesse para sempre do mundo, não deixariam de imaginá-la, de senti-la e saborear; para eles, a servidão, por muito bem disfarçada que lhes aparecesse, nunca seria coisa boa.
O Grão-Turco teve perfeita consciência de que os livros e a doutrina, mais do que qualquer outra coisa, dão aos homens a capacidade de se conhecerem e de odiarem a tirania. Sabe-se que nas suas terras não há mais sábios do que os que lhe convém a ele.
Acontece que o zelo e a dedicação dos que, apesar de tudo, prezam a liberdade, não têm efeito algum, pois, mesmo que sejam em grande número, não se podem conhecer uns aos outros.
A tirania subtrai-lhes toda e qualquer liberdade de agir, de falar e quase de pensar.
Têm de guardar só para eles as suas fantasias. Razão tinha Momo para zombar, quando censurou o homem forjado por Vulcano, por não lhe ter feito no coração uma janela através da qual pudessem ser vistos os seus pensamentos.
É sabido que Brutus e Cássio, ao planejarem a libertação de Roma, ou antes, do mundo inteiro, não quiseram que Cícero, o maior zelador do bem público, entrasse na conspiração; julgaram que tinha um coração demasiado débil para tal façanha, confiavam na vontade dele, mas não estavam muito seguros da sua coragem. Quem estudar os efeitos da antiguidade e as velhas crônicas descobrirá que, vendo-se o país mal governado e maltratado, e tomando-se a decisão firme de libertá-lo, poucos ou nenhum deixaram de consegui-lo; tiveram nisso a ajuda da própria liberdade, ansiosa por renascer.
Harmódio, Aristogíton, Trasíbulo, Brutus-o-Velho, Valério e Díon executaram cabalmente o que valorosamente planejaram. Em casos assim, a sorte quase nunca falta a quem quer o bem. O jovem Brutus e Cássio derrubaram a servidão e repuseram a liberdade, tendo por isso morrido, mas não desonrosamente. Desonroso seria dizer que foi desonrosa a vida ou a morte desses jovens. Tristeza e desgraça foram a ruína da república que viria a ser enterrada com eles. As conjuras que depois houve contra os imperadores romanos foram todas atos de gente ambiciosa e não devemos lamentar as derrotas que sofreram; era evidente que não queriam derrubar mas arruinar a coroa, pretendiam expulsar o tirano e manter a tirania. Não é para mim desejável que eles tivessem triunfado e apraz-me que, pelo exemplo, tenham mostrado com não se deve abusar do sagrado nome da liberdade para levar a cabo ruins empreendimentos.
Mas, voltando ao assunto principal de que me afastei: a primeira razão que leva os homens a servirem de boamente é o terem nascidos e sido criados na servidão.
A esta soma-se outra que é a de, sob a tirania, os homens se tornarem covardes e efeminados.
Nisso concordo com Hipócrates, pai da medicina, que assim afirmou e escreveu num de seus livros, intitulado Das Doenças.
Este homem tinha o coração no lugar e bem o demonstrou quando o rei quis atraí-lo para junto de si, com muitas dádivas e oferendas; respondeu-lhe francamente que teria muitos escrúpulos em tratar e curar os bárbaros que queriam matar os gregos e de pôr a sua arte a serviço de um rei que pretendia escravizar a Grécia.
A carta que lhe mandou pode ainda hoje ver-se entre as suas outras obras e constituirá para todo o sempre uma prova do seu bom coração e de sua natureza nobre.
Com a perda da liberdade, perde-se imediatamente a valentia.
As pessoas escravizadas não mostram no combate qualquer ousadia ou intrepidez.
Vão para o castigo como que manietadas e entorpecidas, como quem vai cumprir uma obrigação.
E não sentem arder no coração o fogo da liberdade que faz desprezar o perigo e dá ganas de comprar com a morte, ao lado dos companheiros, a honra da glória.
Entre homens livres, todos disputam invejosamente quem há de ser o primeiro a servir o bem comum; todos desejam ter o seu quinhão no mal da derrota ou no bem da vitória. Mas as pessoas escravizadas, além desta falta de valor na guerra, perdem também a energia em todo o resto, têm o coração abatido e mole e não são capazes de grandes ações.
Os tiranos o sabem e, à vista deste vício, tudo fazem para piorá-lo.
Xenofonte, historiador grave e da melhor cepa entre os gregos, em um livro fez Simônides falar com Hierão, rei de Siracusa, sobre as misérias dos tiranos.
É um livro eivado de bons costumes e graves argumentos e, a meu ver, escrito com muita graça. Bom seria que todos os tiranos que já houve pusessem diante dos olhos e dele se servissem como de um espelho.
Não creio que deixassem de ver nele todas as suas verrugas e não se envergonhassem de todas as suas manchas.
Conta no referido tratado o tormento por que passam os tiranos que, por fazerem mal a todos, a todos devem temer.
Diz entre outras coisas que os maus reis recorrem a estrangeiros para fazerem a guerra, subornam-nos e não se atrevem a meter armas nas mãos dos próprios súditos a quem ofenderam.
Reis houve, alguns até franceses, mais outrora do que nos dias de hoje, que contrataram para a guerra mais de uma nação estrangeira, com intenção de preservarem os seus, por acharem que não era perdido o dinheiro gasto em defesa das pessoas.
Era o que dizia Cipião (o grande Africano, julgo) para quem valia mais defender a vida de um cidadão do que desbaratar cem inimigos.
Mas não há dúvida alguma de que o tirano se julga absolutamente seguro e só se preocupa quando percebe que já não tem a seu serviço um único homem de valor.
Com razão se lhe poderá dizer nessa altura o que Trasão, em Terêncio, se gloria de ter dito ao domador de elefantes:
Tão bravo vos hei mostrado
Que sois das bestas criado.
Mas esse estratagema com que os tiranos humilham os súditos está, mais do que em qualquer outro lado, explicitado no que Ciro fez aos lídios, depois de se ter apoderado de Sardes, capital da Lídia, quando aprisionou o riquíssimo rei Creso e o levou cativo. Trouxeram-lhe a notícia de que os de Sardes se tinham revoltado. Ter-lhe-ia sido fácil dominá-los.
Não desejando saquear uma tão bela cidade nem querendo destacar para lá um exército que a vigiasse, recorreu a um outro expediente. Fundou nela bordéis, tabernas e jogos públicos e publicou um decreto que obrigava os habitantes a freqüentá-los.
Tão bons resultados teve esta guarnição que foi desnecessário daí em diante levantar a espada contra os lídios. Os desgraçados divertiram-se a inventar toda a casta de jogos, de tal forma que a palavra latina usada para significar “passatempos” é a palavra “ludi”, que vem de “Lydi”, lídios.
Nem todos os tiranos foram tão explícitos no seu desejo de efeminarem os homens, mas o que este ordenou formalmente foi, em grande parte, realizado de forma velada.
É muito próprio do vulgo, mormente o que pulula nas cidades, desconfiar de quem o estima e ser ingênuo para com aqueles que o enganam.
Atrair o pássaro com o apito ou o peixe com a isca do anzol é mais difícil que atrair o povo para a servidão, pois basta passar-lhes junto à boca um engodo insignificante.
É espantoso como eles se deixam levar pelas cócegas.
Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, as feras exóticas, as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão, preço da liberdade, instrumentos da tirania.
Deste meio, desta prática, destes engodos se serviam os tiranos para manterem os antigos súditos sob o jugo. Os povos, assim ludibriados, achavam bonitos estes passatempos, divertiam-se com o vão prazer que lhes passava diante dos olhos e habituavam-se a servir com simplicidade igual, se bem que mais nociva, à das crianças que aprendem a ler atraídas pelas figuras coloridas dos livros iluminados.
Os tiranos romanos decretaram também na celebração freqüente das decenálias públicas, para as quais atraiam a canalha que põe acima de tudo os prazeres da boca.
Nem o mais esclarecido de todos eles trocaria a malga da sopa pela liberdade da república de Platão.
Os tiranos ofereciam o quarto de trigo, o sesteiro de vinho e o sestércio. E os vivas ao rei eram então coisa triste de ouvir.
Não davam conta, os néscios, de que recuperavam dessa forma parte do que era seu e que não podia o tirano dar-lhes coisa que não lhes tivesse furtado antes.
O que hoje ganhava o sestércio, o que se fartava de comer no festim público, louvando a grande liberalidade de Tibério e Nero, era no dia seguinte obrigado a entregar os seus haveres à avareza, os filhos da luxúria e o próprio sangue à crueldade daqueles magníficos imperadores, e fazia-o sem dizer palavra, mudo como uma pedra, quedo como um cepo.
O povo sempre foi assim.
É perante o prazer que honestamente não pode atingir, aberto e dissoluto e, face ao agravo e à dor que honestamente não deveria sofrer, insensível.
Não sei hoje em dia de pessoa alguma que, ao ouvir falar de Nero, não trema só com o nome de tão vil monstro, de tão hedionda e imunda besta. Pode, porém, dizer-se que após a sua morte, vil tanto quanto foi a sua vida, o povo romano ficou com tanta pena (por se lembrar dos seus jogos e festins) que pouco faltou para vestir luto. Assim o escreveu Cornélio Tácito, autor dos melhores e mais graves, e só pode estranhar o fato quem não conheça bem o que o povo fez após a morte de Júlio César, que tinha abolido as leis e a liberdade.
Achavam que era um homem sem valor (creio), mas louvaram muito a sua humanidade que afinal foi tão nociva como a crueldade mais selvagem de todos os tiranos.
Em boa verdade, a sua peçonhenta doçura serviu só para adoçar a servidão que impôs ao povo romano.
Mas, depois de morto, o dito povo, que tinha ainda na boca o sabor dos banquetes e a recordação das suas prodigalidades, queimou, para honrá-lo e incinerá-lo, todos os bancos da praça, edificou-lhe uma coluna, como a um verdadeiro pai do povo (assim rezava a inscrição no capitel), e prestou-lhe mais honrarias, após a morte, do que a qualquer outro homem, à exceção talvez dos que o mataram.
Os imperadores romanos não deixavam de tomar sempre o título de tribuno do povo, seja porque seu cargo era tido na conta de santo e sagrado, seja porque havia sido estabelecido para se defenderem do povo e estarem sob o favor do estado.
Deste modo tinham por certo que o povo lhes daria toda a confiança, tendo em maior consideração o título do que os atos deles.
Não procedem melhor hoje em dia os que sempre que cometem aleivosias, incluindo as mais graves, fazem-nas acompanhar de discursos sobre o bem comum e a utilidade pública.
Não ignoras, Longa, os considerandos de que habilmente eles costumam lançar mão. Mas na maioria das vezes não há habilidade que chegue para cobrir tanto despudor.
Os reis assírios, e depois deles os medos, só apareciam em público o mais tarde possível, ao anoitecer, para a populaça julgar que eles tinham algo de sobre-humano, assim iludindo as gentes propensas ao devaneio e amigas de imaginar aquilo que não vêem claramente visto.
Foi assim que as nações que durante longos anos pertenceram ao império sírio se habituaram, com tal mistério, a servir e serviam tanto mais quanto não sabiam quem era o soberano; e todos o respeitavam e temiam, sem nenhum deles o ter visto.
Os primeiros reis do Egito, esses nunca se mostravam em público sem levarem um ramo ou uma luz na cabeça e mascaravam-se como saltimbancos, coisa tão estranha de ver que os súditos se enchiam de respeito e veneração por eles; e havia gente tão doida e tão submissa que se prestava a tal comédia em vez de com ela se rir. Faz pena ouvir comentar as artimanhas a que os tiranos de antigamente recorriam para consolidarem as suas tiranias e o modo como de coisas somenos tiravam grande partido.
Tinham compreendido ser possível fazerem o que quisessem de um povo que se deixava apanhar na rede, por muito frágil que ela fosse, um povo tão fácil de enganar e submeter que quanto mais dele zombavam mais se rebaixava.
E que direi daquela outra patranha a que os povos antigos sempre deram grande crédito? Acreditaram, de fato, que o dedo grande do pé de Pirro, rei dos epirotas, fazia milagres e curava as doenças do baço.
Acreditavam na lenda de que o dito dedo, após a cremação do corpo de Pirro, ficaria inteiro no meio das cinzas.
Era o próprio povo que forjava as mentiras em que posteriormente acreditava. Muitos assim o escreveram e, pelo modo como o fizeram, é patente que se limitaram a reunir o que ouviam dizer nas cidades entre o povo miúdo.
Vespasiano, no regresso da Assíria, passando por Alexandria a caminho de Roma, tomar o governo do Império, teria realizado muitos milagres.
Punha os coxos a andar, dava vista aos cegos e obrava muitas outras façanhas em que só podia acreditar quem fosse mais cego do que aqueles a quem pretensamente curava.
Até os mesmos tiranos se espantavam com a forma como os homens podem suportar um homem que lhes faz mal; utilizavam por isso o disfarce da religião e, se possível, tomavam o aspecto de certas divindades, disso se servindo para protegerem a má vida que levavam.
Se dermos credo à Sibila de Virgílio e à sua descrição do inferno, Salmoneu, por ter zombado dos deuses e vestido a indumentária de Júpiter, está agora no fundo do inferno a receber o castigo que merece:
... As penas vi cruéis e penetrantes
De Salmoneu soberbo, que tanto erra,
De Júpiter Tonante o raio horrendo
E do Olimpo os trovões contrafazendo.
De quatro frisões este conduzido
Uma tocha acendida meneando,
Pelos povos de Grécia ia atrevido,
E pelo meio de Elides triunfando.
O culto aos altos deuses só devido
Pedia: mentecapto, que rodando
Pela ponte no coche miserável,
Fingia a chuva e o raio imitável.
Mas de uma nuvem densa um raio horrendo,
Vibrando irado, o padre onipotente
O derrubou com ímpeto tremendo,
Não com fumoso raio ou tocha ardente...
[Eneida, Virgílio, Cap. VI]
Se este, cujo crime foi fazer de tolo, padece hoje tais tormentos no inferno, é de crer que merecem muito pior os que abusaram da religião para fins ruins.
Os nossos semearam pela França sapos, flores de lis, a ampola e a oriflama. Pela parte que mais me cabe, não ponho em dúvida que os nossos maiores e nós não temos razão de queixa, pois sempre tivemos reis bons em tempo de paz, valorosos na guerra, reis que, embora sendo-o de nascença, parecem ter sido não criados pela natureza, como os outros, mas eleitos por Deus Todo-poderoso, antes de tomarem nas mãos as rédeas do governo e a guarda do reino.
Ainda que assim não fosse, não poria em dúvida a verdade contada pelas nossas histórias, nem as discutiria com vistas a rebaixar a nossa bela nação e deslustrar a nossa poesia francesa, a qual, mais do que remoçada, está hoje completamente renovada graças aos nossos Ronsard, Baïf e Du Bellay, que fizeram evoluir a nossa língua a pontos (ouso esperá-lo) de os gregos e latinos não serem em nada superiores, a não ser quiçá no direito de antiguidade.
E seria da minha parte grande ofensa à nossa métrica (uso de boa mente a palavra e não me desagrada) que, tornada embora por muitos mecânica, tem muita gente capaz de enobrecê-la e de restituí-la à sua honra primitiva, seria, digo, grande ofensa, subtrair-lhe os belos contos do rei Clóvis, nos quais julgo ver despontar fácil e elegantemente a veia do nosso Ronsard e da sua Francíada. Pressinto o seu alcance, reconheço-lhe a graça e finura de espírito. Tem arte para fazer da oriflama o que os romanos fizeram das ancilas, como diz Virgílio: “E os escudos do céu jazendo em terra”. Erguerá a nossa ampola tanto quanto os atenienses o cesto de Eríctono; e as nossas armas serão faladas tanto quanto o foi a oliveira que ainda hoje se encontra na torre de Minerva. Seria de fato ultrajante renegar os nossos livros e desdizer os nossos poetas.
Mas voltando ao assunto de que sem querer me afastei, quem mais do que os tiranos tem conseguido para sua segurança, habituar o povo não só à obediência e à servidão, mas até à devoção? Tudo, pois, o que até aqui disse sobre o hábito de as pessoas serem voluntariamente escravas aplica-se apenas às relações entre os tiranos e a arraia miúda e embrutecida.
Passarei agora a um ponto que, a meu ver, constitui o segredo e a mola da dominação: o apoio e o alicerce da tirania.
Quem pensar que as alabardas dos guardas e das sentinelas protegem o tirano, está, na minha opinião, muito enganado; usam-nos, creio, mais por formalidade e como espantalho do que por lhes merecerem a confiança.
Os arqueiros vedam a entrada no paço aos pouco hábeis, aos que não têm meios, não aos bem armados e aos façanhudos.
Dos imperadores romanos se pode dizer que foram menos os que escaparam de qualquer perigo por intervenção dos arqueiros do que os que pelos próprios guardas foram mortos.
Não são as hordas de soldados a cavalo, não são as companhias de soldados peões, não são as armas que defendem o tirano.
Parece à primeira vista incrível, mas é a verdade. São sempre quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano, são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão.
Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem cúmplices das suas crueldades, companheiros dos seus prazeres, alcoviteiros suas lascívias e com ele beneficiários das rapinas. Tal é a influência deles sobre o caudilho que o povo tem de sofrer não só a maldade dele como também a deles. Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano. Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração do dinheiro, para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades, para serem seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça. E abaixo de todos estes vêm outros.
Quem queira perder tempo a desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil ou cem milhões agarrados à corda do tirano; tal como em Homero Júpiter se gloria de que, puxando a corda, todos os deuses virão atrás.
Tal cadeia está na origem do crescimento do Senado no tempo de Júlio, do estabelecimento de novos cargos e das eleições de ofícios, que não são de modo algum uma reforma na justiça, mas novo apoio à tirania.
E, pelos favores, ganhos e lucros que os tiranos concedem chega-se a isto: são quase tantas pessoas a quem a tirania parece proveitosa como as que prezam a liberdade.
Dizem os médicos que, havendo no nosso corpo uma parte afetada, é nela que naturalmente se reúnem os humores malignos; da mesma forma, quando um rei se declara tirano, tudo quanto é mau, a escória do reino (não me refiro aos larápios e outros desorelhados que no conjunto da república não fazem bem ou mal algum), os que são ambiciosos e avarentos, todos se juntam à volta dele para apoiarem-no, para participarem do saque e serem outros tantos tiranetes logo abaixo do tirano.
É o caso dos grandes ladrões e corsários famosos. Há uns que exploram o país e assaltam os viajantes; estão uns de emboscada e outros à espreita; uns chacinam, outros saqueiam e, havendo muito embora alguns mais proeminentes, uns que são criados e outros chefes de bando, todos afinal se sentem donos, senão do espólio principal, pelo menos de parte dele.
Conta-se que os piratas sicilianos não só se juntaram em tão grande número que foi mister enviar contra eles Pompeu Magno, como também conseguiram estabelecer alianças com algumas belas cidades e grandes praças fortes em cujos portos ancoravam com toda a segurança, no regresso do corso, dando-lhes em recompensa uma parte dos bens que rapinavam.
O tirano submete a uns por intermédio dos outros.
É assim protegido por aqueles que, se algo valessem, antes devia recear, e dá razão ao adágio que diz ser a lenha rachada com cunhas feitas da mesma lenha.
Vejam-se os arqueiros, os guardas e porta-estandartes que do tirano recebem não poucos agravos.
Mas os desgraçados, banidos por Deus e pelos homens, suportam de boa mente o mal e descarregam depois esse mal não naquele que os maltrata, mas nos que são como ele maltratados e não têm defesa.
À vista dos que servilmente giram em redor do tirano, a executar as suas tiranias e a oprimir o povo, fico muitas vezes espantado com a maldade deles e sinto igualmente pena de tanta estupidez.
Porque, em boa verdade, o que fazem eles, ao acercarem-se do tirano, senão afastarem-se da liberdade, darem (por assim dizer) ambas as mãos à servidão e abraçarem a escravatura?
Ponham eles algum freio à ambição, renunciem um pouco à avareza, olhem depois para si próprios, vejam-se bem e perceberão claramente que os camponeses, os servos que eles espezinham e tratam como escravos são em comparação com eles, livres e felizes.
O camponês e o artesão, embora servos, limitam-se a fazer o que lhes mandam e, feito isso, ficam quites.
Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores, não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe adivinhar os pensamentos.
Não basta que lhe obedeçam, têm de lhe fazer todas as vontades, têm de se matar de trabalhar nos negócios dele, de ter os gostos que ele tem, de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu.
Têm de se acautelar com o que dizem, com as mínimas palavras, os mínimos gestos, com o modo como olham; não têm olhos, nem pés, nem mãos, têm de consagrar tudo ao trabalho de espiar a vontade e descobrir os pensamentos do tirano.
Será isto viver feliz? Será isto vida? Haverá no mundo coisa mais insuportável do que isto? Não me refiro sequer a homens bem nascidos, mas sim a quem tenha o sentido do bem comum ou, para mais não dizer, cara de homem. Haverá condição mais miserável do que viver assim, sem ter nada de seu, sujeitando a outrem a liberdade, o corpo, a vida?
Fazem tudo o que fazem para ganharem fortuna...
Como se pudessem ganhar alguma coisa de seu, quando da sua própria pessoa não podem dizer que seja sua.
Como se fosse possível, na presença do tirano, alguém possuir o que quer que seja, eles fazem tudo para acumularem riquezas e não se lembram de que são eles que lhe dão a força para roubar tudo a todos, não deixando a ninguém nada de seu.
Vêem que é o ter que mais sujeita os homens à crueldade, que não há para o tirano crime mais digno de morte do que a posse de quaisquer bens; que ele só quer possuir riquezas, que rouba aos ricos que se apresentam diante dele como num matadouro, para que ele os veja bem recheados e ornados e deles tenha inveja.
Estes favoritos deveriam lembrar-se menos dos poucos que no convívio com o tirano ganharam fortunas do que dos muitos que, tendo acumulado assim alguns haveres, acabaram por perder os bens e a vida.
Bom será pensar que, se alguns poucos ganharam riquezas, pouquíssimos foram os que as conservaram.
Percorreram-se as histórias antigas, pense-se nas de fresca data e se verá claramente quão grande é o número dos que, ganhando as
boas graças dos príncipes com falsidades e tendo recorrido à maldade ou abusado da simplicidade deles, acabaram por ser aniquilados pelos mesmos príncipes, os quais, tão facilmente quanto os tinham elevado, viram que não podiam conservá-los.
Entre o grande número de pessoas que algum dia viveram nas cortes dos maus reis, poucos ou nenhum escaparam de sentir em si a crueldade do tirano a quem tinham acirrado contra os outros.
Tendo o mais das vezes enriquecido, à custa da proteção deles, com os despojos dos outros, foram eles que depois enriqueceram os outros com seus próprios despojos.
As próprias pessoas de bem, se acaso as há ao redor do tirano e gozam das suas graças, enquanto nelas brilha a virtude e a integridade, que, vistas de perto, até aos maus inspiram respeito, essas pessoas de bem não ficarão muito tempo sem perceber o mal que os outros sofrem e aprenderão às suas custas os malefícios da tirania.
Sêneca, Burro, Trázeas, esse trio de pessoas de bem que tiveram a pouca sorte de viver perto do tirano e a missão de tratar dos seus negócios, foram todos por ele estimados e benquistos; um deles fora seu preceptor e tinha como penhor da amizade e educação que lhe dera; ora todos eles testemunharam pela sua morte cruel quão pouca confiança merecem os tiranos.
Que amizade, afinal, pode esperar-se daquele cujo coração é tão duro que odeia o próprio reino que em tudo lhe obedece? Que, por não conseguir fazer-se amar, se empobrece e destrói seu império?
Poderá dizer-se que todos os que referi, incorreram em grandes desgraças, por terem sido virtuosos; mas olhemos também para o resto do séqüito do tirano e veremos que todos quantos obtiveram os seus favores e os mantiveram por maldade acabaram por não durar muito.
Onde se ouviu falar de amor mais dedicado, de afeto mais duradouro, onde é que já se viu homem mais obstinadamente preso a uma mulher do que ele estava a Pompéia, a quem afinal envenenou?
Agripina, mãe de Nero, matara o marido Cláudio para por o filho no trono. Fez-lhe todas as vontades, não se poupou a trabalhos para lhe agradar. Ora foi esse mesmo filho por ela gerado e feito imperador, foi ele que, depois de muitas vezes, debalde, o tentar, acabou por lhe tirar a vida; e ninguém depois diria que ela não mereceu esse castigo, mas a opinião geral é que devia tê-lo recebido das mãos de outrem e não daquele que lho infligiu.
Onde houve já homem mais fácil de manobrar, mais simples, digamos até mais ingênuo do que o Imperador Cláudio? Quem se apaixonou algum dia por uma mulher mais do que ele por Messalina? Nem por isso deixou de entregá-la ao carrasco. A simplicidade é uma crueldade de todos os tiranos: tanto que todos ignoram o que seja praticar o bem. Mas, não sei como, chega sempre o dia em que usam de crueldade para com os que os rodeiam e a pouca inteligência que possuem desperta de imediato.
É bem conhecida a palavra daquele que, vendo a descoberto o colo da mulher amada, sem a qual parecia não poder viver, a acariciou, dizendo: este belo pescoço, logo que eu o ordene, pode ser cortado.
Por isso é que a maior parte dos antigos tiranos eram geralmente mortos pelos seus favoritos, os quais, uma vez conhecida a natureza da tirania, perdiam toda a fé na vontade do tirano e desconfiavam do seu poder.
Assim foi que Domiciano morreu às mãos de Estevão, Cômodo assassinado por uma das suas amantes, Antonino por Macrino, e o mesmo aconteceu com quase todos os outros.
A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama.
A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade.
O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância.
Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça. Quando os maus se reúnem, fazem-no para conspirar, não para travarem amizade. Apóiam-se uns aos outros, mas temem-se reciprocamente. Não são amigos, são cúmplices.
Ainda que assim não fosse, havia de ser sempre difícil achar num tirano um amor firme. É que, estando ele acima de todos e não tendo companheiros, situa-se para lá de todas as raias da amizade, a qual tem seu alvo na equidade, não aceita a superioridade, antes quer que todos sejam iguais.
Por isso é que entre os ladrões reina a maior confiança, no dividir do que roubaram; todos são pares e companheiros e, se não se amam, temem-se pelo menos uns aos outros e não querem, desunindo-se, tornar-se mais fracos.
Quanto ao tirano, nem os próprios favoritos podem ter confiança nele, pois aprenderam por si que ele pode tudo, que não há direitos nem deveres a que esteja obrigado, a sua única lei é a sua vontade, não é companheiro de ninguém, antes é senhor de todos. Quão dignos de piedade, portanto, são aqueles que, perante exemplos tão evidentes, face a um perigo tão iminente, não aprendem com o que outros já sofreram!
Como pode haver tanta gente que gosta de conviver com os tiranos e que nem um só tenha inteligência e ousadia que bastem para lhes dizer o que (no dizer do conto) a raposa respondeu ao leão que se fingia doente: “De boa mente entraria no teu covil; mas só vejo pegadas de bichos que entram e nenhuma dos que dele tenham saído”.
Esses desgraçados só vêem o brilho dos tesouros do tirano e ficam olhando espantados para o fulgor das suas suntuosidades, deslumbrados com tanto esplendor; aproximam-se e não vêem que estão a atirar-se para o meio de uma fogueira que não tardará a consumi-los. O Sátiro indiscreto (reza a fábula), ao ver aceso o lume descoberto por Prometeu, achou-o tão belo que foi beijá-lo e se queimou.
A borboleta que, esperando encontrar algum prazer, se atira ao fogo, vendo-o luzir, acaba por ser vítima de uma outra qualidade que o fogo tem: a de tudo queimar (diz o poeta lucano).
Vamos admitir que os favoritos consigam escapar às mãos daqueles a quem servem. Não escaparão do rei que vier depois. Se for bom, tudo fará para pedir contas e repor a justiça. Se for mau e semelhante ao que eles serviram, há de ter os seus favoritos que, evidentemente, além de pretenderem ocupar o lugar dos outros, hão de querer também os bens e as vidas deles.
Assim sendo, como pode haver alguém que, no meio de tantos perigos, de tanta insegurança, queira ocupar tão desgraçada posição e servir com tal risco tão perigoso amo?
Que tormento, que martírio este, Deus meu: viver dia e noite a pensar em ser agradável a alguém e, ao mesmo tempo, temê-lo mais do que a qualquer homem!
Que tormento estar sempre de olho à espreita, de ouvido a escuta, a espiar de onde virá o golpe, para descobrir embustes, examinando sempre as feições dos companheiros, a ver se descobre quem o trai, rindo-se para todos, receando-os a todos, não tendo inimigo declarado nem amigo certo!
Que tormento fazer sempre rosto risonho, tendo o coração transido, não poder mostrar-se contente e não se atrever a ser triste!
Aprazível é considerar o que eles ganham com tanto tormento, o que podem esperar dos trabalhos que passam e da mísera vida que levam.
O povo gosta de acusar dos males que sofre não o tirano, mas os que o aconselham: os povos, as nações, toda a gente, incluindo os camponeses e os lavradores, todos sabem os nomes deles e os respectivos vícios; sobre eles lançam mil ultrajes, mil vilanias, mil maldições. Todas as suas orações e votos são contra eles. Todas as desgraças, todas as pestes, todas as fomes lhes são atribuídas e, se às vezes, exteriormente, lhes tributam algum respeito, não deixam de amaldiçoá-lo no mais fundo do coração, têm por eles um horror maior do que têm aos animais ferozes.
Tal é a honra, tal é a glória que recebem em paga dos serviços que prestam aos povos, os quais nunca se darão por saciados e compensados do que sofreram, ainda que por eles repartissem o corpo em pedaços.
Mesmo depois de morrerem, os que ficam tudo farão para que o nome de Come-Gente lhes seja atribuído e manchado pela tinta de mil penas, e a sua reputação desfeita em milhares de livros, e os próprios ossos, a bem dizer, pisados pelos vindouros que assim castigam depois de mortos os que tiveram vida ruim.
Aprendamos com estes exemplos, aprendamos a fazer o bem.
Ergamos os olhos para o Céu, seja por amor da nossa honra, seja pelo amor da própria virtude, olhemos para Deus Todo-poderoso, testemunha certa de nossos atos e justo juiz de nossas faltas.
De minha parte, penso, e não me engano, que nada há de mais contrário a um Deus liberal e bondoso, do que a tirania e que ele reserva aos tiranos e seus cúmplices um castigo especial.
Cortesia

Cartas Chilenas, de Tomaz Antonio Gonzaga

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Cartas Chilenas, de Tomaz Antonio Gonzaga
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
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Cartas Chilenas
Tomáz Antonio Gonzaga
ÍNDICE
Prólogo
Dedicatória
Carta 1ª
Carta 2ª
Carta 3ª
Carta 4ª
Carta 5ª
Carta 6ª
Carta 7ª
Carta 8ª
Carta 9ª
Carta 10ª
Carta 11ª
Carta 12ª
Carta 13ª
Epístola a Critilo
PRÓLOGO
Amigo leitor, arribou a certo porto do Brasil, onde eu vivia, um galeão, que vinha das Américas espanholas. Nele
se transportava um mancebo, cavalheiro instruído nas humanas letras. Não me foi dificultoso travar, com ele,
uma estreita amizade e chegou a confiar-me os manuscritos, que trazia. Entre eles encontrei as Cartas Chilenas,
que são um artificioso compêndio das desordens, que fez no seu governo Fanfarrão Minésio, general de Chile.
Logo que li estas Cartas, assentei comigo que as devia traduzir na nossa língua, não só porque as julguei
merecedoras deste obséquio pela simplicidade do seu estilo, como, também, pelo benefício, que resulta ao
público, de se verem satirizadas as insolências deste chefe, para emenda dos mais, que seguem tão vergonhosas
pisadas.
Um D. Quixote pode desterrar do mundo as loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão Minésio pode
também corrigir a desordem de um governador despótico.
Eu mudei algumas coisas menos interessantes, para as acomodar melhor ao nosso gosto. Peço-te que me
desculpes algumas faltas, pois, se és douto, hás-de conhecer a suma dificuldade, que há na tradução em verso.
Lê, diverte-te e não queiras fazer juízos temerários sobre a pessoa de Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo,
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e talvez que tu sejas também um deles, etc.
... Quid rides ? mutato nomine, de te
Fabula narratur...
Horat. Sat lª, versos 69 e 70.
DEDICATÓRIA AOS GRANDES DE PORTUGAL
Ilmos. e exmos. senhores,
Apenas concebi a idéia de traduzir na nossa língua e de dar ao prelo as Cartas Chilenas, logo assentei comigo
que Vv. Exas. haviam-de ser os Mecenas a quem as dedicasse. São Vv. Exas. aqueles de quem os nossos
soberanos costumam fiar os governos das nossas conquistas: são por isso aqueles a quem se devem consagrar
todos os escritos, que os podem conduzir ao fim de um acertado governo.
Dois são os meios porque nos instruímos: um, quando vemos ações gloriosas, que nos despertam o desejo da
imitação; outro, quando vemos ações indignas, que nos excitam o seu aborrecimento. Ambos estes meios são
eficazes: esta a razão porque os teatros, instituídos para a instrução dos cidadãos, umas vezes nos representam a
um herói cheio de virtudes, e outras vezes nos representam a um monstro, coberto de horrorosos vícios.
Entendo que Vv. Exas. se desejarão instruir por um e outro modo. Para se instruírem pelo primeiro, têm Vv.
Exas. Os louváveis exemplos de seus ilustres progenitores. Para se instruírem pelo segundo, era necessário que
eu fosse descobrir o Fanfarrão Minésio, em um reino estranho! Feliz reino e felices grandes que não têm em si
um modelo destes!
Peço a Vv. Exas. que recebam e protejam estas cartas. Quando não mereçam a sua proteção pela eloqüência com
que estão escritas, sempre a merecem pela sã doutrina que respiram e pelo louvável fim com que talvez as
escreveu o seu autor Critilo.
Beija as mãos
De Vv. Exas.
O seu menor criado...
CARTA lª
Em que se descreve a entrada que fez
Fanfarrão em Chile.
Amigo Doroteu, prezado amigo,
Abre os olhos, boceja, estende os braços
E limpa, das pestanas carregadas,
O pegajoso humor, que o sono ajunta.
5 – Critilo, o teu Critilo é quem te chama;
Ergue a cabeça da engomada fronha
Acorda, se ouvir queres coisas raras.
"Que coisas, ( tu dirás ), que coisas podes
Contar que valham tanto, quanto vale
10 – Dormir a noite fria em mole cama,
Quando salta a saraiva nos telhados
E quando o sudoeste e outros ventos
Movem dos troncos os frondosos ramos?"
É doce esse descanso, não te nego.
15 – Também, prezado amigo, também gosto
De estar amadornado, mal ouvindo
Das águas despenhadas brando estrondo,
E vendo, ao mesmo tempo, as vãs quimeras,
Que então me pintam os ligeiros sonhos.
3
20 – Mas, Doroteu, não sintas que te acorde;
Não falta tempo em que do sono gozes:
Então verás leões com pés de pato,
Verás voarem tigres e camelos,
Verás parirem homens e nadarem
25 – Os roliços penedos sobre as ondas.
Porém que têm que ver estes delírios
Co'os sucessos reais, que vou contar-te?
Acorda, Doroteu, acorda, acorda;
Critilo, o teu Critilo é quem te chama.
30 – Levanta o corpo das macias penas;
Ouvirás, Doroteu, sucessos novos,
Estranhos casos, que jamais pintaram
Na idéia do doente, ou de quem dorme
Agudas febres, desvairados sonhos
35 – Não és tu, Doroteu, aquele mesmo
Que pedes que te diga se e verdade
O que se conta dos barbados monos
Que à mesa trazem os fumantes pratos?
Não desejas saber se há grandes peixes,
40 – Que abraçando os navios com as longas,
Robustas barbatanas, os suspendem,
Inda que o vento, que d'alheta sopra,
Lhes inche os soltos, desrinzados panos ?
Não queres que te informe dos costumes.
45 – Dos incultos gentios? Não perguntas
Se entre eles há nações, que os beiços furam?
E outras que matam, com piedade falsa,
Aos pais, que afrouxam ao poder dos anos?
Pois se queres ouvir notícias velhas
50 – Dispersas por imensos alfarrábios,
Escuta a história de um moderno chefe.
Que acaba de reger a nossa Chile,
Ilustre imitador a Sancho Pança.
E quem dissera, amigo, que podia
55 – Gerar segundo Sancho a nossa Espanha!
Não penses, Doroteu, que vou contar-te
Por verdadeira história uma novela
Da classe das patranhas, que nos contam
Verbosos navegantes, que já deram
60 – Ao globo deste mundo volta inteira.
Uma velha madrasta me persiga,
Uma mulher zelosa me atormente,
E tenha um bando de gatunos filhos,
Que um chavo não me deixem, se este chefe
65 – Não fez ainda mais do que eu refiro.
Ora pois, doce amigo, vou pintá-lo
Da sorte que o topei a vez primeira;
Nem esta digressão motiva tédio
Como aquelas que são dos fins alheias,
70 – Que o gesto, mais o traje nas pessoas
Faz o mesmo que fazem os letreiros
Nas frentes enfeitadas dos livrinhos,
Que dão, do que eles tratam, boa idéia.
Tem pesado semblante, a cor é baça.
75 – O corpo de estatura um tanto esbelta
Feições compridas e olhadura feia,
Tem grossas sobrancelhas, testa curta,
Nariz direito e grande, fala pouco
Em rouco, baixo som de mau falsete
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80 – Sem ser velho, já tem cabelo ruço
E cobre este defeito e fria calva
À força de polvilho, que lhe deita.
Ainda me parece que o estou vendo
No gordo rocinante escarranchado
85 – As longas calças pelo umbigo atadas,
Amarelo colete e sobre tudo
Vestida uma vermelha e justa farda
De cada bolso da fardeta, pendem
Listadas pontas de dois brancos lenços;
90 – Na cabeça vazia se atravessa
Um chapéu desmarcado, nem sei como
Sustenta o pobre só do laço o peso.
Ah ! tu, Catão severo, tu que estranhas
O rir-se um cônsul moço, que fizeras
95 – Se em Chile agora entrasses e se visses
Ser o rei dos peraltas quem governa ?
Já lá vai, Doroteu, aquela idade
Em que os próprios mancebos, que subiam
À honra do governo, aos outros davam
100 – Exemplos de modéstia, até nos trajes.
Deviam, Doroteu, morrer os povos
Apenas os maiores imitaram
Os rostos e os costumes das mulheres
Seguindo as modas e raspando as barbas.
105 – Os grandes do país, com gesto humilde
Lhe fazem, mal o encontram, seu cortejo;
Ele austero os recebe, só se digna
Afrouxar do toitiço a mola um nada,
Ou pôr nas abas do chapéu os dedos.
110 – Caminha atrás do chefe um tal Robério
Que entre os criados tem respeito de aio;
Estatura pequena, largo o rosto,
Delgadas pernas e pançudo ventre,
Sobejo de ombros, de pescoço falto;
115 – Tem de pisorga cores e conserva
As bufantes bochechas sempre inchadas.
Bem que já velho seja, inda presume
De ser aos olhos das madamas grato
E o demo lhe encaixou que tinha pernas
120 – Capazes de montar no bom ginete
Que rincha no Parnaso. Pobre tonto!
Quem te mete em camisas de onze varas!
Tu só podes cantar, em coxos versos
E ao som da má rebeca, com que atroas
125 – Os feitos do teu amo e os seus despachos.
Ao lado de Robério, vem Matúsio,
Que respira do chefe o modo e o gesto.
É peralta rapaz de tesas gâmbias,
Tem cabelo castanho e brancas faces,
130 – Tem um ar de mylord e a todos trata
Como a inúteis bichinhos; só conversa
Com o rico rendeiro, ou quem lhe conta
Das moças do país as frescas praças.
Dos bolsos da casaca dependura
135 – As pontas perfumadas dos lencinhos,
Que é sinal, ou caráter, que distingue
Aos serventes das casas dos mais homens,
Assim como as famílias se conhecem
Por herdados brasões de antigas armas.
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140 – Montado em nédia mula vem um padre
Que tem de capelão as justas honras.
Formou-se em Salamanca, é homem sábio.
Já do mistério do Pilar um dia.
Um sermão recitou, que foi um pasmo.
145 – Labregão no feitio e meio idoso.
Tem olhos encovados, barba tesa,
Fechadas sobrancelhas, rosto fusco,
Cangalhas no nariz. Ah! quem dissera
Que num corpo, que tem de nabo a forma,
150 – Haviam pôr os céus tão grande caco!
O resto da família é todo o mesmo,
Escuso de pintá-lo. Tu bem sabes
Um rifão que nos diz, que dos domingos
Se tiram muito bem os dias santos.
155 – Ah! pobre Chile, que desgraça esperas!
Quanto melhor te fora se sentisses
As pragas, que no Egito se choraram,
Do que veres que sobe ao teu governo
Carrancudo casquilho, a quem rodeiam
160 – Os néscios, os marotos e os peraltas!
Seguido, pois, dos grandes entra o chefe
No nosso Santiago junto à noite.
A casa me recolho e cheio destas
Tristíssimas imagens, no discurso,
165 – Mil coisas feias, sem querer, revolvo.
Por ver se a dor divirto, vou sentar-me
Na janela da sala e ao ar levanto
Os olhos já molhados. Céus, que vejo!
Não vejo estrelas que, serenas, brilhem,
170 – Nem vejo a lua que prateia os mares:
Vejo um grande cometa, a quem os doutos
Caudato apelidaram. Este cobre
A terra toda co’ disforme rabo.
Aflito o coração no peito bate,
175 – Erriça-se o cabelo, as pernas tremem.
O sangue se congela e todo o corpo
Se cobre de suor. Tal foi o medo.
Ainda bem o acordo não restauro
Quando logo me lembra que este dia
180 – É o dia fatal, em que se entende
Que andam, no mundo, soltos, os diabos.
Não rias, Doroteu, dos meus agouros;
Os antigos romanos foram sábios,
Tiveram agoureiros: estes mesmos
185 – Muitas vezes choraram, por tomarem
Os avisos celestes como acasos.
Ajuntavam-se os grandes desta terra.
À noite, em casa do benigno chefe
Que o governo largou. Aqui, alegres,
190 – Com ele se entretinham largas horas
Depostos os melindres da grandeza,
Fazia a humanidade os seus deveres
No jogo e na conversa deleitosa.
A estas horas entra o novo chefe
195 – Na casa do recreio e, reparando
Nos membros do congresso, a testa enruga,
E vira a cara, como quem se enoja.
Porque os mais, junto dele não se assentem
Se deixa em pé ficar a noite inteira.
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200 – Não se assenta, civil, da casa o dono
Não se assenta, que é mais, a ilustre esposa;
Não se assenta, também, um velho bispo
E a exemplo destes, o congresso todo.
Pensavas, Doroteu, que um peito nobre,
205 – Que teve mestres, que habitou na corte
Havia praticar ação tão feia
Na casa respeitável de um fidalgo,
Distinto pelo cargo que exercia
E, mais ainda, pelo sangue herdado?
210 – Pois inda, caro amigo, não sabias
Quanto pode a tolice e vã soberba.
Parece, Doroteu, que algumas vezes,
A sábia natureza se descuida.
Devera, doce amigo, sim, devera
215 – Regular os natais conforme os gênios.
Quem tivesse as virtudes de fidalgo,
Nascesse de fidalgo e quem tivesse
Os vícios de vilão, nascesse embora,
Se devesse nascer, de algum lacaio,
220 – Como as pombas, que geram fracas pombas,
Como os tigres, que geram tigres bravos.
Ah ! se isto, Doroteu, assim sucede
Estava o nosso chefe mesmo ao próprio
Para nascer sultão do Turco Império,
225 – Metido entre vidraças, reclinado
Em coxins de veludo e vendo as moças,
Que de todas as partes o cercavam,
Coçando-lhe umas, levemente, as pernas
E as outras abanando-o, com toalhas:
230 – Só assim, Doroteu, o nosso chefe
Ficaria de si um tanto pago.
Chegou-se o dia da funesta posse:
Mal os grandes se ajuntam, desce a escada
E, sem mover cabeça, vai meter-se
235 – Debaixo do lustroso e rico pálio.
Caminham todos juntos para o templo,
Um salmo se repete, em doce coro,
A que ele assiste, desta sorte inchado,
Entesa mais que nunca o seu pescoço.
240 – Em ar de minuete o pé concerta
E arqueia o braco esquerdo sobre a ilharga.
Eis aqui, Doroteu, o como param
Os maus comediantes, quando fingem
As pessoas dos grandes, nos teatros.
245 – Acabada a função, à casa volta;
(Os grandes o acompanham, descontentes),
Co’a mesma pompa com que foi ao templo.
Tu já viste o ministro carrancudo
A quem os tristes pretendentes cercam,
250 – Quando no régio tribunal se apeia,
Que, bem que humildes em tropel o sigam,
Não pára, não responde, não corteja ?
Tu já viste o casquilho, quando sobe
A casa em que se canta e em que se joga,
255 – Que deixa à porta as bestas e os lacaios,
Sem sequer se lembrar que venta e chove?
Pois assim nos tratou o nosso chefe:
Mal à porta chegou, de chefe antigo,
Com ele se recolhe e até ao mesmo
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260 – Luzido, nobre corpo do senado
Não fala, não corteja, nem despede.
Da sorte que o lacaio a sege arruma
Por não tomar a rua às outras seges,
Assim os cidadãos o pálio encostam
265 – Ao batente da porta e, quais lacaios,
Na rua, esperam que seu amo desça,
Ou, a ele ficar, que os mande embora.
À vista desta ação indigna e feia,
Todo o congresso se confunde e pasma.
270 – Sobe às faces de alguns a cor rosada,
Perdem outros a cor das roxas faces;
Louva esta o proceder do chefe antigo,
Aquele o proceder do novo estranha,
E os que podem vencer do gênio a força
275 – Aos mais escutam, sem dizer palavra.
São estes, louco chefe, os sãos exemplos
Que, na Europa, te dão os homens grandes?
Os mesmos reis não honram aos vassalos?
Deixam de ser, por isso, uns bons monarcas?
280 – Como errado caminhas! O respeito
Por meio das virtudes se consegue
E nelas se sustenta. Nunca nasce
Do susto e do temor, que aos povos metem
injúrias, descortejos e carrancas.
285 – Findou-se, Doroteu, a longa história
Da entrada deste chefe, agora vamos,
Que e tempo, descansar um breve instante.
Nas outras contarei, prezado amigo,
Os fatos, que ele obrou no seu governo,
290 – Se acaso os justos céus quiserem dar-me.
Para tanto escrever, papel e tempo.
CARTA 2ª
Em que se mostra a piedade que Fanfarrão fingiu no princípio do seu governo, para
chamar a si todos os negócios.
As brilhantes estrelas já caíam
E a vez terceira os galos já cantavam,
Quando, prezado amigo, punha o selo
Na volumosa carta, em que te conto
5 – Do nosso imortal chefe a grande entrada;
E refletindo, então, ser quase dia,
A despir-me começo, com tal ânsia,
Que entendo que inda estava o lacre quente
Quando eu já, sobre os membros fatigados,
10 – Cuidadoso, estendia a grosa manta.
Não cuides, Doroteu, que brandas penas
Me formam o colchão macio e fofo;
Não cuides que é de paina a minha fronha
E que tenho lençóis de fina holanda,
15 – Com largas rendas sobre os crespos folhos.
Custosos pavilhões, dourados leitos
E colchas matizadas, não se encontram
Na casa mal provida de um poeta,
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Aonde, há dias que o rapaz que serve
20 – Nem na suja cozinha acende o fogo.
Mas, nesta mesma cama, tosca e dura,
Descanso mais contente, do que dorme
Aquele, que só põe o seu cuidado
Em deixar a seus filhos o tesouro
25 – Que ajunta, Doroteu, com meio avara,
Furtando ao rico e não pagando ao pobre.
Aqui. . . mas onde vou, prezado amigo?
Deixemos episódios, que não servem
E vamos prosseguindo a nossa história.
30 – Fui deitar-me ligeiro, como disse,
E mal estendo nos lençóis o corpo,
Dou um sopro na vela, os olhos fecho
E pelos dedos rezo a muitos santos,
Por ver se chega mais depressa o sono,
35 – Conselho que me deram sábias velhas
já, meu bom Doroteu, o sono vinha:
Umas vezes dormindo, ressonava,
Outras vezes, rezando, inda bulia
Com os devotos beiços, quando sinto
40 – Passar um carro, que me abala o leito.
Assustado desperto, os olhos abro
E, conhecendo a causa que me acorda,
Um tanto impaciente o corpo viro,
Fecho os olhos de novo e cruzo os braços
45 – Para ver se outra vez me torna o sono
Segunda vez o sono já tornava
Quando o estrondo percebo de outro carro;
Outra vez, Doroteu, o corpo volto,
Outra vez me agasalho, mas que importa?
50 – Já soam dos soldados grossos berros,
Já tinem as cadeias dos forçados,
Já chiam os guindastes, já me atroam
Os golpes dos machados e martelos
E, ao pé de tanta bulha, já não posso
55 – Mais esperança ter de algum sossego.
Salto fora da cama, acendo a vela,
À banca vou sentar-me exasperado,
E, por ver se entretenho as longas horas,
Aparo a minha pena, o papel dobro
60 – E com mão, que ainda treme de cansada,
Não sei, prezado amigo, o que te escrevo.
Só sei que o que te escrevo são verdades
E que vêem muito bem ao nosso caso.
Apenas, Doroteu, o nosso chefe
65 – As rédeas manejou, do seu governo,
Fingir-nos intentou que tinha uma alma
Amante da virtude. Assim foi Nero.
Governou aos romanos pelas regras
Da formosa justiça, porém logo
70 – Trocou o cetro de ouro em mão de ferro.
Manda, pois, aos ministros lhe dêem listas
De quantos presos as cadeias guardam,
Faz a muitos soltar e aos mais alenta
De vivas, bem fundadas esperanças.
75 – Estranha ao subalterno, que se arroga
O poder castigar ao delinqüente
Com troncos e galés; enfim ordena
Que aos presos, que em três dias não tiverem
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Assentos declarados, se abram logo
80 – Em nome dele, chefe, os seus assentos.
Aquele, Doroteu, que não é santo,
Mas quer fingir-se santo aos outros homens
Pratica muito mais, do que pratica
Quem segue os sãos caminhos da verdade.
85 – Mal se põe nas igrejas, de joelhos,
Abre os braços em cruz, a terra beija,
Entorta o seu pescoço, fecha os olhos,
Faz que chora, suspira, fere o peito,
E executa outras muitas macaquices
90 – Estando em parte onde o mundo as veja.
Assim o nosso chefe, que procura
Mostrar-se compassivo, não descansa
Com estas poucas obras: passa a dar-nos
Da sua compaixão maiores provas.
95 – Tu sabes, Doroteu, qual seja o crime
Dos soldados, que furtam aos soldados,
E sabes muito bem que pena incorram
Aqueles que viciam ouro e prata.
Agora, Doroteu, atende o como
100 – Castiga o nosso chefe em um sujeito
Estes graves delitos, que reputa
Ainda menos do que leves faltas.
Apanha um militar aos camaradas
Do solo uma porção. Astuto e destro,
105 – Para não se sentir o grave furto,
Mistura nos embrulhos, que lhes deixa,
Igual quantia de metal diverso.
Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto,
Sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde,
110 – Que este Hércules não cinge a grossa pele,
Nem traz na mão robusta a forte clava,
Para guerra fazer aos torpes Cacos.
Já leste, Doroteu, a d. Quixote ?
Pois eis aqui, amigo, o seu retrato;
115 – Mas diverso nos fins, que o doido Mancha
Forceja por vencer os maus gigantes
Que ao mundo são molestos e este chefe
Forceja por suster, no seu distrito,
Aqueles que se mostram mais velhacos.
120 – Não pune, doce amigo, como deve,
Das sacrossantas leis a grave ofensa;
Antes, benigno, manda ao bom Matúsio
Que do seu ouro próprio se ressarça
Aos aflitos roubados toda a perda.
125 – Já viste, Doroteu, igual desordem?
O dinheiro de um chefe, que a lei guarda,
Acode aos tristes órfãos e às viúvas;
Acode aos miseráveis, que padecem
Em duras, rotas camas e socorre,
130 – Para que honradas sejam, as donzelas,
Porém não paga furtos, porque fiquem
Impunes os culpados, que se devem,
Para exemplo, punir com mão severa.
Envia, Doroteu, vizinho chefe
135 – Ao nosso grande chefe outro soldado
Por vários crimes convencido e preso.
Lança-se o tal soldado, de joelhos
Aos pés do seu herói, suspira e treme,
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Não nega que ferira e que matara,
140 – Mas pede que lhe valha a mão piedosa
Que tudo pode, que ele aperta e beija.
Pergunta-lhe o bom chefe se os seus crimes
Divulgados estão e o camarada,
Com semblante já leve, lhe responde
145 – Que suas graves culpas foram feitas
Em sítios mui distantes desta praça.
Então, então o chefe, compassivo
Manda tirar os ferros dos seus braços
a-lhe um salvo-conduto, com que possa,
150 – Contanto que na terra não se saiba,
fazer impunemente insultos novos.
Caminha, Doroteu, à força um negro
Conforme as leis do reino bem julgado.
Tu sabes, Doroteu, que o próprio Augusto
155 – Estas fatais sentenças não revoga
Sem um justo motivo, em que se firme
o seu perdão a causa. Também sabes
Que estas mesmas mercês se não concedem
Senão por um decreto, em que se expende
160 – Que o sábio rei usou, por motu-próprio,
Do mais alto poder que tem o cetro.
Agora, Doroteu, atende e pasma:
Por um simples despacho, manda o chefe
Que o triste padecente se recolha.
165 – Assenta: vale tanto, lá na corte,
Um grande – El-Rei – impresso, quanto vale
Em Chile, um – Como pede – e o seu garrancho.
Aonde, louco chefe, aonde corres
Sem tino e sem conselho? Quem te inspira
170 – Que remitir as penas é virtude?
E, ainda a ser virtude, quem te disse
Que não é das virtudes, que só pode,
Benigna, exercitar a mão augusta?
Os chefes, bem que chefes, são vassalos
175 – E os vassalos não têm poder supremo.
O mesmo grande Jove, que modera
O mar, a terra e o céu, não pode tudo,
Que ao justo só, se estende o seu império.
O povo, Doroteu, é como as moscas
180 – Que correm ao lugar, aonde sentem
O derramado mel, é semelhante
Aos corvos e aos abutres, que se ajuntam
Nos ermos, onde fede a carne podre.
À vista, pois, dos fatos, que executa
185 – O nosso grande chefe, decisivos
Da piedade que finge, a louca gente
De toda a parte corre a ver se encontra
Algum pequeno alivio à sombra dele.
Não viste, Doroteu, quando arrebenta
190 – Ao pé de alguma ermida a fonte santa,
Que a fama logo corre e todo o povo
Concebe que ela cura as graves queixas.
Pois desta sorte entende o néscio vulgo
Que o nosso general lugar-tenente,
195 – Em todos os delitos e demandas,
Pode de absolvição lavrar sentenças.
Não há livre, não há, não há cativo
Que ao nosso Santiago não concorra.
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Todos buscam ao chefe e todos querem,
200 – Para serem bem vistos, revestir-se
Do triste privilégio de mendigos.
Um as botas descalça, tira as meias
E põe no duro chão os pés mimosos;
Outro despe a casaca, mais a veste
205 – E de vários molambos mal se cobre;
Este deixa crescer a ruça barba,
Com palhas de alhos se defuma aquele;
Qual as pernas emplastra e move o corpo
Metendo nos sobacos as muletas;
210 – Qual ao torto pescoço dependura,
Despido, o braço que só cobre o lenço;
Uns, com bordão, apalpam o caminho,
Outros, um grande bando lhe apresentam
De sujas moças, a quem chamam filhas.
215 – Já foste, Doroteu, a um convento
De padres franciscanos, quando chegam
As horas de jantar ? Passaste, acaso
Por sítio em que morreu mineiro rico,
Quando da casa sai pomposo enterro?
220 – Pois eis aqui, amigo, bem pintada
A porta, mais a rua deste chefe
Nos dias de audiência. Oh! quem pudera
Nestes dias meter-se um breve instante,
A ver o que ali vai na grande sala!
225 – Escusavas de ler os entremezes
Em que os sábios poetas introduzem,
Por interlocutores, chefes asnos.
Um pede, Doroteu, que lhe dispense
Casar com uma irmã da sua amásia;
230 – Pede outro que lhe queime o mau processo,
Onde esta criminoso, por ter feito
Cumprir exatamente um seu despacho;
Diz este que os herdeiros não lhe entregam
Os bens, que lhe deixou, em testamento,
235 – Um filho de Noé; aquele ralha
Contra os mortos,juízes, que lhe deram,
Por empenhos e peitas, a sentença
Em que toda a fazenda lhe tiraram;
Um quer que o devedor lhe pague logo;
240 – Outro, para pagar, pertende espera;
Todos, enfim, concluem que não podem
Demandas conservar; por serem pobres
E grandes as despesas, que se fazem
Nas casas dos letrados e cartórios.
245 – Então o grande chefe, sem demora,
Decide os casos todos que lhe ocorrem
Ou sejam de moral, ou de direito,
Ou pertençam, também, à medicina,
Sem botar, (que ainda é mais), abaixo um livro
250 – Da sua sempre virgem livraria.
Lá vai uma sentença revogada
Que já pudera ter cabelos brancos;
Lá se manda que entreguem os ausentes
Os bens ao sucessor, que não lhes mostra
255 – Sentença que lhe julgue a grossa herança.
A muitos, de palavra, se decreta
Que em pedir os seus bens, não mais prossigam;
A outros se concedem breves horas
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Para pagarem somas que não devem.
260 – Ah! tu, meu Senhor Pança, tu que foste
Da Baratária o chefe, não lavraste
Nem uma-só sentença tão discreta!
E que queres, amigo, que suceda?
Esperavas, acaso, um bom governo
265 – Do nosso Fanfarrão? Tu não o viste
Em trajes de casquilho, nessa corte ?
E pode, meu amigo, de um peralta
Formar-se, de repente, um homem sério?
Carece, Doroteu, qualquer ministro
270 – Apertados estudos, mil exames,
E pode ser o chefe onipotente
Quem não sabe escrever uma só regra
Onde, ao menos, se encontre um nome certo?
Ungiu-se, para rei do povo eleito,
275 – A Saul, o mais santo que Deus via.
Prevaricou Saul, prevaricaram,
No governo dos povos, outros justos.
E há-de bem governar remotas terras
Aquele que não deu, em toda vida
280 – Um exemplo de amor à sã virtude?
As letras, a justiça, a temperança
Não são, não são morgados que fizesse
A sábia natureza, para andarem.
Por sucessão nos filhos dos fidalgos.
285 – Do cavalo andaluz, é, sim, provável
Nascer, também, um potro de esperança,
Que tenha frente aberta, largos peitos,
Que tenha alegres olhos e compridos,
Que seja, enfim, de mãos e pés calçado;
290 – Porém de um bom ginete também pode
Um catralvo nascer, nascer um zarco.
Aquele mesmo potro, que tem todos
Os formosos sinais, que aponta o Rego,
Carece, Doroteu, correr em roda
295 – No grande picadeiro muitos meses,
Para um e outro lado, necessita
Que o destro picador lhe ponha a sela
E que, montando nele, pouco a pouco,
O faça obedecer ao leve toque
300 – Do duro cabeção, da branda rédea.
Dos mesmos, Doroteu... porém já toca.
Ao almoço a garrida da cadeia
Vou ver se dormir posso, enquanto duram
Estes breves instantes de sossego,
305 – Que, sem barriga farta e sem descanso,
Não se pode escrever tão longa história.
CARTA 3ª
Em que se contam as injustiças e violências que Fanfarrão executou por causa de uma cadeia, a que
deu princípio.
Que triste, Doroteu, se pôs a tarde!
Assopra o vento sul, e densa nuvem
Os horizontes cobre; a grossa chuva,
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Caindo das biqueiras dos telhados
5 – Forma regatos, que os portais inundam.
Rompem os ares colubrinas fachas
De fogo devorante e ao longe soa,
De compridos trovões, o baixo estrondo.
Agora, Doroteu, ninguém passeia,
10 – Todos em casa estão, e todos buscam
Divertir a tristeza, que nos peitos
Infunde a tarde, mais que a noite feia.
O velho Altimidonte, certamente,
Tem postas nos narizes as cangalhas
15 – E revolvendo os grandes, grossos livros.
C'os dedos inda sujos de tabaco,
Ajunta ao mau processo muitas folhas
De vãs autoridades carregadas.
O nosso bom Dirceu, talvez que esteja.
20 – Com os pés escondidos no capacho,
Metido no capote, a ler gostoso
O seu Vergílio o seu Camões e Tasso.
O termo Floridoro, a estas horas,
No mole espreguiceiro se reclina
25 – A ver brincar, alegres, os filhinhos,
Um já montado na comprida cana
E outro pendurado no pescoço
Da mãe formosa, que risonho abraça.
O gordo Josefino está deitado,
30 – Nada lhe importa, nem do mundo sabe,
Ao som do vento, dos trovoes e chuva,
Como em noite tranqüila, dorme e ronca;
O nosso Damião, enfim, abana
Ao lento fogo com que, sábio, tira
35 – Os úteis sais da terra e o teu Critilo,
Que não encontra, aqui, com quem murmure,
Quando so murmurar lhe pede o gênio,
Pega na pena e desta sorte voa,
De cá, tão longe, a murmurar contigo.
40 – Já disse, Doroteu, que o nosso chefe,
Apenas principia a governar-nos,
Nos pertende mostrar que tem um peito
Muito mais terno e brando, do que pedem
Os severos ofícios do seu cargo.
45 – Agora, cuidarás, prezado amigo,
Que as chaves das cadeias já não abrem,
Comidas da ferrugem ? Que as algemas,
Como trastes inúteis, se furtaram?
Que o torpe executor das graves penas
50 – Liberdade ganhou ? Que já não temos
Descalços guardiães, que à fonte levem,
Metidos nas correntes, os forçados?
Assim, prezado amigo, assim devia
Em Chile acontecer, se o nosso chefe
55 – Tivesse, em governar, algum sistema.
Mas, meu bom Doroteu, os homens néscios
As folhas dos olmeiros se comparam:
São como o leve fumo, que se move
Para partes diversas, mal os ventos
60 – Começam a apontar, de partes várias.
Ora, pois, doce amigo, atende o como
No seu contrário vicio, degenera
A falsa compaixão do nosso chefe,
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Qual o sereno mar, que, num instante,
65 – As ondas sobre as ondas encapela.
Pertende, Doroteu, o nosso chefe
Erguer uma cadeia majestosa,
Que possa escurecer a velha fama
Da torre de Babel e mais dos grandes,
70 – Custosos edifícios que fizeram,
Para sepulcros seus, os reis do Egito.
Talvez, prezado amigo, que imagine
Que neste monumento se conserve
Eterna, a sua glória, bem que os povos
75 – Ingratos não consagrem ricos bustos
Nem montadas estátuas ao seu nome.
Desiste, louco chefe, dessa empresa:
Um soberbo edifício levantado
Sobre ossos de inocentes, construído
80 – Com lágrimas dos pobres, nunca serve
De glória ao seu autor, mas, sim, de opróbrio.
Desenha o nosso chefe, sobre a banca,
Desta forte cadeia o grande risco,
A proporção do gênio e não das forças
85 – Da terra decadente, aonde habita.
Ora, pois, doce amigo, vou pintar-te
Ao menos o formoso frontispício.
Verás se pede máquina tamanha
Humilde povoado, aonde os grandes
90 – Moram em casas de madeira a pique.
Em cima de espaçosa escadaria
Se forma do edifício a nobre entrada
Por dois soberbos arcos dividida;
Por fora destes arcos se levantam
95 – Três jônicas colunas, que se firmam
Sobre quadradas bases e se adornam
De lindos capitéis, aonde assenta
Uma formosa, regular varanda;
Seus balaústres são das alvas pedras
100 – Que brandos ferros cortam sem trabalho.
Debaixo da cornija, ou projetura,
Estão as armas deste reino abertas
No liso centro de vistosa tarja.
Do meio desta frente sobe a torre
105 – E pegam desta frente, para os lados,
Vistosas galerias de janelas
A quem enfeitam as douradas grades.
E sabes, Doroteu, quem edifica
Esta grande cadeia? Não, não sabes.
110 – Pois ouve, que eu t’o digo: um pobre chefe
Que, na corte, habitou em umas casas
Em que já nem abriam as janelas.
E sabes para quem? Também não sabes.
Pois eu também t’o digo: para uns negros
115 – Que vivem, (quando muito), em vis cabanas,
Fugidos dos senhores, lá nos matos.
Eis aqui, Doroteu, ao que se pode
Muito bem aplicar aquela mofa
Que faz o nosso mestre, quando pinta
120 – Um monstro meio peixe e meio dama.
Na sabia proporção é que consiste
A boa perfeição das nossas obras.
Não pede, Doroteu, a pobre aldeia
15
Os soberbos palácios, nem a corte
125 – Pode, também, sofrer as toscas choças.
Para haver de suprir o nosso chefe
Das obras meditadas as despesas,
Consome do senado os rendimentos
E passa a maltratar ao triste povo,
130 – Com estas nunca usadas violências:
Quer cópia de forçados que trabalhem
Sem outro algum jornal, mais que o sustento
E manda a um bom cabo que lhe traga
A quantos quilombotas se apanharem
135 – Em duras gargalheiras. Voa o cabo,
Agarra a um e outro e num instante
Enche a cadeia de alentados negros.
Não se contenta o cabo com trazer-lhe
Os negros que têm culpas, prende e manda
140 – Também, nas grandes levas, os escravos
Que não têm mais delitos que fugirem
Às fomes e aos castigos, que padecem
No poder de senhores desumanos.
Ao bando dos cativos se acrescentam
145 – Muitos pretos já livres e outros homens
Da raça do país e da européia
Que, diz ao grande chefe, são vadios
Que perturbam dos povos o sossego.
Não há, meu Doroteu, quem não se molde
150 – Aos gestos e aos costumes dos maiores.
Brincando, os inocentes os imitam,
Se as tropas se exercitam, eles fingem
As hórridas batalhas. Se se fazem
Devotas procissões, também carregam
155 – Aos ombros os andores e as charolas.
Os mesmos magistrados se revestem
Do gênio e das paixões de quem governa.
Se o rei é piedoso, são benignos
Os severos ministros, se é tirano
160 – Mostram os pios corações de feras.
Por isso, Doroteu, um chefe indigno
É muito e muito mau, porque ele pode
A virtude estragar de um vasto império.
Os nossos comandantes, que conhecem
165 – A vontade do chefe, também querem
Imitar deste cabo o ardente zelo.
Enviam para as pedras os vadios
Que. na forma das ordens, mandar devem
Habitar em desterro novas terras.
170 – Ora, pois, doce amigo, já que falo
Nos nossos comandantes, será justo
Que te dê destes bichos uma idéia.
A gente, Doroteu, que não se alista
Nas tropas regulares forma corpos
175 – De bisonha ordenança. Não há terra
Sem ter um corpo destes. Os seus chefes
Ao capitão maior estão sujeitos,
E são os que se chamam comandantes,
Porque as partes comandam destes terços.
180 – Estes famosos chefes, quase sempre
Da classe dos tendeiros são tirados.
Alguns, inda depois de grandes homens,
Se lhe faltam os negros, a quem deixam
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O governo das vendas, não entendem
185 – Que infamam as bengalas, quando pesam
A libra de toucinho e quando medem
O frasco de cachaça. Agora atende,
Verás que desta escória se levanta
De magistrados uma nova classe.
190 – Aos ricos taverneiros, disfarçados
Em ar de comandantes, manda o chefe
Que tratem da polícia e que não deixem
Viver, nos seus distritos, as pessoas
Que forem revoltosas. Quer que façam
195 – A todos os vadios uns sumários
E que, sem mais processos, os remetam
Para remotas partes, sem que destas
Jurídicas sentenças, se faculte
Algum recurso para mor alçada.
200 – Já viste, Doroteu, um tal desmancho?
As santas leis do reino não concedem
Ao magistrado régio, que execute,
No crime, o seu julgado e o nosso chefe
Quer que dêem as sentenças sem apelo
205 – Incultos comandantes, que nem sabem
Fazer um bom diário do que vendem!
Concedo, caro amigo, que estes homens
São uns grandes consultos, que meteram
Os corpos do direito nos seus cascos.
210 – Ainda assim pergunto: e como pode
O chefe conceder-lhes esta alçada ?
Ignora a lei do reino, que numera
Entre os direitos próprios dos augustos
A criação dos novos magistrados?
215 – O grande Salomão lamenta o povo
Que sobre o trono tem um rei menino;
Eu lamento a conquista a quem governa
Um chefe tão soberbo e tão estulto
Que, tendo já na testa brancas repas,
220 – Não sabe, ainda, que nasceu vassalo.
Os néscios comandantes e o bom cabo,
Que fez o nosso herói geral meirinho,
Remetem, nas correntes, povo imenso.
Parece, Doroteu, que temos guerras;
225 – Que, para recrutar as companhias,
De toda a parte vêm chorosas levas.
Aqui, prezado amigo, principia
Esta triste tragédia, sim, prepara,
Prepara o branco lenço, pois não podes
230 – Ouvir o resto, sem banhar o rosto
Com grossos rios de salgado pranto.
Nas levas, Doroteu, não vêm somente
Os culpados vadios; vem aquele
Que a dívida pediu ao comandante;
235 – Vem aquele, que pôs impuros olhos
Na sua mocetona e vem o pobre,
Que não quis emprestar-lhe algum negrinho,
Para lhe ir trabalhar na roça e lavra.
Estes tristes, mal chegam, são julgados
240 – Pelo benigno chefe a cem açoites.
Tu sabes, Doroteu, que as leis do reino
Só mandam que se açoitem com a sola
Aqueles agressores, que estiverem.
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Nos crimes, quase iguais aos réus de morte.
245 – Tu também não ignoras que os açoites
Só se dão, por desprezo, nas espáduas,
Que açoitar, Doroteu, em outra parte
Só pertence aos senhores, quando punem
Os caseiros delitos dos escravos.
250 – Pois todo este direito se pretere:
No pelourinho a escada já se assenta,
Já se ligam dos réus os pés e os braços,
Já se descem calções e se levantam
Das imundas camisas rotas fraldas,
255 – Já pegam dois verdugos nos zorragues,
Já descarregam golpes desumanos,
Já soam os gemidos e respingam
Miúdas gotas de pisado sangue.
Uns gritam que são livres, outros clamam
260 – Que as sábias leis do rei os julgam brancos,
Este diz que não tem algum delito
Que tal rigor mereça, aquele pede
Do justo acusador, ao céu, vingança.
Não afrouxam os braços os verdugos,
265 – Mas, antes, com tais queixas, se duplica
A raiva nos tiranos, qual o fogo
.Que aos assopros dos ventos ergue a chama
Às vezes, Doroteu, se perde a conta
Dos cem açoites, que no meio estava,
270 – Mas outra nova conta se começa.
Os pobres miseráveis já nem gritam.
Cansados de gritar, apenas soltam
Alguns fracos suspiros, que enternecem.
Que é isso, Doroteu, tu já retiras
275 – Os olhos do papel? Tu já desmaias?
Já sentes as moções, que alheios males
Costumam infundir nas almas ternas?
Pois és, prezado amigo, muito fraco,
Aprende a ter o valor do nosso chefe
280 – Que à janela se pôs e a tudo assiste
Sem voltar o semblante para a ilharga.
E pode ser, amigo, que não tenha
Esforço, para ver correr o sangue,
Que em defesa do trono se derrama.
285 – Aos pobres açoitados manda o chefe
Que, presos nas correntes dos forçados,
Vão juntos trabalhar. Então se entregam
Ao famoso tenente, que os governa
Como sábio inspetor das grandes obras.
290 – Aqui, prezado amigo, principiam
Os seus duros trabalhos. Eu quisera
Contar-te o que eles sofrem, nesta carta,
Mas tu, prezado amigo, tens o peito,
Dos males que já leste, magoado,
295 – Por isto é justo que suspenda a história,
Enquanto o tempo não te cura a chaga.
CARTA 4ª
Em que se continua a mesma matéria
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Maldito, Doroteu, maldito seja
O vício de um poeta, que, tomando
Entre dentes alguém, enquanto encontra
Matéria em que discorra, não descansa.
5 – Agora, Doroteu, mandou dizer-me
O nosso amigo Alceu, que me embrulhasse
No pardo casacão, ou no capote
E que, pondo o casquete na cabeça,
Fosse ao sítio Covão, jantar com ele.
10 – Eu bem sei, Doroteu, que tinha sopa
Com ave e com presunto, sei que tinha
De mamota vitela um gordo quarto,
Que tinha fricassés, que tinha massas,
Bom vinho de Canárias, finos doces
15 – E, de mimosas frutas, muitos pratos.
Porém que importa, amigo, perdi tudo
Só para te escrever mais uma carta.
Maldito, Doroteu, maldito seja
O vício de um poeta, pois o priva
20 – De encher o seu bandulho, pelo gosto
De fazer quatro versos, que bem podem
Ganhar-lhe uma maçada, que só serve
De dano ao corpo, sem proveito d'alma.
A carta, Doroteu, a longa carta
25 – Que descreve a cadeia, finaliza
No ponto de que os presos se remetem
Ao severo tenente, que preside,
Como sábio inspetor, às grandes obras.
Agora prossigamos nesta história
30 – E demos-lhe o principio, por tirarmos
Ao famoso inspetor, ao grão tenente,
Com cores delicadas, uma cópia.
É de marca maior que a mediana,
Mas não passa a gigante, tem uns ombros
35 – Que o pescoço algum tanto lhe sufocam.
O seu cachaço é gordo, o ventre inchado,
A cara circular, os olhos fundos,
De gênio soberbão, grosseiro trato,
Assopra de contínuo e fala muito.
40 – Preza-se de fidalgo e não se lembra
Que seu pai foi um pobre, que vivia
De cobrar dos contratos os dinheiros,
De que ficou devendo grandes somas,
Sinal de que ele foi um bom velhaco.
45 – O filho, Doroteu, tomou-lhe as manhas:
Era um triste pingante, que só tinha
O seu pequeno soldo, agora veio
Para inspetor das obras e já ronca,
Já empresta dinheiros, já tem casas,
50 – Já tem trastes de custo e ricos móveis,
Mas logo, Doroteu, verás o como.
Mal o duro inspetor recebe os presos
Vão todos para as obras; alguns abrem
Os fundos alicerces, outros quebram,
55 – Com ferros e com fogo, as pedras grossas.
Aqui, prezado amigo, não se atende
Às forças nem aos anos. Mão robusta
De atrevido soldado move o relho,
Que a todos, igualmente, faz ligeiros.
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60 – Aqui se não concede de descanso
Aquele mesmo dia, o grande dia
Em que Deus descansou e em que nos manda
Façamos obras santas, sem que demos,
Aos jumentos e bois, algum trabalho.
65 – Tu sabes, Doroteu, que um tal serviço
Por uma civil morte se reputa.
Que peito, Doroteu, que duro peito
Não Quedeve ter um chefe, que atormenta
A tantos inocentes por capricho?
70 – Que se arrisque o vassalo na campanha,
É uma digna ação que a pátria exige,
Nem este grande risco nos estraga
O pundonor, que vale mais que a vida;
Antes nos abre as portas, para entrarmos
75 – Nos templos do heroísmo. Sim, nós temos,
Nós temos mil exemplos. Muitos, muitos
Que. há séculos, morreram pela pátria,
Na memória dos homens inda vivem.
Mas arriscar vassalos inocentes
80 – Às pedras que se soltam dos guindastes
E aos montes de piçarra que desabam
Nos fundos alicerces, sem vencerem,
Nem como jornaleiros tênue paga;
Pô-los, ainda em cima, na figura
85 – Dos indignos vassalos, que se julgam
Em pena dos delitos, como escravos,
Isto só para erguer-se uma obra grande,
Que outra, pequena, supre, é mais que injusto:
É uma das ações que só praticam
90 – Aqueles torpes monstros, que nasceram
Para serem, na terra, o mal de muitos.
Dirás tu, Doroteu, que o nosso chefe
Não quer que os inocentes se maltratem;
Que o fero comandante é quem abusa
95 – Dos poderes que tem. Prezado amigo,
Quem ama a sã verdade busca os meios
De a poder descobrir e o nosso chefe
Despreza os meios de poder achá-la.
Qu’é deles, os processos, que nos mostram
100 – A certeza dos crimes? Quais dos presos
Os libelos das culpas contestaram?
Quais foram os juízes, que inquiriram
Por parte da defesa e quais patronos
Disseram, de direito, sobre os fatos?
105 – A santa lei do reino não consente
Punir-se, Doroteu, aquele monstro
Que é réu de majestade, sem defesa.
E podem ser punidos os vassalos
Por aéreos insultos, sem se ouvirem
110 – E sem outro processo, mais que o dito
De um simples comandante, vil e néscio?
Um louco, Doroteu, faz mais, ainda,
Do que nunca fizeram os monarcas;
Faz mais que o próprio Deus, que Deus, querendo
115 – Punir, em nossos pais, a culpa grave
Primeiro lhes pediu, que lhe dissessem,
Qual foi, do seu delito, a torpe causa.
Passam, prezado amigo, de quinhentos
Os presos que se ajuntam na cadeia.
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120 – Uns dormem encolhidos sobre a terra,
Mal cobertos dos trapos, que molharam
De dia, no trabalho. Os outros ficam,
Ainda, mal sentados e descansam
As pesadas cabeças sobre os braços,
125 – Em cima dos joelhos encruzados.
O calor da estação e os maus vapores
Que tantos corpos lançam, mui bem podem
Empestar, Doroteu, extensos ares.
A pálida doença aqui bafeja,
130 – Batendo brandamente as negras asas.
Aquele Doroteu, a quem penetra
Este hálito mortal, as forças perde,
Tem dores de cabeça e, num instante.
Abrasa-se em calor, de frio treme.
135 – Fazem os seus deveres os afetos
Do nosso grão tenente: amor e ódio.
Aquele que, risonho, lhe trabalha
Nas suas próprias obras, é mandado
Curar-se à Santa Casa, como pobre.
140 – Os outros são tratados como servos,
Que fogem ao trabalho dos senhores,
Para as correntes vão, arrancam pedra
E, quando algum fraqueia, o mau soldado
Dá-lhe um berro que atroa, a mão levanta
145 – E, nas costas, o relho descarrega.
Ah! tu, piedade santa, agora, agora,
Os teus ouvidos tapa e fecha os olhos?
Ou foge desta terra, aonde um Nero,
Aonde os seus sequazes, cada dia
150 – Para o pranto te dão motivos novos.
O fogo, Doroteu, que vai moendo
Depois de bem moer, a chama ateia
E a matéria consome, em breve instante.
Assim a podre febre que roía
155 – Aos míseros enfermos, pouco a pouco
Erguendo, qual o fogo, a lavareda,
À força do cansaço que resulta
Do trabalho e do sol, consome e mata.
Uns caem, com os pesos, que carregam
160 – E das obras os tiram pios braços
Dos tristes companheiros; outros ficam
Ali mesmo, nas obras, estirados.
Acodem mãos piedosas: qual trabalha
Por ver se pode abrir as grossas pegas
165 – E qual o copo d’água lhes ministra,
Que, fechados os dentes, já não bebem.
Uns as caras borrifam, outros tomam
Os débeis pulsos que, parando, fogem.
Ah! não mais compaixão! Não mais desvelo!
170 – O socorro chegou, mas foi mui tarde:
Cobrem-se os membros de um suor já frio,
Os cheios peitos, arquejando, roncam
E vertem umas lágrimas sentidas,
Que só lhes descem dos esquerdos olhos:
175 – Amarela-se a cor, baceia a vista,
O semblante se afila, o queixo afrouxa,
Os gestos e os arrancos se suspendem;
Nenhum mais bole, nenhum mais respira
Assim, meu Doroteu, sem um remédio,
21
180 – Sem fazerem despesas em um só caldo,
Sem sábio diretor, sem sacramentos,
Sem a vela na mão, na dura terra
Estes pobres acabam seus trabalhos.
Que esperas, duro chefe, que não contas
185 – À corte os teus triunfos! Tu não podes
Mandar alqueires dos anéis tirados
Dos dedos que cortaste nas campanhas;
Mas de algemas, de pegas e correntes,
Podes mandar à corte imensos carros.
190 – Tu podes... mas, amigo, não gastemos
Todo o tempo em contar sentidas coisas,
Façamos menos triste a nossa história;
Misturemos os casos, que magoam,
Com sucessos, que sejam menos fortes.
195 – Não bastam, Doroteu, galés imensas,
São outros mais socorros necessários
Para crescerem as soberbas obras.
Ordena o grande chefe, que os roceiros
E outros quaisquer homens, que tiverem
200 – Alguns bois de serviço, prontos mandem
Os bois e mais os negros que os governem,
Durante uma semana de trabalho.
Ordena, ainda mais, que, neste tempo,
Não recebam jornal, antes, que tragam
205 – O milho, para os bois, dos seus celeiros.
Que é isto, Doroteu, abriste a boca?
Ficaste embasbacado? Não supunhas
Que o nosso grande chefe se saísse
Com uma tão formosa providência?
210 – Nisto de economia é ele o mestre;
Está para compor uma obra, aonde
Quer o modo ensinar, de não gastarem
As tropas coisa alguma, no sustento.
Deus o deixe viver, até que chegue
215 – A pô-la, Doroteu, no mesmo estado
Em que estão os volumes, onde existem
Os despachos, que deu, no seu governo.
Ora, ouve ainda mais, atende e pasma.
Para se sustentarem os forçados
220 – Os gêneros se compram, com bilhetes
Que paga o tesoureiro, quando pode;
E sobre esta fiança inda se tomam
Por muito menos preço do que correm.
As tropas, que carregam mantimentos.
225 – Apenas descarregam, vão, de graça,
À distante caieira, com soldados
Buscar queimada pedra. Daqui nasce
Os tropeiros fugirem e chorarmos
A grande carestia do sustento.
230 – Responde, louco chefe, se tu podes
Tais violências fazer. Não era menos
Lançares sobre os povos um tributo?
Os homens que têm carros e os que vivem
De víveres venderem são, acaso,
235 – Aos mais inferiores nos direitos?
Esta cadeia é sua, porque deva
Sobre eles carregar tamanho peso?
E o povo, quando compra tudo caro,
Não paga ainda mais, do que pagara
22
240 – Se um módico tributo se lançasse,
À proporção dos bens de cada membro?
Amigo Doroteu, quem rege os povos
Deve ler, de contínuo, os doutos livros
E deve só tratar com sábios homens. ;
245 – Aquele que consome as largas horas
Em falar com os néscios e peraltas,
Em meter entre as pernas os perfumes,
Em concertar as pontas dos lencinhos,
Não nasceu para as coisas que são grandes,
250 – Que. nestas bagatelas, não consomem
O tempo proveitoso as nobres almas.
Quem não quer, Doroteu, mandar o carro,
Co’o famoso tenente se concerta.
Onde vai tal dinheiro ninguém sabe;
255 – Só sabemos mui bem, que o bom tenente
Sem ter outro negócio, que lhe renda,
De pingante, passou a potentado.
Sabemos também mais... porém, amigo,
O falar nestas coisas já me enfada.
260 – Omito outros sucessos, que lastimo,
E fecho, Doroteu, a minha carta,
Com um maravilhoso, estranho caso.
Distante nove léguas desta terra
Há uma grande ermida, que se chama
265 – Senhor de Matozinhos: este templo
Os devotos fiéis a si convoca
Por sua arquitetura, pelo sítio
E, ainda muito mais, pelos prodígios
Com que Deus enobrece a santa imagem.
270 – Este famoso templo tem um carro,
Comprado com esmolas, que carrega
As pedras e madeiras, que ainda faltam.
O comandante austero notifica
A veneranda imagem, na pessoa
275 – Do zeloso ermitão, para que mande
O carro, com os bois, servir nas obras
Mal lhe couber o turno da semana.
Faz-se uma petição ao nosso chefe
Em nome do Senhor, em que se alega
280 – Que o carro, que ele tem, se ocupa, ainda,
Na pia construção da sua casa;
Que ele, Cristo, não tem nenhumas rendas
Senão esmolas tênues, que só devem
Gastar-se no seu templo e no seu culto,
285 – Conforme as intenções de quem as pede.
Apenas viu o chefe o peditório,
Quis ao Cristo mandar, que lhe ajuntasse
O título que tinha, porque estava
Isento de pagar os seus impostos:
290 – Que ele sabe mui bem que o mesmo Cristo
Mandou ao velho Pedro, que pagasse
A César, os tributos, em seu nome.
E Cristo, figurado em uma imagem
Não tem mais isenções, que teve o próprio.
295 – Pegava o seu Matúsio já na pena,
Quando lembra, ao bom chefe, o que decretam
Os cânones da igreja, que concedem
Que. para se fazerem obras pias,
Até os sacros vasos se alienem.
23
300 – Infere daqui logo, que este carro
Não goza de isenção, porque, suposto
Se possa numerar nos bens da igreja,
Conforme as Decretais até podia,
Neste caso, vender-se, por ser obra
305 – Mais pia do que todas, a cadeia.
Lança mão ele mesmo, então, da pena
E põe na petição um – escusado –
Com uns rabiscos tais, que ninguém sabe
Ao menos conhecer-lhe uma só letra.
310 – Agora dirá tu: "meu bom Critilo,
Não se isentar a Cristo desse imposto
Foi um grande tesão, mas necessário,
Por não se abrir a porta a maus exemplos.
Antes o Santo Cristo é que devia
315 – Mandar o carro logo, como Mestre
Da sublime Virtude e, desta sorte,
Obrou o mesmo Cristo, em outro tempo,
Mandando que pagasse Pedro a César
O tributo, por ele, quando estava,
320 – Por um dos filhos ser mui bem isento.
Mas se esse Santo Cristo não podia
Por dias dispensar os bois e carro,
Porque não se valeu do tal Matúsio,
Do poeta Robério e de outros trastes,
325 – Por quem aqui se conta, que pratica
O grande Fanfarrão os seus milagres ?"
Tu instas, Doroteu, qual o mestraço
Quando, por defender a sua escola,
Arregaçando o braço, o pé batendo
330 – E enchendo as cordoveias, grita e ralha.
Mas eu, prezado amigo, com bem pouco
Te boto esse argumento todo abaixo.
Em primeiro lugar o Santo Cristo
É homem muito sério, e por ser sério,
335 – Não tem com essa gente um leve trato;
Em segundo lugar é muito pobre.
Só dá aos seus devotos indulgências
Com anos de perdão e, destas drogas,
Não fazem tais validos nenhum caso.
340 – Ora pois, louco chefe, vai seguindo
A tua pertensão, trabalha, e força
Por fazer imortal a tua fama.
Levanta um edifício em tudo grande,
Um soberbo edifício, que desperte
345 – A dura emulação na própria Roma.
Em cirna das janelas e das portas
Põe sábias inscrições, põe grandes bustos,
Que eu lhes porei, por baixo, os tristes nomes
Dos pobres inocentes, que gemeram
350 – Ao peso dos grilhões, porei os ossos
Daqueles que os seus dias acabaram,
Sem Cristo e sem remédios, no trabalho.
E nós, indigno chefe, e nós veremos
A quais destes padrões não gasta o tempo.
CARTA 5ª
24
Em que se contam as desordens feitas nas festas que se celebraram nos desposórios do nosso
sereníssimo infante, com a sereníssima infanta de Portugal.
Tu já tens, Doroteu, ouvido histórias
Que podem comover a triste pranto .
Os secos olhos dos cruéis Ulisses.
Agora, Doroteu, enxuga o rosto,
5 – Que eu passo a relatar-te coisas lindas.
Ouvirás uns sucessos, que te obriguem
A soltar gargalhadas descompostas.
Por mais que a boca, com a mão, apertes,
Por mais que os beiços, já convulsos, mordas,
10 – Eu creio, Doutor... Porém aonde
Me leva, tão errado, o meu discurso?
Não esperes, amigo, não esperes,
Por mais galantes casos que te conte,
Mostrar no teu semblante um ar de riso.
15 – Os grandes desconcertos, que executam
Os homens que governam, só motivam,
Na pessoa composta, horror e tédio.
Quem pode, Doroteu, zombar, contente,
Do César dos romanos, que gastava
20 – As horas, em caçar imundas moscas?
Apenas isto lemos, o discurso
Se aflige, na certeza de que um César,
De espíritos tão baixos, não podia
Obrar um fato bom, no seu governo.
25 – Não esperes, amigo, não esperes
Mostrar no teu semblante um ar de riso;
Espera, quando muito, ler meus versos,
Sem que molhe o papel amargo pranto,
Sem que rompa a leitura alguns suspiros.
30 – Chegou à nossa Chile a doce nova
De que real infante recebera,
Bem digna de seu leito, casta esposa.
Reveste-se o baxá de um gênio alegre
E, para bem fartar os seus desejos
35 – Quer que, a despesas do senado e povo,
Arda em grandes festins a terra toda.
Escreve-se ao senado extensa carta
Em ar de majestade, em frase moura,
E nela se lhe ordena, que prepare,
40 – Ao gosto das Espanhas, bravos touros;
Ordena-se, também, que, nos teatros,
Os três mais belos dramas se estropiem
Repetidos por bocas de mulatos;
Não esquecem, enfim, as cavalhadas.
45 – Só fica, Doroteu, no livre arbítrio
Dos pobres camaristas, repartirem
Bilhetes de convites, pelas damas.
Amigo Doroteu, ah! tu não podes
Pesar o desconcerto desta carta,
50 – Enquanto não souberes a lei própria
Que. aos festejos reais, prescreve a norma.
Enquanto, Doroteu, a nossa Chile
Em toda parte tinha, à flor da terra,
Extensas e abundantes minas de ouro,
55 – Enquanto os taberneiros ajuntavam
Imenso cabedal, em poucos anos,
25
Sem terem, nas tabernas fedorentas,
Outros mais sortimentos, que não fossem
Os queijos, a cachaça, o negro fumo
60 – E sobre as parteleiras poucos frascos,
Enquanto, enfim, as negras quitandeiras,
À custa dos amigos, sô trajavam
Vermelhas capas de galões cobertas,
De galacés e tissos ricas saias,
65 – Então, prezado amigo, em qualquer festa
Tirava, liberal, o bom senado,
Dos cofres chapeados, grossas barras.
Chegaram tais despesas à notícia
Do rei prudente, que a virtude preza.
70 – E, vendo que estas rendas se gastavam
Em touros, cavalhadas e comédias,
Aplicar-se podendo a coisas santas,
Ordena, providente, que os senados,
Nos dias em que devem mostrar gosto
75 – Pelas reais fortunas, se moderem
E só façam cantar, no templo, os hinos
Com que se dão aos céus as justas graças.
Ah ! meu bom Doroteu, que feliz fora
Esta vasta conquista, se os seus chefes
80 – Com as leis dos monarcas se ajustaram!
Mas alguns não presumem ser vassalos,
Só julgam que os decretos dos augustos
Têm força de decretos, quando ligam
Os braços dos mais homens, que eles mandam.
85 – Mas nunca quando ligam os seus braços.
Com esta sábia lei replica o corpo
Dos pobres senadores e pondera
Que o severo juiz, que as contas toma,
Lhes não há-de aprovar tão grandes gastos.
90 – Da sorte, Doroteu, que o bravo potro
Quando a sela recebe a vez primeira.
Enquanto não sacode a sela fora
E faz em dois pedaços cilha e rédea.
Mete entre os duros braços a cabeça
95 – E dá, saltando aos ares, mil corcovos.
Assim o irado chefe não atura
O freio desta lei, espuma brama,
Arrepela o cabelo, a barba torce
E, enquanto entende que o senado zela
100 – Mais as leis, que o seu gosto, não descansa
Aos tristes senadores não responde,
Mas manda-lhes dizer que, a não fazerem
Os pomposos festejos, se preparem
Para serem os guardas dos forçados,
105 – Trocando as varas em chicote e relho.
Já viste, Doroteu, que o grande chefe,
O defensor das leis, o mesmo seja
Que insulte, que ameace ao bom vassalo
Que intenta obedecer ao seu monarca ?
110 – Pois ainda, Doroteu, não viste nada.
Um monstro, um monstro destes não conhece
Que exista algum maior que, ousado, possa
Ou na terra ou no céu, tomar-lhe conta.
Infeliz, Doroteu, de quem habita
115 – Conquistas do seu dono tão remotas!
Aqui o povo geme e os seus gemidos
26
Não podem, Doroteu, chegar ao trono.
E se chegam, sucede quase sempre
O mesmo que sucede nas tormentas,
120 – Aonde o leve barco se sossobra
Aonde a grande nau resiste ao vento.
Que peito, Doroteu, que peito pode
Constante, persistir nos sãos projetos,
Ouvindo as ameaças do tirano
125 – E, junto já de si, o som dos ferros?
Somente, Doroteu, os homens santos
Que a sua lei defendem, vêem os potros,
Vêem cruzes, cadafalsos e cutelos
Com rosto sossegado, os outros homens
130 – Não podem, Doroteu, não podem tanto.
À força de temor o bom senado
Constância já não tem; afrouxa e cede.
Somente se disputa sobre o modo
De ajuntar-se o dinheiro, com que possa
135 – Suprir tamanho gasto o grande Alberga.
Uns dizem que, das rendas do senado,
Tiradas as despesas, nada sobra.
Os outros acrescentam, que se devem
Parcelas numerosas, impagáveis
140 – Às consternadas amas dos expostos.
Uns ralham, outros ralham, mas que importa?
Todos arbítrios dão, nenhum acerta.
Então o grande Alberga, que preside,
Vendo esta confusão, na mesma bate
145 – E, levantando a voz, pausada e forte,
A importante questão assim decide:
"Há dinheiro, senhores, há dinheiro;
Vendam-se os castiçais, tinteiro e bancos,
Venda-se o próprio pano e mesa velha,
150 – Quando isto não baste, há bom remédio,
As fazendas se tomem, não se paguem
E, para autorizardes esta indústria,
Eu vos dou, cidadãos, o meu exemplo".
Intentam replicar-lhe os camaristas,
155 – A tão baixos calotes nunca afeitos.
Mas ele, que não sofre mais instâncias,
As grossas sobrancelhas arqueando,
Desta sorte prossegue, em tom azedo:
"Se os meus santos conselhos se desprezam,
160 – Depressa vou dar parte ao nosso chefe.
Ah! pobres cidadãos, se assim o faço!
Já se me representa que vos sinto
Gemer, debaixo dos pesados ferros."
Só tu, maroto Alberga, só tu podes
165 – Desta sorte falar aos teus colegas!
Que importa que os acuses e que importa
Que os prenda, com grilhões, o duro chefe?
São ferros estes, ferros muito honrados,
Que a honra só consiste na inocência.
170 – Apenas, Doroteu, o vil Alberga
Fala em queixa fazer ao nosso chefe,
De susto os camaristas nem respiram,
Quais chorosos meninos, que emudecem
Quando as amas lhes dizem: cala, cala,
175 – Que la vem o tutu que papa a gente.
Mandam-se apregoar as grandes festas,
27
Acompanha ao pregão luzida tropa
De velhos senadores. Estes trajam,
Ao modo cortesão, chapéus de plumas,
180 – Capas com bandas de vistosas sedas.
Chega enfim o dia suspirado,
O dia do festejo. Todos correm
Com rostos de alegria ao santo templo.
Celebra o velho bispo a grande missa,
185 – Porém o sábio chefe não lhe assiste
Debaixo do espaldar, ao lado esquerdo:
Para a tribuna sobe e ali se assenta.
Uns dizem, Doroteu, fugiu prudente,
Por não ver assentados os padrecos
190 – Na capela maior, acima dele.
Os outros sabichões, que a causa indagam,
Discorrem que o senado lhe devia
Erguer, no presbitério, dossel branco,
Em honra dele ser Lugar Tenente.
195 – Mas eu com estes votos não concordo,
E julgo, afoito, que a razão foi esta:
Porque estando patente e tendo posto
O seu chapéu em cima da cadeira,
Pudera duvidar-se se devia
200 – O bispo ter a mitra na cabeça.
Acaba-se a função e o nosso chefe
À casa, com o bispo se recolhe.
A nobreza da terra os acompanha
Até que montam a dourada sege.
205 – Aqui, meu Doroteu, o chefe mostra
O seu desembaraço e o seu talento!
Só numa função destas se conhece
Quem tem andado terras, onde habitam,
Despidas dos abusos, sábias gentes !
210 – Vai passando por todos, sem que abaixe
A emproada cabeça, qual mandante
Que passa pelo meio das fileiras.
Chega junto da sege, à sege sobe
E da parte direita toma assento.
215 – O bispo, o velho bispo atrás caminha.
Em ar de quem se teme da desfeita.
Com passos vagarosos chega à sege.
Encaixa na estribeira o pé cansado
E duas vezes por subir forceja.
220 – Acodem alguns padres respeitosos
E, por baixo dos braços, o sustentam.
Então, com mais alento, o corpo move
Dá o terceiro arranco, o salto vence
E, sem poder soltar uma palavra,
225 – Ora vermelho ora amarelo fica,
Do nosso Fanfarrão ao lado esquerdo.
Agora dirás tu: "que bruto é esse?
Pode haver um tal homem, que se atreva
A pôr na sua sege ao seu prelado
230 – Da parte da boléia? Eu tal não creio."
Amigo Doroteu, estás mui ginja,
Já lá vão os rançosos formulários
Que guardavam à risca os nossos velhos.
Em outro tempo, amigo, os homens sérios
235 – Na rua não andavam sem florete;
Traziam cabeleira grande e branca.
28
Nas mãos os seus chapéus. Agora, amigo,
Os nossos próprios becas têm cabelo.
Os grandes sem florete vão à missa.
240 – Com a chibata na mão, chapéu fincado,
Na forma em que passeiam os caixeiros.
Ninguém antigamente se sentava
Senão direito e grave, nas cadeiras.
Agora as mesmas damas atravessam
245 – As pernas sobre as pernas. Noutro tempo
Ninguém se retirava dos amigos,
Sem que dissesse adeus. Agora é moda
Sairmos dos congressos em segredo.
Pois corre, Doroteu, à paridade,
250 – Que os costumes se mudam com os tempos.
Se os antigos fidalgos sempre davam
O seu direito lado a qualquer padre,
Acabou-se esta moda: o nosso chefe
Vindica os seus direitos. Vê que o bispo
255 – É um grande que foi, há pouco, frade
E não pode ombrear com quem descende
De um bravo patagão que, sem desculpa,
Lá nos tempos de Adão já era grande.
Na tarde, Doroteu, do mesmo dia
260 – Sai uma procissão, de poucos negros
E padres revestidos, só composta,
Que os brancos e os mulatos se ocupavam
Em guarnecer as ruas, pois que todos
Ocupados estão nas régias tropas.
265 – Caminha o nosso chefe, todo Adônis,
Diante da bandeira do senado;
Alguns dos rigoristas não lho aprovam,
Dizendo que devia, respeitoso,
Da maneira que sempre praticaram
270 – Os seus antecessores, ir ao lado,
Por ser esta bandeira um estandarte
Onde tremulam, do seu reino, as armas.
Mas eu não o censuro, antes lhe louvo
A prudência que teve: pois supunha
275 – Que, à vista do seu sangue e seu caráter,
Podia muito bem querer meter-se
Debaixo, Doroteu, do próprio pálio.
Que destras evoluções não fez a tropa!
Uns ficam, ao passar o sacramento,
280 – Com as suas barretinas nas cabeças,
Os outros se descobrem e ajoelham
E, enquanto não se avança o nosso chefe
Prostrados se conservam e, devotos,
Não cessam de ferir os brandos peitos.
285 – Ah! grande general! com esta tropa
Tu podes conquistar o mundo inteiro!
Foram muitos felices os Lorenas,
Os Condés, os Eugênios e outros muitos,
Em tu não floresceres nos seus tempos.
290 – Meu caro Doroteu, os sapateiros
Entendem do seu couro, os mercadores
Entendem de fazenda, os alfaiates
Entendem de vestidos, enfim todos
Podem bem entender dos seus ofícios.
295 – Porém querer o chefe que se formem
Disciplinadas tropas de tendeiros,
29
De moços de taberna, de rapazes
E bisonhos roceiros, é delírio,
Que o soldado não fica bom soldado
300 – Somente porque veste a curta farda,
Porque limpa as correias, tinge as botas
E, com trapos, engrossa o seu rabicho.
A negra noite em dia se converte
À força das tigelas e das tochas
305 – Que em grande cópia nas janelas ardem.
Aqui o bom Robério se distingue:
Compõe algumas quadras, que batiza
Com o distinto nome de epigramas
E pedante rendeiro as dependura
310 – Na dilatada frente, que ilumina,
Fazendo-as escrever em lindas tarjas.
Rançoso e mau poeta, não nasceste
Para cantar heróis, nem coisas grandes!
Se te queres moldar aos teus talentos,
315 – Em tosca frase do país somente
Escreve trovas, que os mulatos cantem.
Andava, Doroteu, alegre a gente
Em bandos pelas ruas. Então vejo
Ao famoso Roquério neste traje:
320 – As chinelas nos pés, descalça a perna
Um chapéu muito velho na cabeça,
E, fora dos calções, a porca fralda.
Em um roto capote mal se embrulha
E grande varapau na mão sustenta,
325 – Que mais de estorvo que de arrimo serve,
Pois a cachaça ardente, que o alegra,
Lhe tira as forças dos robustos membros
E põe-lhe peso, na cabeça leve.
Não repares, amigo, que te conte
330 – Este sucesso, que parece estranho:
Este grande Roquério é um daqueles
Que assenta, à sua mesa, o nosso chefe.
Agora, amigo, vê se esta pintura
Não pode muito bem à nossa historia,
335 – Sem violência, servir, também, de enfeite.
Fiquemos, Doroteu, aqui, por ora,
Pois, de tanto escrever, a mão já cansa.
Em outra contarei o mais, que resta
E vi no grão passeio e mais no curro,
340 – Aonde as cavalhadas se fizeram,
Aonde os maus capinhas maltrataram,
Em vez de touros, mansos bois e vacas.
CARTA 6ª
Em que se conta o resto dos festejos.
Eu ontem, Doroteu, fechei a carta
Em que te relatei da igrejája as festas .
E como trabalhava, por lembrar-me
Do resto dos festejos mal descalço
5 – Na cama, os lassos membros, me parece
Que vou entrando na formosa praça.
30
Não vejo, Doroteu, um curro feito
De pedaços informes de outros curros
Sim vejo o mesmo curro, que o bom chefe
10 – Riscou na seca praia, e nele vejo
As mesmas armações, as mesmas caras.
Ora vou, doce amigo, aqui pintá-lo
Na frente se levanta um camarote
Mais alto do que todos uma braça:
15 – Enfeitam seu prospecto lindas colchas
E pendentes cortinas de damasco.
À direita se assenta o nosso chefe;
Os régios magistrados não o cercam,
Nem o cerca, também, o nobre corpo.
20 – Dos velhos cidadãos, aquele mesmo
Que faz de toda a festa os grandes gastos.
Com ele só se assenta a sua corte,
Que toda se compõe de novos Martes.
Aqui alguns conheço, que inda vivem
25 – De darem o sustento, o quarto, a roupa.
E capim para a besta, a quem viaja.
Conheço, finalmente, a outros muitos
Que foram almocreves e tendeiros.
Que foram alfaiates e Fizcram.
30 – Puxando a dente o couro, bem sapatos
Agora, doce amigo, não te rias
De veres que estes são aqueles grandes
Que. em presença do chefe, encostar podem
Os queixos nos bastões das finas canas.
35 – Os postos, Doroteu, aqui se vendem,
E, como as outras drogas que se compram,
Devem daqueles ser. que mais os pagam.
No meio desta turba, veio um vulto
Que moça me parece, pelo traje.
40 – Não posso conceber o como deva
Estar uma senhora em tal palanque.
O chefe, (eu discorria), inda é solteiro,
E, quando não o fosse, a sua esposa
Não havia sentar-se com barbados.
45 – Mil coisas, Doroteu, mil coisas feias
Me sugere a malicia, e todas falsas.
Aplico mais a vista, então conheço
Que é uma muito esperta mulatinha
Que dizem filha ser do seu lacaio.
50 – Eis aqui, Doroteu, o como, às vezes
'55 – Que tudo é desta classe, e, se viveres
Ainda o hás-de ver obrar milagres.
Pegado ao camarote do bom chefe
Se vê outro palanque, igual em tudo
Aos rasos camarotes do mais povo.
60 – Aqui têm seu lugar os senadores;
Com eles se encorporam outros muitos
Que lograram de edis as grandes honras.
Nos outros adornados camarotes
Assistem as famílias mais honestas:
65 – Aqui nada se vê que seja pobre.
Recreia, Doroteu, recreia a vista
O vário dos matizes; cega os olhos
O continuo brilhar das finas pedras.
No meio de um palanque então descubro
70 – A minha, a minha Nise: está vestida
31
Da cor mimosa com que o céu se veste
Oh ! quanto, oh! quanto é bela! a verde olaia
Quando se cobre de cheirosas flores
A filha de Taumante, quando arqueia,
75 – No meio da tormenta, o lindo corpo;
A mesma Vênus, quando toma e embraça
O grosso escudo e lança, porque vence a
A paixão do deus Marte com mais força,
Ou, quando lacrimosa se apresenta
80 – Na sala de seu pai, para que salve
Aos seus troianos das soberbas ondas,
Não é, não é como ela tão formosa.
Qual o tenro menino, a quem se chega
Defronte do semblante a vela acesa.
85 – Umas vezes suspenso, outras risonho,
Os olhos arregala e, bem que o chamem,
A tesa vista não separa dela,
Assim eu, Doroteu, apenas vejo
A minha doce Nise, qual menino,
90 – Os olhos nela fito cheios de água,
E, por mais que me chamem, ou me abalem.
De embebido que estou, não sinto nada.
No meio, Doroteu, de tanto assombro,
Me finge a perturbada fantasia
95 – Novo sucesso, que me aflige e cansa.
Aparece, no curro passeando,
Sexagenário velho, em ar de moço:
Traja uma curta veste, calções largos
Da cor da seca rosa, a quem adorna
100 – O brilhante galão de fina prata.
Na bolsa do cabelo, que se enfeita
De duas negras plumas e de flocos,
Branquejam os vidrilhos, e no peito,
De flores se sustenta um grande molho.
105 – Traz dois anéis nos dedos e fivelas
De amarelos topázios. Não caminha
Sem que, avante, caminhe um branco pajem
Atrás da cadeirinha, e o seu moleque
Em forma de lacaio. Ah! velho tonto!
110 – Esse teu tratamento imita, imita
Ao estado que tem o rei do Congo.
Ponho os meus olhos no caduco Adônis,
Então se me afigura que ele oferta
A Nise uma das flores, e que Nise
115 – Com ar risonho, no seu peito a prega.
Aos zelos, Doroteu, ninguém resiste;
Sentem a sua força os altos deuses,
Os homens mais as feras; e, em Critilo,
Não podes esperar paixões diversas.
120 – Apenas isto veio, exasperado
Meto a mão no florete e, quando intento
O peito transpassar-lhe, então acordo
E, vendo-me às escuras sobre a cama
Conheço que isto tudo foi um sonho.
125 – Pintei-te, Doroteu. o grande curro
Da sorte que minha alma o viu sonhando:
Agora vou pintar-te os mais sucessos
Que impressos inda tenho na memória.
Ainda, Doroteu, no largo curro
130 – Caretas não brincavam, nem se viam,
32
Nos rasos camarotes, altas popas,
Enfeites com que brilham néscias damas
Quando já no castelo de madeira
As peças fuzilavam, sinal certo
135 – De que o nosso herói e o velho bispo
No adornado palanque se assentavam.
Agora dirás tu: "é forte pressa!
Os chefes nos teatros entram sempre
Às horas de correr-se acima o pano.
140 – Amigo Doroteu, tu nunca viste
Uma criança a quem a mãe promete
Levá-la a ver de tarde alguma festa
Que logo de manhã a mãe persegue,
Pedindo que lhe dispa os fatos velhos ?
145 – Pois eis aqui, amigo, o nosso chefe.
Não quer perder de estar casquilho e teso
No erguido camarote um breve instante.
Chegam-se, enfim, as horas do festejo;
Entra na praça a grande comitiva;
150 – Trazem os pajens as compridas lanças
De fitas adornadas, vêm à destra
Os formosos ginetes arreados,
Seguem-se os cavaleiros, que cortejam
Primeiro ao bruto chefe, logo aos outros,
155 – Dividindo as fileiras sobre os lados.
Não há quem o cortejo não receba
Em ar civil e grato; só o chefe
O corpo da cadeira não levanta,
Nem abaixa a cabeça, qual o dono
160 – Dos míseros escravos, quando juntos
A benção vão pedir-lhe, porque sejam
Ajudados de Deus no seu trabalho.
Feitas as cortesias do costume,
Os destros cavaleiros galopeiam
165 – Em círculos vistosos, pelo campo.
Logo se formam em diversos corpos,
A maneira das tropas que apresentam
Sanguinosas batalhas. Soam trompas,
Soam os atabales, os fagotes,
170 – Os clarins, os boés, e mais as flautas:
O fogoso ginete as ventas abre
E bate com as mãos na dura terra;
Os dois mantenadores já se avançam.
Aqui, prezado amigo, aqui não lutam,
175 – Como nos espetáculos romanos,
Com forçosos leões, malhados tigres,
Os homens, peito a peito e braço a braço.
Jogam-se encontroadas, e se atiram
Redondas alcancias, curtas canas.
180 – De que destro inimigo se defende
Com fazê-las no ar em dois pedaços.
Ao fogo das pistolas se desfazem
Nos postes as cabeças. Umas ficam
Dos ferros trespassados, outras voam,
185 – Sacudidas das pontas das espadas;
Airoso cavaleiro ao ombro encosta
A lança, no princípio da carreira;
No ligeiro cavalo a espora bate;
Desfaz com mão igual o ferro, e logo
190 – Que leva um argolinha, a rédea toma
33
E faz que o bruto pare. Doces coros
Aplaudem o sucesso, enchendo os ares
De grata melodia. Então, vaidoso,
Guiado de um padrinho, ao chefe leva
195 – O sinal da vitória, que segura
Na destra, aguda lança. O bruto chefe
Aceita a oferta em ar de majestade;
À maneira dos amos, quando tomam
As coisas que lhes dão os seus criados.
200 – Nestes e noutros brincos inocentes
Se passa, Doroteu, a alegre tarde.
Já no sereno céu resplandeciam
As brilhantes estrelas, os morcegos
E as toucadas corujas já voavam,
205 – Quando, prezado amigo, nas janelas
Do nosso Santiago se acendiam.
Em sinal de prazer, as luminárias;
Ardem, pois, nas janelas de palácio
Duas tochas de pau, e sobre a frente
210 – Da casa do Senado se levanta
Uma extensa armação, a quem enfeitam
Quatro mil tigelinhas. Meu Alberga
Aqui o prêmio tens, do teu trabalho.
Tu farás, de torcidas e de azeite,
215 – Aos tristes camaristas, contas largas;
E as arrobas de sebo, que não arde
Desfeitas em sabão, mui bem te podem
Toda a roupa lavar por muitos anos.
Nas margens, Doroteu, do sujo corgo,
220 – Que banha da cidade a longa fralda,
Ha uma curta praia, toda cheia
De já lavados seixos. Neste sitio
Um formoso passeio se prepara:
Ordena o sábio chefe que se cortem
225 – De verdes laranjeiras muitos ramos,
E manda que se enterrem nesta praia
Fingindo largas ruas. Cada tronco
Tem, debaixo das folhas, uma táboa.
Sem lavor nem pintura, que sustenta
230 – Doze tigelas do grosseiro barro.
No meio do passeio estão abertas
Duas pequenas covas, pouco fundas
Que lagos se apelidam. Sobre as bordas
Ardem mil tigelinhas e o azeite
235 – Que corre, Doroteu, dos covos cacos
Inda é mais do que são as sujas águas
Que nem os fundos cobrem destes tanques.
A tão formoso sitio tudo acode
Ou seja de um ou seja de outro sexo,
240 – Ou seja de uma ou seja de outra classe.
Aqui lascivo amante, sem rebuço
A torpe concubina oferta o braco
Ali mancebo ousado assiste e faia
A simples filha, que seus pais recatam;
245 – A ligeira mulata, em trajes de homens,
Dança o quente lundu e o vil batuque,
E, aos cantos do passeio, inda se fazem
Ações mais feias, que a modéstia oculta.
Meu caro Doroteu, meu doce amigo,
250 – Se queres que este sitio te compare
34
Como sério poeta, aqui tens Chipre,
Nos dias em que os povos tributavam
A deusa tutelar alegres cultos.
Se queres que o compare, como um homem
255 – Que alguma noção tem das sacras letras,
Aqui Sodoma tens e mais Gomorra.
Se queres, finalmente, que o compare
A lugar mais humilde, em tom jocoso,
Aqui, amigo, tens esse afamado
260 – Quilombo, em que viveu o pai Ambrósio.
Depõe o nosso chefe a majestade
E, por ver as madamas, rebuçado
No capote de berne; corre as ruas,
Seguido, Doroteu, das suas guardas.
265 – Depois de dar seus giros, vai sentar-se
Em um dos toscos bancos, onde tomam
Assento certas moças que puderam,
Não sei por que razão, cair-lhe em graça.
Não diz uma fineza às tais mocinhas,
270 – Pois não é, Doroteu, porque não saiba,
Que ele tem muito estudo de Florinda,
Da Roda da Fortuna e de outros livros,
Que dão aos seus leitores grande massa.
É, sim, por sustentar a gravidade
275 – Que, no público, pede o seu emprego.
Mas, para lhes mostrar o quanto as preza,
(Oh! força milagrosa do bestunto!)
Descobre esta feliz e nova traça:
Vai sentar-se na ponta do banquinho,
280 – Umas vezes suspende ao ar o corpo,
Outras vezes carrega sobre a taboa
E, desta sorte, faz que as belas mocas,
Movidas do balanço, dêem no vento
Milhares e milhares de embigadas.
285 – Chega-se, Doroteu, defronte dele
Um máscara prendado: não estima
Os discretos conceitos, nem se agrada
De ver executar vistosos passos.
Manda, sim, que arremede o nosso bispo,
290 – Que arremede, também, o modo e o gesto
De um nosso general. São estes momos
Os únicos que podem comovê-lo
No público a mostrar risonha cara.
Oh ! alma de fidalgo, oh ! chefe digno
295 – De vestir a libré de um vil lacaio!
Cresceram, doce amigo, alguns foguetes
Da noite em que o Senado fez no curro
De pólvora queimar barris imensos.
Em uma noite clara, qual o dia.
300 – Ordena que os foguetes vão aos ares.
Vai se pôr no passeio, reclinado
Sobre um monte de pedras; faz-lhe a corte
A velha poetisa, que repete
Um soneto que fez a certos males.
305 – Começam os vapores do ribeiro
A formar, sobre a terra, nuvens densas
Não se vêem, dos foguetes, os chuveiros
Não se vêem as estrelas, nem as cobras
Mas ele os deixas arder, e gasta a noite
310 – Contente com ouvir alguns estalos
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E a bulha, que eles fazem, quando sobem.
Já chega, Doroteu, o novo dia
O dia em que se correm bois é vacas.
Amigo Doroteu, é tempo, é tempo
315 – De fazer-te excitar, no peito brando
Afetos de ternura, de ódio e raiva.
No dia. Doroteu, em que se devem
Correr os mansos touros, acontece
Morrer a casta esposa de um mulato,
320 – Que a vida ganha por tocar rabeca;
Dá-se parte do caso ao nosso chefe
Este, prezado amigo, não ordena
Que outro músico vá em lugar dele
A rabeca tocar no pronto carro;
325 – Ordena que ele escolha ou a cadeia
Ou ir tocar a doce rabequinha
Naquela mesma tarde, pela praia.
Que é isto, Doroteu, estás confuso?
Duvidas que isto seja ou não verdade ?
330 – Então que hás de fazer, quando me ouvires
Contar desordens, que inda são mais calvas?
Indigno, indigno chefe, as leis sagradas
Não querem se incomodem alguns dias
Os parentes chegados dos defuntos,
335 – Ainda para coisas necessárias;
E tu, cruel, violentas um marido
A deixar sobre a terra o frio corpo
Da sua terna esposa, sem que tenhas
Ao menos uma honesta e justa causa
340 – Bárbaro, tu praticas tudo junto
Quanto obraram, no mundo, os maus tiranos!
Mezêncio ajuntava os corpos vivos
Aos corpos já corruptos, e tu segues
Outros caminhos, que inda são mais novos;
345 – Separas dos defuntos os que vivem,
Não queres que os parentes sejam pios,
Dando as últimas honras aos seus mortos!
Chega-se, finalmente, a tarde alegre
Do festejo dos touros. Já no curro
350 – Aparecem os dois formosos carros.
O primeiro derrama sobre a terra,
Por bocas de serpentes escamosas,
Dois puros chorros de água; no segundo
Se levantam, alegres, doces vozes,
355 – Que vários instrumentos acompanham.
Aqui, entre os que tocam, se divisa
Um triste rosto, que se alaga em pranto.
Não sabes, Doroteu, quem este se!a ?
Pois é, prezado amigo, aquele triste
360 – Que tem a mulher morta sobre a cama.
O nosso grande chefe mal conhece
Ao pobre do viúvo, compassivo
Mete a mão no seu bolso e dele tira
Um famoso cartucho, que lhe entrega.
365 – O néscio rebequista, que a ação nota,
Um pouco suaviza a sua mágoa,
E, enquanto não recebe o tal embrulho,
Consigo assim discorre: "Que ditosa,
Que ditosa violência, que socorre,
370 – Em tal ocasião, a minha falta!
36
Já tenho com que pague ao meu vigário,
Já tenho com que pague a cera, a cova,
A mortalha, o caixão, e mais os padres."
Assim o bom viúvo discorria,
370 – Quando pega no embrulho, e mal o rasga,
Encontra, Doroteu, confeitos grandes,
Encontra manuscriti e rebuçados.
Que é isso, Doroteu, de novo pasmas?
De novo desconfias da verdade ?
380 – Amigo Doroteu, o nosso chefe
Estudou medicina, e como alcança
Que o chorar faz defluxo, providente
Ministra rebuçados a quem chora,
Para, com eles, acudir-lhe ao peito.
385 – Principiam os touros, e se aumentam
Do chefe as parvoíces. Manda à praça
Sem regra, sem-discurso e sem concerto.
Agora sai um touro levantado,
Que ao mau capinha, sem fugir, espera.
390 – Acena-lhe o capinha, ele recua
E atira com as mãos, ao ar, a terra.
Acena-lhe o capinha novamente,
De novo raspa o chão e logo investe
Lá vai o mau capinha pelos ares.
395 – Lá se estende na areia, e o bravo touro
Lhe dá, com o focinho, um par de tombos
Nem deixa de pisá-lo, enquanto o néscio
Não segue o meio de fingir-se morto.
Meu esperto boizinho, em paz te fica,
400 – Que o nosso chefe ordena te recolham
Sem fazeres mais sorte, e te reserva
Para ao curro saíres, quando forem
Do Senhor do Bonfim as grandes festas.
Agora sai um touro, que é prudente.
405 – Se o capinha o procura, logo foge.
Os caretas lhe dão mil apupadas
Um lhe pega no rabo, e o segurâ,
Outro intenta montá-lo, e o grande chefe
O deixa passear por largo espaço.
410 – Manda soltar-lhe os cães, manda meter-lhe
As garrochas de fogo, que primeiro
Quem rompam do ligeiro bruto
Nos destros dedos do capinha estalam.
Com estes maus festejos, que aborrecem,
415 – Se gastam muitos dias. Já o povo
Se cansa de assistir na triste praça
E, ao ver-se solitário, o bruto chefe
Nos trata por incultos, mais ingratos.
Soberbo e louco chefe, que proveito
420 – Tiraste de gastar em frias festas
Imenso cabedal, que o bom Senado
Devia consumir em coisas santas ?
Suspiram pobres amas e padecem
Crianças inocentes, e tu podes
425 – Com rosto enxuto ver tamanhos males?
Embora! sacrifica ao próprio gosto
As fortunas dos povos que governas;
Virá dia em que mão robusta e santa
Depois de castigar-nos, se condoa
430 – E lance na fogueira as varas torpes.
37
Então rirão aqueles que choraram,
Então talvez que chores, mas debalde.
Que suspiros e prantos nada lucram
A quem os guarda para muito tarde.
CARTA 7ª
Há tempo, Doroteu, que não prossigo
Do nosso Fanfarrão a longa história.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Que não busque cobrí-los com tal capa,
Que inda se persuada que os maís homens
5 – Lh'os ficam respeitando, como acertos .
Enquanto ao conhecer destes despejos,
Pespega à lei a boa inteligência,
Que extensiva se chama. Sim, entende
Que aonde o rei ordena que só haja
10 – Recurso a ele mesmo, nos faculta
Recurso aos generais, pois que estes fazem,
Em tudo, e mais que em tudo, as suas vezes.
Ah! dize, meu amigo, se podia
Dar-lhe outra inteligência o mesmo Acúrsio .
15 – Esse grande doutor, que já nos finge,
Nos princípios de Roma, conhecida
A Divina Trindade, e que pondera
Que do cão, que na palha está deitado,
A velha fúria, lei se diz canina.
20 – Maldito, Doroteu, maldito seja
O pai de Fanfarrão, que deu ao mundo,
Ao mundo literário tanta perda,
Criando ao hábil filho numa corte,
Qual morgado, que habita em pobre aldeia!
25 – Ah ! se ele, doce amigo, assim discorre,
Sabendo apenas ler redonda letra,
Que abismo não seria, se soubesse
Verter o breviário em tosca prosa.
Se entrasse em Salamanca, e ali ouvisse
30 – Explicar a questão daquela escrava
Que foi manumetida em testamento,
Se três filhos parisse, e outras muitas
Que os lentes nos ensinam, desta casta !
Enquanto, Doroteu, ao outro ponto
35 – De julgar aos expulsos inocentes,
Também razão lhe dou, porque, primeiro
Se informa com aqueles, que os réus dizem
Que sabem, mais que todos, do seu caso.
Nem é de presumir que estes lhe faltem
40 – A verdade, jurando, pois têm alma.
Sê boa testemunha, meu paizinho
A quem o vulgo chama Pé-de-Pato.
Confessa se não foste o que juraste
Que deste uma denúncia e fora falsa.
45 – Indigno e bruto chefe, em que direito
38
Entendes que se firmam tais processos ?
Um réu, a quem condena um magistrado,
Pode mostrar o injusto da sentença
Dando umas testemunhas que juraram
50 – Sem haver citação da sua parte ?
Dando umas testemunhas inquiridas
Por juiz que não pode perguntá-las ?
E como, louco chefe, e como sabes
Que a defesa convence, se nem viste
55 – Os autos, em que a culpa está formada ?
Suponho que juraram novamente
Aqueles mesmos que as denúncias deram:
O segundo e contrário juramento
Não é que se reputa, sempre, o falso ?
60 – E quem chega a comprar um grande chefe
Não pode inda melhor comprar um negro ?
Amigo Doroteu, estes pretextos
São como as bigodeiras, que não podem
Fazer se não conheçam as pessoas,
65 – Que dançam nos teatros por dinheiro.
Não lucra, doce amigo, o nosso chefe
Somente em revogar os extermínios
Que fazem os ministros: ele mesmo
Ordena se despejem os ricaços,
70 – Ainda que estes vivam sem suspeita
Do infame contrabando. Desta sorte
Os obriga, também, a vir à tenda
Comprar, por grossas barras, seus despachos.
Todos largam, enfim, e todos entram
75 – No vedado distrito, sem que importe
Haver ou não haver de crime indicio.
Só tu, meu Josefino, sô tu ficas
No mandado desterro, por teimares
Em não querer largar, ao vil Matúsio,
80 – Uns tantos mil cruzados, que pedia.
Só tu... porem, amigo, é tempo, é tempo
De fechar esta carta, pois, ainda
Que a matéria, por nova, te deleite,
A muita difusão também enfada.
85 – Eu a pena deponho, e só te peço
Que tomes a lição, que te apresenta
O nosso Fanfarrão, no seu mulato.
Não desfaças, amigo, as ruças becas.
Vai-as distribuindo aos teus lacaios,
90 – Bem como faz o chefe às suas fardas,
Que, enquanto estes as rompem, poupam
As librés amarelas asseadas.
CARTA 8ª
Em que se trata da venda dos despachos e contratos
Os grandes, Doroteu, da nossa Espanha
Têm diversas herdades: uma delas
Dão trigo, dão centeio e dão cevada,
As outras têm cascatas e pomares,
5 – Com outras muitas peças, que só servem,
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Nos calmosos verões, de algum recreio.
Assim os generais da nossa Chile
Têm diversas fazendas: numas passam
As horas de descanso, as outras geram
10 – Os milhos, os feijões e os úteis frutos
Que podem sustentar as grandes casas.
As quintas, Doroteu, que mais lhes rendem,
Abertas nunca são do torto arado.
Quer chova de contínuo, quer se gretem
15 – As terras, ao rigor do sol intenso,
Sempre geram mais frutos do que as outras,
No ano em que lhes corre, ao próprio, o tempo.
Estas quintas, amigo, não produzem
Em certas estações, produzem sempre,
20 – Que os nossos generais, tomando a foice,
Vão fazer, nas searas, a colheita.
Produzem, que inda é mais, sem que os bons chefes
Se cansem com amanhos, nem, ainda,
Com lançarem, nos sulcos, as sementes.
25 – Agora dirás tu, de assombro cheio:
"Que ditosas campinas! Dessa sorte
Só pintam os Elíseos os poetas."
Amigo Doroteu, és pouco esperto;
As fazendas que pinto não são dessas
30 – Que têm, para as culturas, largos campos
E virgens matarias, cujos troncos
Levantam, sobre as nuvens, grossos ramos.
Não são, não são fazendas onde paste
O lanudo carneiro e a gorda vaca,
35 – A vaca, que salpica as brandas ervas
Com o leite encorpado, que lhe escorre
Das lisas tetas, que no chão lhe arrastam.
Não são, enfim, herdades, onde as louras
Zunidoras abelhas de mil castas,
40 – Nos côncavos das árvores já velhas,
Que bálsamos destilam, escondidas,
Fabriquem rumas de gostosos favos.
Estas quintas são quintas só no nome,
Pois são os dois contratos, que utilizam
45 – Aos chefes, inda mais que ao próprio Estado.
Cada triênio, pois, os nossos chefes
Levantam duas quintas ou berdades,
E, quando o lavrador da terra inculta
Despende o seu dinheiro, no princípio,
50 – Fazendo levantar, de paus robustos,
As casas de vivenda e, junto delas,
Em volta de um terreiro, as vis senzalas,
Os nossos generais, pelo contrário,
Quando estas quintas fazem, logo embolsam
55 – Uma grande porção de louras barras.
A primeira fazenda, que o bom chefe
Ergueu nestas campinas, foi a grande
Herdade, que arrendou ao seu Marquésio.
As línguas depravadas espalharam
60 – Que, para o tal Marquésio entrar de posse,
Largara ao grande chefe, só de luvas,
Uns trinta mil cruzados; bagatela!
Os mesmos maldizentes acrescentam
Que o pançudo Robério fora aquele
65 – Que fez de corretor no tal contrato.
40
Amigo Doroteu, eu tremo e fujo
De encarregar minha alma. O bom Vergílio
Talvez, talvez que aflito se revolva,
No meio da fogueira devorante,
70 – Por dizer que adorara, ao pio Enéias,
Uma casta rainha, cujos ossos
Estavam no sepulcro, já mirrados,
Havia coisa de trezentos anos.
Eu não te afirmo, pois, que se fizesse
75 – A venda vergonhosa; só te afirmo
Que o mundo assim o julga, e que esta fama
Não deixa de firmar-se em bons indícios.
As leis do nosso reino não consentem
Que os chefes dêem contratos, contra os votos
80 – Dos retos deputados que organizam
A Junta de Fazenda, e o nosso chefe
Mandou arrematar, ao seu Marquésio,
O contrato maior, sem ter um voto
Que favorável fosse aos seus projetos.
85 – As mesmas santas leis jamais concedem
Que possa arrematar-se algum contrato
Ao rico lançador, se houver na praça
Um só competidor de mais abono;
E o nosso general mandou se desse
90 – O ramo ao lançador, que apenas tinha
Uns vinte mil cruzados, em palavra,
Deixando preterido outro sujeito
De muito mais abono, e a quem devia
Um grosso cabedal o régio erário.
95 – Mal acaba Marquésio o seu triênio,
Outro novo triênio lhe arremata,
Sem que um membro da Junta em tal convenha;
E, tendo o tal Marquésio, no contrato,
Perdido grandes somas, lhe dispensa
100 – Outras fianças dar à nova renda.
Amigo Doroteu, o nosso chefe,
Que procura tirar conveniência
Dos pequenos negócios e despachos,
Daria este contrato ao bom Marquésio,
105 – Este grande contrato, sem que houvesse,
De paga equivalente, ajuste expresso?
Amigo Doroteu, se não sou sábio,
Não sou, também, tão néscio, que nem saiba
Das premissas tirar as conseqüências.
110 – Agora dirás tu: "Se o patrimônio
De Marquésio consiste, como afirmas,
Em vinte mil cruzados, em palavra,
Como, de luvas, deu ao chefe os trinta?"
Amigo Doroteu, estou pilhado;
115 – A palavra, que sai da boca fora,
É corno a calhoada, que se atira,
Que já não tem remédio; paciência.
Eu as ervas arranco, e, desde agora,
Contigo falarei com mais cautela.
120 – Mas que vejo? Tu ris-te? Acaso pensas
Que me tens apanhado na verdade?
A mim nunca apanharam os capuchos,
Quando, no raso assento, defendia
Que a natureza não tolera o vácuo,
125 – Que os cheiros são ocultas entidades,
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Com outras mil questões da mesma classe.
E tu, meu doce amigo, pertendias
Convencer-me em matéria em que dar posso
A todos, de partido a sota e o basto
130 – Desiste, Doroteu, do louco intento,
Faze uma grande cruz na lisa testa,
Dá figas ao demônio, que te atenta.
Ora ouve a solução desse argumento:
Bem que pingante seja quem remata
135 – Este grande contrato, mercadeja
Com perto de um milhão; por isso todos
lhe emprestam prontamente os seus dinheiros.
Os chefes, Doroteu, que só procuram
De barras entulhar as fortes burras,
140 – Desfrutam juntamente as mais fazendas,
Que os seus antecessores levantaram.
Nem deixam descansar as férteis terras
Enquanto não as põem em sambambaias.
Aqui agora tens, meus Silverino,
145 – O teu próprio lugar. Tu és honrado,
E prezas, como eu prezo, a sã verdade;
Por isso nos confessas que tu ganhas
A graça deste chefe, porque envias,
Pela mão de Matúsio, seu agente
150 – Em todos os trimestres, as mesadas.
Eu sei, meu Silverino, que quem vive
Na nossa infeliz Chile, não te impugna
Tão notória verdade. Porém deve
Correr estranhos climas esta história,
155 – E, como tu não vás, também, com ela,
É justo que lhe ponha algumas provas.
A sábia lei do reino quer e manda
Que os nossos devedores não se prendam.
Responde agora tu, por que motivo
160 – Concede o grande chefe que tu prendas
A quantos miseráveis te deverem?
Porque, meu Silverino? Porque largas,
Porque mandas presentes, mais dinheiro.
As mesmas leis do reino também vedam
165 – Que possa ser juiz a própria parte.
Responde agora mais, por que princípio
Consente o nosso chefe, que tu sejas
O mesmo que encorrente a quem não paga?
Porque, meu Silverino? Porque largas,
170 – Porque mandas presentes, mais dinheiro.
Os sábios generais reprimir devem
Do atrevido vassalo as insolências;
Tu metes homens livres no teu tronco,
Tu mandas castigá-los, como negros;
175 – Tu zombas da justiça, tu a prendes;
Tu passas portais ordenando
Que com certas pessoas não se entenda.
Porque, por que razão o nosso chefe
Consente que tu faças tanto insulto,
180 – Sendo um touro, que parte ao leve aceno?
Porque, meu Silverino? Porque largas
Porque mandas presentes, mais dinheiro.
A lei do teu contrato não faculta
Que possas aplicar aos teus negócios
185 – Os públicos dinheiros. Tu, com eles,
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Pagaste aos teus credores grandes somas!
Ordena a sábia Junta, que dês logo
Da tua comissão estreita conta;
O chefe não assina a portaria,
190 – Não quer que se descubra a ladroeira,
Porque te favorece, ainda à custa
Dos régios interesses, quando finge
Que os zela muito mais que as próprias rendas.
Porque, meu Silverino? Porque largas,
195 – Porque mandas presentes, mais dinheiro.
Apenas apareces... Mas não posso
Só contigo gastar papel e tempo.
Eu já te deixo em paz, roubando o mundo,
E passo a relatar, ao caro amigo,
200 – Os estranhos sucessos que ainda faltam;
Nem todos lhe direi, pois são imensos.
Pretende, Doroteu, o nosso chefe
Mostrar um grande zelo nas cobranças
Do imenso cabedal que todo o povo,
205 – Aos cofres do monarca, está devendo.
Envia bons soldados às comarcas,
E manda-lhe que cobrem, ou que metam,
A quantos não pagarem, nas cadeias.
Não quero, Doroteu, lembrar-me agora
210 – Das leis do nosso augusto; estou cansado
De confrontar os fatos deste chefe
Com as disposições do são direito;
Por isso pintarei, prezado amigo,
Somente a confusão e a grã desordem
215 – Em que, a todos, nos pôs tão nova idéia.
Entraram, nas comarcas, os soldados,
E entraram a gemer os tristes povos.
Uns tiram os brinquinhos das orelhas
Das filhas e mulheres; outros vendem
220 – As escravas, já velhas, que os criaram,
Por menos duas partes do seu preço.
Aquele que não tem cativo, ou jóia,
Satisfaz com papéis, e o soldadinho
Estas dívidas cobra, mais violento
225 – Do que cobra a justiça uma parcela
Que tem executivo aparelhado,
Por sábia ordenação do nosso reino.
Por mais que o devedor exclama e grita
Que os créditos são falsos, ou que foram
230 – Há muitos anos pagos, o ministro
Da severa cobrança a nada atende;
Despeza estes embargos, bem que o triste
Proteste de os provar incontinenti.
Não se recebem só, prezado amigo,
235 – Os créditos alheios, para embolso
Das dividas fiscais. O soldadinho
Descobre um ramo, aqui, de bom comercio:
Aquele que não quer propor demandas
Promete-lhe a metade, ou mais, ainda,
240 – Das somas que lhe entrega, e ele as cobra
Fingindo que as tomou em pagamento
Das dividas do rei. Ainda passa
A mais esta desordem: faz penhoras
E manda arrematar, ao pé da igreja,
245 – As casas, os cativos, mais as roças.
43
Agora, Fanfarrão, agora falo
Contigo, e só contigo. Por que causa
Ordenas que se faça uma cobrança
Tão rápida e tão forte contra aqueles
250 – Que ao erário só devem tênues somas?
Não tens contratadores, que ao rei devem,
De mil cruzados centos e mais centos?
Uma só quinta parte, que estes dessem,
Não matava, do erário, o grande empenho?
255 – O pobre, porque é pobre, pague tudo,
E o rico, porque é rico, vai pagando
Sem soldados à porta, com sossego!
Não era menos torpe, e mais prudente
Que os devedores todos se igualassem?
260 – Que, sem haver respeito ao pobre ou rico,
Metessem, no erário, um tanto certo,
À proporção das somas que devessem?
Indigno, indigno chefe! Tu não buscas
O público interesse. Tu só queres
265 – Mostrar ao sábio augusto um falso zelo,
Poupando, ao mesmo tempo, os devedores,
Os grossos devedores, que repartem
Contigo os cabedais, que são do reino.
Talvez, meu Doroteu, talvez que entendas
270 – Que o nosso Fanfarrão estima e preza
Os rendeiros que devem, por sistema:
Só para ver se os ricos desta terra,
A força de favores animados,
Se esforçam a lançar nas régias rendas.
275 – Amigo Doroteu, o nosso chefe,
Se faz alguma coisa, é só movido
Da loucura, ou do sórdido interesse.
Eu vou, prezado amigo, eu vou mostrar-te
Esta santa verdade, com exemplos.
280 – Morre um contratador e se nomeia,
Para tratar dos bens, um seu parente,
Que Ribério se chama. Não te posso
Explicar o fervor com que Ribério
Demanda os devedores, vence e cobra
285 – Os cabedais dispersos desta herança.
Estava quase extinto o que devia
A fazenda do rei; então o chefe
Lhe ordena satisfaça todo o resto,
No peremptório termo que lhe assina.
290 – Exclama o bom Ribério que não pode,
Pois todo o cabedal, que tem cobrado,
Ou está, nas demandas, consumido,
Ou tem entrado, já, no régio erário.
E, para bem mostrar esta verdade,
295 – Suplica ao grande chefe, que lhe escolha
Um reto magistrado, que lhe tome,
Da sua comissão, estreita conta.
Pois isto, Doroteu, não vale nada:
Sem contas lhe tomarem, manda o chefe
300 – Que gema na cadeia, até que pague.
Já viste uma insolência semelhante?
Aos grandes devedores, não se assinam
Os termos peremptórios para a paga,
Nem vão para as cadeias, bem que comam
305 – A fazenda do rei e só Ribério,
44
Sendo um procurador, que nada deve,
Vai viver na prisão, por tempos largos?
Amigo Doroteu, o nosso chefe
Patrocina aos velhacos, que lhe mandam,
310 – Para que mais lhe mandem. Prende e vexa
Aos justos, que entesouram suas barras,
Para ver se, oprimidos, se resolvem
A seguir os caminhos dos que largam.
Remata-se um contrato a um sujeito,
315 – Que o pode bem pagar, por mais que perca
Pertende um fiador deste contrato
Ir tratar, no Peru, do seu comercio;
Vai licença pedir ao grande chefe,
E o chefe lha concede. Escuta agora;
320 – Ouvirás uma ação, a mais indigna
De quantas, por marotos, se fizeram:
Apenas o tal homem sai da terra,
Se despede uma esquadra de soldados
Que, mal com ele topa, lhe dá busca.
325 – As cargas se revolvem, nem lhe escapam
As grosseiras cangalhas, que se quebram.
Não acham contrabandos, porem, sempre,
Lhe tomam os dinheiros, que ele leva.
E o grande chefe ordena que se metam
330 – No régio erário todos, inda aqueles,
Que são de vários donos. Dize, amigo,
Já viste uma injustiça assim tão clara?
Aos grossos devedores não se tomam
Os seus próprios dinheiros, bem que tenham
335 – Comido os cabedais dos seus contratos
E, ao simples fiador de um rematante,
Que nada, ainda, deve, e que tem muito,
Vão-se, à força, tomar os seus dinheiros,
E os dinheiros, que é mais, de estranhas partes!
340 – Agora, Doroteu, não tens que digas,
Hás de, enfim, confessar, que o nosso chefe
Somente não oprime a quem lhe larga.
Ora, ouve as circunstancias que inda acrescem
E que inda afeiam mais o torpe caso:
345 – Espalham as más línguas, que Matúsio
Pedira ao tal sujeito lhe cornprasse,
Uns finos guardanapos e toalhas;
Que o fiador mesquinho lh’os trouxera
E, vendo que Matúsio se esquecia,
350 – Lhe chegou a pedir, sem peio, a paga.
Que o chefe, ressentido desta injúria,
Lhe mandou dar a busca por vingança,
E que até ao presente inda não consta
Que o preço da encomenda se pagasse.
355 – Que mais pode fazer o seu lacaio?
Isto não é mais feio, que despir-se
A preciosa capa ao grande Jove
E mandar-se tirar ao sábio filho,
O famoso Esculápio, as barbas de ouro?
360 – Amigo Doroteu, se acaso vires,
Na corte, algum fidalgo pobre e roto,
Dize-lhe que procure este governo;
Que, a não acreditar que há outra vida,
Com fazer quatro mimos aos rendeiros,
365 – Há de à pátria voltar, casquilho e gordo.
45
CARTA 9ª
Em que se contam as desordens que Fanfarrão obrou no governo das tropas.
Agora, Doroteu, agora estava
Bamboando, na rede preguiçosa
E tomando, na fina porçolana,
O mate saboroso, quando escuto
5 – De grossa artilharia o rouco estrondo.
O sangue se congela, a casa treme,
E pesada porção de estuque velho,
A violência do abalo despegada
Da barriguda esteira, faZ que eu perca
10 – A tigela esmaltada, que era a coisa
Que tinha, nesta casa, de algum preço.
Apenas torno em mim daquele susto,
Me lembra ser o dia em que o bom chefe,
Aos seus auxiliares, lições dava
15 – Da que Saxi chamou pequena guerra.
Amigo Doroteu, não sou tão néscio,
Que os avisos de Jove não conheça.
Pois não me deu a veia de poeta,
Nem me trouxe, por mares empolados,
20 – A Chile, para que, gostoso e mole,
Descanse o corpo na franjada rede.
Nasceu o sábio Homero entre os antigos,
Para o nome cantar, do grego Aquiles;
Para cantar, também, ao pio Enéias,
25 – Teve o povo romano o seu Vergílio:
Assim, para escrever os grande feitos
Que o nosso Fanfarrão obrou em Chile,
Entendo, Doroteu, que a Providência
Lançou, na culta Espannha, o teu Critilo.
30 – Ora pois, Doroteu, eu passo, eu passo
A cumprir, respeitoso, os meus deveres
E, já que o meu herói, agora, adestra
Esquadras belicosas, também, hoje,
Tomarei por empresa só mostrar-te
35 – Que ele fez, na milícia, grandes coisas.
Ha, nesta capital, um regimento
De tropa regular, a quem se daga.
Tu sabes, Doroteu, que não há corpo
Que, todo, de iguais membros se componha.
40 – Das ordens mais austeras, que fizeram
Os santos penitentes patriarcas,
Saíram, contra o trono rebelados,
Os infames Clementes, e saíram
Contra o dogma, os Calvinos e os Luteros;
45 – O mesmo Apostolado teve um Judas.
Se isto pois, Doroteu, assim sucede
Nos corpos, que se formam de escolhidos,
Que não sucederá, nos grandes corpos,
Aonde se recebam as pessoas
50 – Que timbre fazem, dos seus próprios vícios?
O meio, Doroteu, o forte meio
Que os chefes descobriram para terem
46
Os corpos que governam, em sossego,
Consiste em repartirem com mão reta
55 – Os prêmios e os castigos, pois que poucos
Os delitos evitam, porque prezam
A cândida virtude. Os mais dos homens
Aos vícios fogem, porque as penas temem.
Ora ouve, Doroteu, o como o chefe
60 – Os castigos reparte aos seus guerreiros.
Não há, não há distúrbio nesta terra,
De que mão militar não seja autora.
Chega, prezado amigo, a ousadia
De um indigno soldado a este excesso:
65 – Aperta, na direita, o ferro agudo
E penetra as paredes de palácio,
No meio de uma sala, aonde estavam
As duas sentinelas, que defendem,
Da casa do dossel, a nobre entrada.
70 – Aqui, meu Doroteu, aqui se chega
Ao camarada inerme e, pelas costas,
O deixa quase morto, a punhaladas.
Que esperas tu, agora, que eu te diga?
Que o militar conselho já se apressa?
75 – Que já se liga, ao poste, o delinqüente?
Que os olhos, com o lenço, já lhe cobrem?
Que a bala zunidora já lhe rompe
O peito palpitante? Que suspira?
Que lhe cai, sobre os ombros, a cabeça?
80 – Meu caro Doroteu, o nosso chefe
É muito compassivo, sim, bem pode
Oprimir os paisanos inocentes
Com pesadas cadeias, pode, ainda,
Ver o sangue esguichar das rotas costas
85 – À força dos zorragues, mas não pode
Consentir que se dê, nos seus soldados,
Por maiores insultos que cometam,
A pena inda mais leve: assim praticam
Os famosos guerreiros, que nasceram
90 – Para obrarem, no mundo, empresas grandes.
Ele, sim bem conhece que não há-de
Talar, com estas tropas, as campinas,
Que o céu lhe não concede a esperança
De entrar no templo augusto da Vitória,
95 – Coberto de poeira e negro sangue.
Mas sempre, Doroteu, as quer propicias,
Pois, inda que não cinjam as espadas,
Para cortar loureiros e carvalhos,
Que a testa lhes circulem, são aquelas
100 – Que, prontas, executam seus mandados;
São aquelas, que infundem, nestes povos,
O medo e sujeição, com que toleram
O verem em desprezo as leis sagradas.
Conhece, Doroteu, o próprio chefe,
105 – Que vai passando a muito a liberdade
Das fardas atrevidas, e, querendo
A tais desordens pôr remédio e freio,
Não manda que se cumpram as leis santas
Que, aos delitos, arbitram justas penas.
110 – Manda, sim, um cartaz, aonde inova
Que, todos os domingos, na parada,
Se leia o militar regulamento.
47
Indigno e bruto chefe, de que serve
Que se leiam as leis, se os malfeitores,
115 – Do que mandam, não vêem um só exemplo.
Tens visto, Doroteu, o como o chefe
Os delitos castiga; agora sabe
Da sorte que reparte, aos bons, os prêmios.
Morreu um capitão, e subiu logo,
120 – Ao posto devoluto, um bom tenente.
Porque foi, Doroteu? seria, acaso,
Por ser tenente antigo? Ou porque tinha
Com honra militado? Não, amigo,
Foi só porque largou três mil cruzados!
125 – Ah! não mudes a cor de teu semblante,
Prudente Maximino! Não, não mudes.
Que importa que comprasses a patente?
Se tu a merecias, a vileza
Da compra não te infama, sim ao chefe,
130 – Que nunca faz justiça, sem que a venda.
Reforma um capitão e, no seu posto,
Encaixa, sem vergonha, a Tomazine,
Um moço, na milícia pouco esperto,
135 – Que um ano inda não tinha de tenente.
Em que guerras andou, em que campanhas?
Quais as feridas, que no corpo mostra?
Aonde, aonde estão as diligências,
As grandes diligências arriscadas,
Que fez este mancebo, com que possa
140 – Preferir aos antigos, destros cabos?
Ah! sim, eu já me lembro! Tem serviços,
Tem famosos serviços, na verdade:
A casa deste moço, bem que pobre,
É a casa somente, aonde o chefe
145 – Entra em ar de visita, bebe e folga.
Aqui tens teu lugar, meu bom Lobésio;
Tu foste a capitão e tu passaste
Ao posto de major em breves meses.
Quais são os teus serviços? Quais? Responde.
150 – Mas não, não me respondas; eu conheço
Que és tolo, que és brejeiro e, mais, que mandas
As redradas pedrinhas. Estes dotes
Te fazem, no conceito do teu chefe,
Um digno pai da pátria, herói do reino.
155 – Também tu, ó Padela, te distingues
Na corja dos marotos. Tu conservas
De capitão o cargo, mas tu logras
O soldo de maior, e mais as honras.
Que foi que te fez digno de subires
160 – À privança do chefe? Ah! sim, eu vejo
O teu merecimento! É coisa grande:
Ultrajas aos ministros e proteges
A todos os tratantes, que exercitam
O furto e o contrabando. Tu, piedoso,
165 – Não queres ver perdido um só soldado;
Se algum, se algum consente que se escalem
Os vedados lugares, tu escreves
Ao sucessor honrado e lhe suplicas
Que parte não te dê, de um tal desmancho.
170 – O teu fidalgo peito não se vence
Da sórdida avareza. Tu repartes
Os luzentes seixinhos c’o teu chefe,
48
E, bem que o seu Matúsio, em nome dele,
Os ache miudinhos, sempre servem.
175 – Também tu, digno irmão, também cavalgas
O posto de tenente, por dizeres
Que honrado comandante, na parada,
Austero te corrige, por falares
Dos retos magistrados, sem respeito.
180 – Que vezes a cachaça... Mas, amigo,
Deixemos de falar na paga tropa
E vamos a falar do grande corpo
Da gente auxiliar; aqui podemos
Acabar de dizer o mais que falta.
185 – Tinha este continente, levantados,
De tropa auxiliar uns treze corpos.
O nosso chefe ainda não se farta:
Alista o povo inteiro, e, dele, forma
Inda mais de quarenta regimentos,
190 – Mais faminto de ver galões e fardas
Que Midas de trocar em ouro puro
As coisas em que punha o torpe dedo.
O coronel, valente, agarra tudo
Quanto tem, de varão, a forma e traje;
195 – Nem lhe obsta, Doroteu, que os seus soldados
Meninos inda sejam; que eles crescem,
E cresce, com os corpos, igualmente,
O santo amor das armas. Muitos, muitos,
Quando vão para a igreja receberem
200 – As águas salvadoras do batismo,
Já vão vestidos com a curta farda.
Este mesmo costume tem, amigo,
O pago regimento. Apenas nasce
Aos cabos algum filho, logo, à pressa,
205 – Lhe assenta o chefe, de cadete, a praça
Venturoso costume, que promete
Produzir, de cordeiros, tigres bravos!
Aníbal, Doroteu, desde menino
Com seu pai militou; talvez não fosse
210 – O terror dos romanos, se passasse
A tenra, inda imberbe mocidade,
Entre os moles prazeres de Cartago.
Contudo, Doroteu, o céu permita
Que guerras não tenhamos;pois, a termos
215 – Algum acampamento, que constranja
A saírem da praça os regimentos,
Há de haver bom trabalho em conduzir-se
O rancho de crianças em jacases.
Há-de, também, haver despesa grande
220 – Em levar-se uma tropa de mulheres,
Que dêem o peito a uns e a outros papa.
Tu sabes, Doroteu, que as nossas tropas
De infantaria são, porem montada;
Que as leis do nosso reino não consentem
225 – Que estas montadas tropas se componham
De membros, que não tenham certas rendas,
Com que possam manter os seus cavalos.
Ora ouve, Doroteu, quais são as posses
Dos míseros paisanos, que se alistam
230 – Nos fortes regimentos: quase todos
Um sendeiro não têm, e muitos deles
Gemeram nas prisões, por não poderem
49
Ajeitar uma grossa e curta farda.
Eu topei Doroteu, por várias vezes,
235 – Atrás de um regimento, os rapazinhos
Em veste e mais descalços: fina idéia
Em que deram os cabos, para verem
Se, à força de vergonha, se fardavam.
Eu sei, eu sei, amigo, que alguns destes,
240 – Cansados de sofrerem mais opróbrios,
Fizeram fardamentos dos produtos
Dos únicos escravos, que venderam
E dos trastes alheios, que furtaram.
Perguntarás, agora, doce amigo:
245 – "Aonde estão os ricos taverneiros?
Aonde os mercadores, que têm lojas
A que chamam de seco e de molhado?"
Aonde, Doroteu? Eu já t’o digo:
Estão, estão, também, nos regimentos,
250 – Mas trazem nas direitas, que conservam
Inda lixosas peles, as bengalas.
Não rias, Doroteu, das nossas tropas.
De que gente formou um corpo invicto
O luso Viriato? Foi de moços
255 – Criados, desde a infância, nas campanhas?
Não foi, meu Doroteu, foi de uns pastores,
De uns pastores incultos, que, animados
Do esforço do seu chefe, conseguiram
Vitórias singulares, contra um povo
260 – Que ao mundo sujeitou, à força de armas.
Os homens, Doroteu, são todos fortes
Em cima das muralhas, que defendem
As chorosas mulheres e as fazendas,
Os ternos filhos e os avós cansados.
265 – A desordem, amigo, não consiste
Em formar esquadrões, mas, sim, no excesso.
Um reino bem regido não se forma
Somente de soldados; tem de tudo:
Tem milícia, lavoura, e tem comércio.
270 – Se quantos forem ricos se adornarem
Das golas e das bandas, não teremos
Um só depositário, nem os órfãos
Terão também tutores, quando nisto
Interessa, igualmente, o bem do império.
275 – Carece a monarquia dez mil homens
De tropa auxiliar? Não haja embora
De menos um soldado, mas os outros
Vão à pátria servir nos mais empregos,
Pois os corpos civis são como os nossos,
280 – Que, tendo um membro forte e os outros debeis,
Se devem, Doroteu, julgar enfermos.
É também, Doroteu, contra a policia
Franquearem-se as portas, a que subam
Aos distintos empregos, as pessoas
285 – Que vêm de humildes troncos. Os tendeiros,
Mal se vêem capitães, são já fidalgos;
Seus néscios descendentes já não querem
Conservar as tavernas, que lhes deram
Os primeiros sapatos e os primeiros
290 – Capotes com capuz de grosso pano.
Que império, Doroteu, que império pode
Um povo sustentar, que só se forma
50
De nobres sem ofícios? Estes membros
Não amam, como devem, as virtudes,
295 – Seguem à rédea solta os torpes vícios.
Daqui saem os torpes malfeitores,
Os vis alcoviteiros, os perjuros,
Os famosos ladroes; numa palavra,
A tropa insultadora de vadios.
300 – A este corpo imenso de milícia
Concede Fanfarrão as regalias
Que as nossas leis não dão aos bons vassalos,
Que chegam aos empregos mais honrosos,
Em paga de proezas e serviços.
305 – Não quer, não quer o chefe, que aos seus cabos
Mandem citar os tristes acredores
Por ordem de justiça. Quais os grandes,
Que não vêm a juízo sem licença
Do príncipe, a quem servem, nesta terra,
310 – Sem licença do chefe, não se citam
Os negros, os crioulos e os mulatos,
Mal vestem a fardinha e, muito menos,
Mal cingem, na cintura, honrosa banda.
Se alguém requer ao chefe que permita
315 – Para isso faculdade, põe-lhe em cima
De humilde petição, que o suplicado
Componha ao suplicante o que lhe deve.
Se diz o suplicado ao suplicante
Que não lhe deve nada, foi-se embora
320 – O sólido direito, que a policia
Do chefe não consente que se ponha
Aos seus oficiais, inda que sejam
Velhacos e ladrões, no foro, um pleito.
Já viste regalia igual a esta?
325 – A pátria, Doroteu, concede aos nobres,
Que os postos exercitam, grossas rendas,
Com que possam pagar, aos mais vassalos
As coisas que lhes compram; não concede
Ao mesmo general que vista e coma,
330 – À custa do suor dos outros homens.
E quando o rei não quer pagar a todos,
Com dinheiro contado, remunera
Os serviços com graças, mas daquelas
Que deixam sempre intacto o jus alheio.
335 – Não são somente isentos da justiça
Os cabos valerosos. Onde habitam,
Se acolhem, Doroteu, os malfeitores,
E, quais antigas casas de fidalgos,
Ou famosos conventos, que, na porta,
340 – Têm as grossas cadeias, onde pegam
Os míseros culpados, aqui todos
Se livram dos meirinhos, bem que sejam
Indignos, torpes réus de magistrado.
Se os ousados meirinhos entrar querem
345 – Nas casas destes cabos, a que chamam
Militares quartéis, os fortes donos
Encaixam nas cabeças os casquetes,
Apertam as correias, põem as bandas
E, cingindo as torcidas, largas folhas.
350 – Ultrajam com palavras a justiça,
Resistem, gritam, ferem, matam, prendem.
Os zelosos juízes punir querem
51
A injúria da justiça: formam autos,
Procedem às devassas, pronunciam,
355 – E mandam que estes nomes se descrevam
Nos róis dos mais culpados. Mas, amigo,
De que serve fazer-se o que as leis mandam
Na terra, que governa um bruto chefe,
Que não tem outra lei mais que a vontade?
360 – O chefe onipotente logo envia
Atrevidos soldados, que, chegando
À casa do escrivão, os nomes riscam
Do rol dos delinqüentes e lhe arrancam
Da fechada gaveta os próprios autos.
365 – Ousado, indigno chefe, que governo,
Que governos nos fazes? A milícia
Ergueu-se para guarda dos vassalos,
E tu, e tu trabalhas, por que seja
A mesma que nos prive do sossego
370 – Que, próvidas, nos dão as leis sagradas.
Agora, Doroteu, talvez trabalhes
Em achar o motivo por que o chefe
Concede tanto indulto aos seus soldados;
Pois ele, Doroteu, não é o enigma,
375 – Que vem nos doces versos de Vergílio,
De umas flores, que têm de reis os nomes
Escritos sobre as folhas, e do sitio
De que três braças só do céu se avista.
O chefe, Doroteu, só quer dinheiro,
375 – E, dando aos militares regalias,
Podem os grandes postos, que lhes vende,
Subir à proporção, também de preço.
Tu assim o conheces, Cata Preta,
Pois deste mil oitavas por trazeres
385 – Lavrado castão de ouro sobre a cana.
Tu também, capanema, assim discorres,
Pois largaste seiscentas, por vestires
De capitão maior vermelha farda.
Todos assim o julgam. Ah! só pensa
390 – De diversa maneira, aquele néscio
Que sofreu que Matúsio lhe rompesse
A passada patente à sua vista,
Por não largar, de luvas, os trezentos.
Dize-me, Doroteu, um chefe sábio
395 – Levanta nas conquistas umas tropas,
Com que não pode a força do distante
Conquistador império? Infunde, inspira
Nos cabos tanto orgulho, que se atrevam
A resistir aos mesmos magistrados,
400 – Que a pessoa do augusto representam?
Maldito, Doroteu, maldito seja
Um bruto, que só quer a todo custo,
Entesourar o sórdido dinheiro.
CARTA l0ª
Em que se contam as desordens maiores que Fanfarrão fez no seu governo.
Quis, amigo, compor sentidos versos
A uma longa ausência e, para encher-me
52
De ternas expressões, de imagens tristes,
A banca fui sentar-me, com projeto
5 – De ler, primeiramente, algumas obras
No meu já roto, destroncado Ovídio.
Abri-o nas saudosas alegrias
E, quando me embebia na leitura
Dos casos lastimosos, que ele pinta,
10 – Na passagem que fez ao Ponto Euxínio
Encontro aqueles versos que descrevem
As ondas decumanas; de repente
Me sobe ao pensamento que estas eram
Do nosso Fanfarrão imagem viva.
15 – Os mares, Doroteu, jamais descansam;
Agitam sem cessar as verdes águas,
E, depois que levantam ondas nove,
Com menos fortidão, despedem outra,
Que corre mais ligeira e que se quebra
20 – Nos musgosos rochedos com mais força.
Assim o nosso chefe não descansa
De fazer, Doroteu, no seu governo,
Asneiras sobre asneiras e, entre as muitas,
Que menos violentas nos parecem,
25 – Pratica outras que excedem muito e muito
As raias dos humanos desconcertos.
Perdoa, minha Nise, que eu desista
Do intento começado. Tu mil vezes
Nos meus olhos já leste os meus afetos,
30 – Não careces de os ler nos meus escritos.
Perdoa, pois, que eu gaste as breves horas
A contar as asneiras desumanas
Do nosso Fanfarrão ao caro amigo.
E tu, meu Doroteu, antes que leias
35 – O que vou a contar-te, jurar deves
Pelos olhos da tua amada esposa,
Por seu louro cabelo, e pelo dia
Em que viste, na sua alegre boca,
O primeiro sorriso, que não hás-de
40 – Duvidar do que leres, bem que sejam
Desordens que pareçam impossíveis.
A Junta, Doroteu, a quem pertence
Evitar contrabandos, prende, envia
A sabia Relação do Continente
45 – A trinta delinqüentes, para serem
Castigados conforme os seus delitos.
Entende o nosso chefe que esta Junta
Não devia mandar aos malfeitores
Sem sua autoridade e, dela, toma
50 – O mais estranho, bárbaro despique.
Manda embargar aos presos na cadeia
Do nosso Santiago, e manda ao pobre
Do condutor meirinho que os sustente,
Assistindo, também, aos que enfermarem,
55 – Com médicos, remédios e galinhas.
Acaba-se o dinheiro que lhe deram
Para fazer os gastos do caminho;
Recorre, neste aperto, ao bruto chefe,
Expõe-lhe que não tem com que alimente
60 – Ao menos a si próprio; pede e roga
Que o deixe recolher à pátria terra,
Para nela exercer seu pobre oficio.
53
Tão terna rogativa não merece
Do chefe a compaixão; antes lhe ordena
65 – Que assista, como dantes, aos culpados
De todo o necessário, na enxovia;
Que, a faltar-lhe o dinheiro para os gastos,
Ou que o peça, ou que o furte. Caro amigo,
Da boca de uma Fúria sairia
70 – Mais dura decisão? Por que motivo
Deve um pobre meirinho dar sustento
A mais de trinta presos? São seus filhos?
E, ainda a serem filhos, um pai justo,
Que fazenda não tem, vive obrigado
75 – A sustentar infames malfeitores,
Por meio de culpáveis latrocínios?
Suponho, Doroteu, suponho ainda
Que a Junta fez excesso na remessa
Dos presos, sem licença. Neste caso
80 – Merece o condutor algum castigo?
Ele fez outra coisa que não fosse
Cumprir o que mandaram seus maiores?
Podia repugnar-lhes, sem delito?
Amigo Doroteu, o nosso chefe
85 – É qual mulher ciosa, que não pode
Vingar no vário amante os duros zelos,
E vai desafogar as suas iras,
Bebendo o sangue de inocentes filhos.
Depois de se passarem alguns anos,
90 – Depois que o bom meirinho já não tinha
Vestido que vendesse, nem pessoa
Que um chavo lhe fiasse, o bruto chefe
Passa a fazer-um novo despotismo:
Ordena que os culpados sejam soltos,
95 – E, dizem, lhes mandava vinte oitavas,
Para os gastos fazerem da fugida.
Até aqui pagou o seu desgosto
O pobre condutor; agora o paga
A triste, aflita pátria, pois lhe aumenta,
100 – Dos torpes malfeitores, a quadrilha.
É esta, Doroteu, a sua gente;
Trafica em coisa santa, no comércio
Da compra e mais da venda de seixinhos,
Negócio avantajado e mais seguro
105 – Que o meter entre os fardos das baetas,
Os pesados galões e as drogas finas.
Preza o bravo leão aos leões bravos,
A fraca pomba preza as pombas fracas,
E o homem, apesar do raciocínio
110 – Que a verdade lhe mostra, estima aos homens
Que têm iguais paixões e os mesmos vícios.
Avisam ao bom chefe que um ministro
Queria que os soldados lhe mostrassem
As ordens, com que entravam a fazerem
115 – Prisões no seu distrito. Investe o bruto
Qual touro levantado, a quem acenam,
C’os vermelhos droguetes, os capinhas;
Escreve-lhe uma carta, em que lhe ordena
Lhe dê logo as razoes, em que se funda.
120 – Inda pede as razões, e já lhe estranha
O néscio proceder. Aqui não para
Tão rápida desordem: manda um corpo
54
De ousados militares, que conduzam,
Ao magistrado, a carta, e lhes ordena
125 – Que fiquem nesta vila sustentados
A custa, Doroteu, do aflito povo.
Não se concede ao pobre que sustente,
Em casa, o seu soldado; manda o chefe
Que a cada um se dê, em cada um dia.
130 – Para sustento, meia oitava de ouro,
Fora milho e capim para o cavalo;
E não entrando aqui o régio soldo.
Que santo proceder! Um Deus irado,
Se houvessem sete justos, perdoava
135 – Os imensos delitos de Sodoma,
E o nosso grande chefe, pelo crime,
Pelo sonhado crime de um só homem,
Castiga, como réu de majestade,
Formado de inocentes, todo um povo.
140 – Faz penhora Macedo em certas barras
Que, a um seu devedor, devia Mévio;
Recorre ao magistrado Silverino,
Pedindo que mandasse que o dinheiro
A juízo viesse, pois queria
145 – Sobre ele disputar a preferência,
Na forma que concede a lei do reino.
Cita-se ao triste Mévio e deposita
As barras em juízo, prontamente.
Conhece Silverino que Macedo
150 – Para a vitória tem melhor direito,
Não quer seguir a causa na presença
De um reto magistrado, que profere,
Na forma que as leis mandam, as sentenças.
Recorre ao general, e o bruto chefe
155 – Decide desta sorte o longo pleito:
Habita nesta terra um homem rico,
Que tem de Albino o nome, e, dizem, trata
A Mévio, devedor,– por seu sobrinho.
Manda pois, Doroteu, o grande chefe
160 – Que Albino se recolha na cadeia
E more com os negros na enxovia,
Enquanto não pagar a Silverino
Outra tanta quantia, quanta Mévio
Depositou, doloso, por que houvesse
165 – Entre os dois acredores um litígio.
Eis aqui, Doroteu, o que é ciência!
As nossas leis não querem que o pai solva
O calote que fez o próprio filho
E quer um general que Albino pague
170 – Da sórdida masmorra, novamente,
A soma que pagou o bom sobrinho!
Aonde existe o dolo? A lei não manda
Que todo o que temer que alguém lhe peça
Segundo pagamento, se segure
175 – Metendo no depósito o que deve?
Pois se isto nos faculta o são direito,
Que delito comete aquele triste
Que a dívida em juízo deposita,
Quando o sábio juiz assim o manda,
180 – Porque o mesmo credor assim o pede?
E se Mévio fez dolo, por que causa
Há-de Albino pagar a culpa dele?
55
Porque lhe aconselhou que não pagasse
Outra tanta quantia a Silverino?
185 – Aconselhar conforme as leis do reino
É culpa que mereça um tal castigo?
E pode ser castigo regulado
Pagar o conselheiro aquela soma
Que o mesmo aconselhado não devia?
190 – Não é isto furtar? Não é violência?
Ah! pobre, ah! pobre povo, a quem governa
Um bruto general, que ao céu não teme,
Nem tem o menor pejo de lhe verem
Tão indignas ações os outros homens!
195 – Há neste regimento um moço Adônis,
Amores de uma escrava, cuja dona
Depois de cativar a muitos peitos, . .
Ao nosso herói atou, também, ao carro
Dos seus cruéis triunfos. Cego nume!
200 – Qual é, qual é dos homens que não honra,
Com puros sacrifícios, teus altares?
Tu vences os pequenos, mais os grandes,
Tu vences os estultos, mais os sábios,
Tu, vences, que inda é mais, as mesmas feras
205 – E, bem que cinja o grosso peito d'aço,
Não pode resistir às tuas setas
O duro coração do próprio Marte.
Intenta este soldado que o ministro
Lhe remate umas casas e consegue
210 – Um despacho do chefe, em que decreta
Que nelas ninguém lance: coisa estranha
Que, entendo, nunca viu nenhuma idade!
O reto magistrado, que respeita,
Mais que ao chefe, as leis do seu monarca,
215 – Ordena que o porteiro, incontinenti,
As pertendidas casas meta a lanço.
Honrado cidadão o preço cobre;
O porteiro passeia pela rua,
Repete, em alta voz, o lanço novo
220 – E prossegue a falar, assim dizendo:
"Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três,
Dou-lhe outra mais pequena, afronta faço,
Se ninguém mais me oferece, arremato".
Ao lanço do Brandúsio ninguém chega,
225 – Informado o juiz, ordena e manda
Que o prédio se remate; então se chega
O porteiro risonho ao licitante,
E lhe diz – "que lhe faça bom proveito"
Ao mesmo tempo que lhe entrega o ramo.
230 – Parte logo o soldado e conta ao chefe
O sucesso da praça. O bruto monstro,
Julgando profanado o seu respeito,
Manda lançar no pobre licitante
Um pesado grilhão e manda pô-lo,
235 – Ajoujado com um despido negro,
A trabalhar nas obras da cadeia.
O preso injuriado desfalece
E o chefe desumano desce à rua
Para que possa, de mais perto, vê-lo.
240 – Sucede a um desmaio outro desmaio;
O negro companheiro, então, lhe acode,
Nos braços compassivos o sustenta;
56
Porem o velho chefe, que deseja
O vê-lo, ali, morrer, por um soldado
245 – Manda ao negro dizer que ao preso deixe
E cuide em prosseguir no seu trabalho.
Os mesmos desumanos, que rodeiam
Tão bruto general, aqueles mesmos
Que, alegres, executam seus mandados,
250 – Apenas escutaram tal preceito,
Um pouco emudeceram e tiveram
Os rostos tristes, muito tempo, baixos.
Os outros, Doroteu, deram suspiros
E, bem que forcejaram, não puderam
255 – Fazer que os olhos não se enchessem d'água.
Eu creio, Doroteu, que tu já leste
Que um César dos romanos pertendera
Vestir, ao seu cavalo, a nobre toga
Dos velhos senadores. Esta história
260 – Pode servir de fábula, que mostre
Que muitos homens, mais que as feras brutos,
Na verdade conseguem grandes honras!
Mas ah! prezado amigo, que ditosa
Não fora a nossa Chile se, antes, visse
265 – Adornado um cavalo com insígnias
De general supremo, do que ver-se
Obrigada a dobrar os seus joelhos
Na presença de um chefe, a quem os deuses
Somente deram a figura de homem!
270 – Então, prezado amigo, o néscio povo
Com fitas lhe enfeitara as negras clinas,
Ornara a estrebaria com tapetes,
Com formosas pinturas, ricos panos,
Bordados reposteiros e cortinas;
275 – Um dos grandes da terra lhe levara
Licor, para beber, em baldes d'ouro,
Outro lhe dera o milho em ricas salvas;
Mas sempre, Doroteu, aqueles néscios
Que ao bruto respeitassem, poderiam
280 – Servi-lo acautelados e de sorte
Que dar-lhes não pudesse um leve coice.
Eis aqui, Doroteu, o que nos nega
Uma heróica virtude. Um louco chefe
O poder exercita do monarca
285 – E os súditos não devem nem fugir-lhe
Nem tirar-lhe da mão a injusta espada.
Mas, caro Doroteu, um chefe destes
Só vem para castigo de pecados.
Os deuses não carecem de mandarem
290 – Flagelos esquisitos; quasi sempre
Nos punem com as coisas ordinárias.
O mundo inda não viu senão um corpo
Em branco sal mudado, e só no Egito
Fez novas penas de Moisés a vara.
295 – Perguntarás agora que torpezas
Comete a nossa Chile, que mereça
Tão estranho flagelo? Não há homem
Que viva isento de delitos graves,
E, aonde se amontoam os viventes
300 – Em cidades ou vilas, ai crescem
Os crimes e as desordens, aos milhares.
Talvez prezado amigo, que nós, hoje,
57
Sintamos os castigos dos insultos
Que nossos pais fizeram; estes campos
305 – Estão cobertos de insepultos ossos
De inumeráveis homens que mataram.
Aqui ou europeus se divertiam
Em andarem à caça dos gentios
Como à caça das feras, pelos matos.
310 – Havia tal que dava, aos seus cachorros,
Por diário sustento, humana carne,
Querendo desculpar tão grave culpa
Com dizer que os gentios, bem que tinham
A nossa semelhança, enquanto aos corpos,
315 – Não eram como nós, enquanto às almas.
Que muito, pois, que Deus levante o braco
E puna os descendentes de uns tiranos
Que, sem razão alguma e por capricho,
Espalharam na terra tanto sangue.
CARTA 11ª
Em que se contam as brejeirices de Fanfarrão.
No meio desta terra há uma ponte,
Em cujos dois extremos se levantam
De dois grossos rendeiros as moradas;
E, apenas, Doroteu, o sol declina
5 – A descansar de Tétis no regaço,
Neste agradável sitio vão sentar-se
Os principais marotos e, com eles,
A brejeira família de palácio.
Aqui, meu bom amigo, aqui se passam
10 – As horas em conversa deleitosa:
Um conta que o ministro, à meia noite,
Entrara no quintal de certa dama;
Diz outro que se expôs uma criança
A porta de Florício, e já lhe assina
15 – O pai e mais a mãe; aquele aumenta
A bulha que Dirceu com Lauro teve
Por ciúmes cruéis', da sua amásia;
Este chama a Simplicio caloteiro
E mofa, ao mesmo tempo, de Frondélio,
20 – Que o seu dinheiro guarda. Enfim, amigo,
Aqui, aqui de tudo se murmura.
Só se livra da língua venenosa
O que contrata em vendas de despachos
E quem se alegra ao ver que a sua moça
25 – Ajunta, pela prenda, um par de oitavas:
Que os membros do congresso são prudentes
E não querem que alguns dos companheiros
Tomem esta conversa em ar de chasco.
Amigo Doroteu, ah! neste sitio
30 – Eu não me dilatara um breve instante
Em dia de trovões, bem que estivesse
Plantado todo de loureiros machos!
Por este sítio, pois, passei há pouco
Cuidando que, por ser mui cedo ainda,
35 – Não toparia a corria dos marotos.
58
Mas, apenas a vi, fiquei tremendo
Qual fraco passageiro, quando avista,
Em deserto lugar, pintadas onças.
Contudo, Doroteu, criei esforço
40 – E fui atravessando pelo meio,
Rezando sempre o credo e, por cautela,
Fazendo muitas cruzes sobre o peito.
Apenas me salvei daquele risco,
Um suspiro soltei, que encheu os ares,
45 – E, voltando o semblante para o sitio,
Em que os tais\mariolas se assentavam,
Meneando a cabeça um par de vezes
E soltando um sorriso, em ar de mofa,
Dentro do meu discurso, assim lhes falo:
50 – "Vocês, meus mariolas, meus tratantes,
Estão contando histórias das pessoas
De quem não são afetos, por que as levem,
Aos ouvidos do chefe, os seus lacaios;
Pois eu também já vou contar verdades,
55 – Em que possam falar os homens sérios
Inda daqui a mais de um cento de anos.
Recolhi-me à choupana e, de repente,
Sem tirar a gravata do pescoço,
Entrei a pôr em limpo esta cartinha,
60 – Que já, pelo caminho, vim compondo.
Entendo, Doroteu, que as nossas almas
Não são todas iguais; que o grande Jove
Fez umas de matéria muito pura,
Fez outras de matéria mais grosseira,
65 – Por não perder as borras que ficaram.
Entendo, ainda mais, que o dispenseiro,
Quando lhe vão pedir algumas almas,
Vai dando aquelas que primeiro encontra.
Por isto, às vezes, nascem os mochilas
70 – Com brios de fidalgos, outras vezes
Os nobres com espíritos humildes,
Só dignos de animarem vis Lacaios.
O nosso Fanfarrão, prezado amigo,
Vos dá mui boa prova: não se nega
75 – Que tenha ilustre sangue, mas não dizem,
Com seu ilustre sangue, as suas obras.
Apenas, Doroteu, a noite chega,
Ninguém andar já pode, sem cautela,
Nos sujos corredores de palácio,
80 – Uns batem com os peitos noutros peitos;
Outros quebram as testas noutras testas;
Qual leva um encontrão, que o vira em roda;
E qual, por defender a cara, fura,
Com os dedos que estende, incautos olhos.
85 – Aqui se quebra a porta e ninguém fala;
Ali range a couceira e soa a chave;
Este anda de mansinho, aquele corre;
Um grita que o pisaram, outro inquire
"Quem é? " a um vulto, que lhe não responde.
90 – Não temas, Doroteu, que não é nada,
Não são ladrões que ofendam, são donzelas
Que buscam aos devotos, que costumam
Fazer, de quando em quando, a sua esmola.
Chegam-se, enfim, as horas, em que o sono
95 – Estende, na cidade, as negras asas,
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Em cima dos viventes espremendo
Viçosas dormideiras. Tudo fica
Em profundo silêncio, só a casa,
A casa aonde habita o grande chefe.
100 – Parece, Doroteu, que vem abaixo.
Fingindo a moça que levanta a saia
E voando na ponta dos dedinhos,
Prega no machacaz, de quem mais gosta,
A lasciva embigada, abrindo os braços;
105 – Então o machacaz, mexendo a bunda,
Pondo uma mão na testa, outra na ilharga,
Ou dando alguns estalos com os dedos,
Seguindo das violas o compasso,
Lhe diz– "eu pago, eu pago"– e, de repente,
110 – Sobre a torpe michela atira o salto.
Ó dança venturosa! Tu entravas
Nas humildes choupanas, onde as negras,
Aonde as vis mulatas, apertando
Por baixo do bandulho a larga cinta,
115 – Te honravam, c'os marotos e brejeiros,
Batendo sobre o chão o pé descalço.
Agora já consegues ter entrada
Nas casas mais honestas e palácios!
Ah! tu, famoso chefe, dás exemplo.
120 – Tu já, tu já batucas, escondido
Debaixo dos-teus tetos, com a moca
Que furtou, ao senhor o teu Ribério!
Tu também já batucas sobre a sala
Da formosa comadre, quando o pede
125 – A borracha função do santo entrudo.
Ah! que isto, sendo pouco, é muito!
Que os exemplos dos chefes logo correm
E corre muito mais, quando fomentam
Aqueles vícios, a que os gênios puxam.
130 – O tempo, Doroteu, voando foge
E nunca os de palácio imaginaram
Que tão veloz fugia, como agora.
Acaba-se a função, e chega o dia;
vem abrir as janelas um criado,
135 – E o chefe lhe pergunta que algazarra
Fizeram os mais servos toda a noite,
Que o não deixou dormir um breve instante.
O criado, que sabe que o bom chefe
Só quer que lhe confessem a verdade,
140 – O sucesso lhe conta, desta sorte:
“Fizemos esta noite um tal batuque!
Na ceia todos nós nos alegrávamos,
Entrou nele a mulher do teu lacaio;
Um só, senhor, não houve que, lascivo,
145 – Com ela não brincasse; todos eles,
De bêbedos que estavam, não puderam
O intento conseguir; só eu, mais forte...”
Apenas isto diz o vil criado,
O chefe as costas vira e lhe responde,
150 – Soltando um grande riso: “fora, fracos!”
Já disse, Doroteu, que as mocetonas
Só entram em palácio quando estende
A noite, sobre a terra, a negra capa;
Que a formosa virtude da cautela
155 – Até parece bem, naquele mesmo
60
A quem a profissão lhe não exige
Que viva recatado, como vivem
As moças, que inda querem ser donzelas.
Agora, Doroteu, julgar já podes
160 – Que saem de palácio muito cedo.
Assim é, Doroteu; as donzelinhas,
Pela porta travessa, vão saindo,
Mal tocam as garridas à primeira.
Mas a bela Rosinha fica e dorme,
165 – Nos braços de Matúsio, a madrugada;
Só sai de dia claro, e o grande chefe
Lhe atira uma pedrinha da janela,
Só para que lhe dê um ar de graça!
Que grande estimação, Rosica bela!
170 – Aqui se mostra bem, que as outras mocas
Não trazem, como trazes, lucro à casa.
Não há, prezado amigo, quem não queira
Mostrar-se liberal com sua dama.
Para dar-lhe o vestido, mais a capa,
175 – O manto, a saia, a meia, a fita, o pente.
Tira o pobre de si e, destro, furta
O peralta rapaz ao pai jarreta.
Eu mesmo, Doroteu, que fui dos santos
Que em Salamanca andaram, umas vezes
180 – Doenças afetava, outras fingia
Necessitar de livros, ou de um traste,
Para mandar de mimo a certo lente.
Maldita sejas, tu harpia Olaia,
Que, enquanto não abria a minha bolsa,
185 – Não mostravas, também, alegre, os dentes!
Esta paixão, amigo, que nos vence,
Nos próprios animais também se observa:
Esgravatam os galos sobre a terra
E, mal topam o grão ou a migalha,
190 – Contentes cacarejam, porque a moça
Se vá utilizar do seu trabalho.
O nosso ilustre chefe, que se julga
De mui diversa massa do que somos,
Neste ponto, também, também conhece
195 – Que está sujeito à miséria d’homem.
Nas obras, doce amigo, da cadeia,
Trabalham jornaleiros por salário.
Aqueles que carregam cal e pedra,
Só ganham, por semana, meia oitava;
200 – Aqueles que trabalham de canteiro,
Ao menos ganham, cada dia. um quarto.
Tem, pois, certa mocinha, quatro negros
Que apenas são serventes, mas o chefe
Ordena que, na féria, se lhes pague
205 – A quarto os seus jornais, e creio, amigo,
Que ainda não consente se descontem
Os muitos dias que nas obras faltam.
As casas onde mora esta madama
Ainda não estavam acabadas;
210 – Agora já de longe a cal alveja,
Quem entra dentro delas já recreia
Os olhos nas pinturas das paredes
E teto apainelado, a quem, um dia,
Supria, Doroteu, a grossa esteira.
215 – Não quis o nosso herói chamasse a moça,
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Para mestre das obras, um pedreiro,
Entregou o conserto ao grão-tenente,
Que o fez baratinho, c’o massame
Que pertencia às obras da cadeia.
220 – Entende Fanfarrão que não devia
Deixar ao desamparo a sua dama;
Que a lei da Igreja pede que amparemos
As que, por nossa culpa, se perderam,
E a lei da fidalguia, que professa
225 – O nosso chefe, manda que ele ampare
As mesmas, que na fama já têm nota,
Contanto que isto seja à custa alheia.
Chama, pois, o bom chefe a um peralta,
Que era cabo de esquadra, e lhe comete
230 – A glória de casar com uma dama
Que, se não fez descer dos céus à terra
Ao Supremo Tonante, fez, contudo,
Humanizar um chefe, que descende
Da mais distinta, mais soberba raça.
235 – Que súbita alegria banha o rosto
Deste inocente cabo! Nos seus olhos
As lágrimas rebentam, e os seus beiços
Formar não podem uma só palavra.
A dita, Doroteu, é muito grande.
240 – Que fortuna não é casar um pobre
Com a rica viúva de um fidalgo?
Chamar ao fidalguinho, que ele deixa,
Ou enteado ou filho? Aparentar-se
Com todos os magnates desta terra
245 – Em grau tão conhecido e tão chegado?
Esta grande ventura, doce amigo,
Para todos não é. O negro demo
A quadra para prêmio dos serviços
Dos chefes principais dos seus bandalhos.
250 – Mas ah! prezado amigo, que o bom chefe
Já manda aparelhar as magras bestas,
Que têm de conduzir-lhe o pobre fato
Que trouxe lá da corte, e se o casquilho
Não chega a receber a cara esposa
255 – Primeiro que ele, no governo, morra,
Bem pode ser. amigo, se arrependa
E que, depois de ter cingido a banda
E empunhado o bastão, lhe pregue o mono.
Faltaram às promessas outros homens,
260 – Que, de honrados, nos deram muitas provas.
Como faltar não pode ao seu ajuste
Um fraco coração, uma alma indigna
Que, por tão baixo preço, a honra vende?
Cautela e mais cautela; sim, o chefe
265 – Não saberá mandar armadas tropas,
Nem saberá reger as cultas gentes,
Mas, para o não lograrem, sabe, astuto,
Dar todas as cadimas providências.
Escreve ao velho bispo e lhe suplica
270 – Que em todos os três banhos o dispense;
Não expende razão que justa seja,
Porem o velho bispo tem bom gênio
E em todos os proclamas o dispensa;
Que ele tem grandes letras e bem sabe
275 – Que os cânones da igreja não pensaram
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Da espécie singular de quando um chefe
Quer, à pressa, casar a sua amásia.
Ah! se ele estas desordens não fizera,
Não daria motivo a ser cantado
280 – Por sábia, oculta musa, em um poema!
Agora inquirirás, prezado amigo,
Se é este sábio bispo aquele mesmo,
Que o bruto Fanfarrão, em certo dia,
Meteu na sua sege, ao lado esquerdo?
285 – É este, sim. senhor. o mesmo bispo,
A quem o nosso chefe desalmado,
Enquanto governou a nossa Chile,
Já dentro de palácio e já na rua,
Tratou como quem trata um vil podengo.
290 – De novo inquirirás: "Então um chefe,
Que trata, dessa sorte, ao seu prelado,
Atreve-se a pedir-lhe que lhe faça
Dispensa em uma lei, a benefício
Da sua torpe amásia?" Eu, doce amigo,
295 – Ainda duvidara, se pedira
Me desse absolvição dos meus pecados,
Ao ver-me para dar, a Deus, minha alma.
O mesmo, Doroteu, também fizeras;
Mas tu, prezado amigo, não conheces
300 – O sistema que tem tão vil canalha.
Uma mui grande parte destes chefes
Assenta em procurar seu interesse
Por todos os caminhos, e acredita
Que o brio e pundonor, que nós prezamos,
305 – São umas vãs fantasmas, que só devem
Honrar de simples voz aqueles homens,
Que vêm de uma distinta e velha raca.
Para estes a nobreza está nos termos
Do sórdido monturo em que se deita
310 – Quanta imundície têm as velhas casas.
Ditoso de quem vive, neste mundo,
No estado de ver rir os outros homens
Das suas vis ações, sem que lhe suba
Um vermelho sinal de pejo à cara!
315 – Mas ah! meu doce amigo, quanto, quanto
Se enganam estes monstros, que a nobreza
É um vestido branco, aonde, logo,
Aos olhos aparece a leve mancha!
Já chega, Doroteu, o alegre dia.
320 – O dia venturoso do noivado.
Entra, no santo templo, a linda esposa,
Coberta toda de umas novas graças.
Os seus louros cabelos não flutuam,
Levados pelo vento, a toda parte;
325 – Em tranças se dividem e se prendem
No pente, a quem esconde um branco laço;
Nos cabelos da frente resplandecem
Das pedras de mais custo, os fogos vários;
A sua testa iguala à pura neve
330 – E são da cor da rosa as suas faces;
São pérolas mimosas os seus dentes,
As gengivas rubis e os grossos beiços
Estão cobertos dos cheirosos cravos.
Talvez, talvez não fosse tão formosa
335 – A mesma, que obrigou ao forte Aquiles
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A que, terno, vestisse a mole saia.
Neste sagrado templo não se adora
A imagem do Himeneu; aqui os noivos,
Para prova da fé que, eterna, dura,
340 – Não recebem na mão acesa tocha.
Ministro do senhor é quem os prende,
Cobrindo as castas mãos, com que se enlaçam.
Co,a branca ponta da pendente estola.
Aqui lascivas graças, nus amores
345 – Não cercam os consortes, nem meneiam,
Em torno dos altares e das piras,
Os vistosos festões de lindas flores.
Aqui, aqui só entram as virtudes,
A cândida modéstia, a inocência,
350 – A santa honestidade e a vergonha.
São estas e não outras as que correm
A receber, à porta do edifício,
Os sinceros amantes; sim, são estas,
São estas e não outras, as que espalham,
355 – Debaixo dos seus pés, cheirosas folhas
E as que fazem queimar, sobre os braseiros,
O incenso devoto e os mais aromas.
Recebem estes gênios aos dois noivos
E, ao ministro do altar, os apresentam.
360 – Ah! formosa Marília, agora, agora
Se aumentam tuas graças, pois te aviva
A cor da linda face um novo pejo!
Com que custo não dás a mão nevada
Ao teu amado Adônis, que a recebe
365 – Como quem lucra nela o seu tesouro!
Já não veste Jelônio a grossa farda
Com divisas de lã e, sobre a testa,
Não põe a barretina, que enfeita
Com armas e botões de grosso estanho.
370 – Já não cinge as correias amarelas,
Nem carrega, na cinta, o peso enorme
Dos férreos copos da comprida espada.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
Já brilham, nos canhões, os alamares
375 – Das finas lentejoulas, e, nos ombros,
Já brilham as dragonas, enfeitadas
C'os grandes cachos das lustrosas flores.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
A veste de cetim já resplandece
380 – Orlada co’o galão da fina prata,
E, por cima da veste, já se enrola,
Na cintura, a vermelha e rica banda.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
Como está belo! Como está casquilho!
385 – Concerta do babado a fina renda,
Olha uma e outra vez os alamares
Endireita a cucula, estende a perna;
Não consente um só fio sobre a farda;
Levanta o pescocinho, morde os beiços,
390 – E o seu cabelo, com a mão, afaga.
Jelônio se namora de si mesmo,
Ainda, ainda mais que o terno Adônis,
Quando viu o seu rosto dentro d’água.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
395 – Então, os militares que o rodeiam,
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Amado Doroteu, risonhos, mofam.
Um pisa com o pé nos pés vizinhos;
Puxa outro pelas pontas das fardetas
Aos amigos chegados; este acena
400 – C'os olhos e cabeça aos companheiros
Que lhe ficam defronte; aquele tapa,
Fingindo que tem tosse, a alegre boca;
Qual foge da presença... mas que vejo!
Tu, Doroteu, carregas sobre os olhos
405 – As grossas sobrancelhas? Tu enrugas
A testa levantada? Tu inflamas
As faces já desfeitas e suspiras?
Acaso tu presumes que eu murmuro
Do fato de casar o nosso chefe
410 – A sua terna amásia? Não, amigo,
Eu conheço, também, aonde chegam
Os deveres de quem nasceu fidalgo:
Obrou o nosso chefe o que eu faria.
Murmuro, Doroteu, mas é do dote;
415 – Do dote, sim, do dote. Dize, a banda,
O castão de coquilho, as mais insígnias,
São dotes que se dêem a um soldado,
Porque serviu ao chefe, em receber-lhe,
Sem vergonha do mundo, a sua amiga?
420 – Não achas insolência e desaforo
Ver os porta-bandeiras, os cadetes,
E os furriéis já velhos, preteridos
Só para-premiar-se com o posto,
Que por lei lhes pertence, um torpe crime?
425 – São estes, Doroteu, os grandes cabos,
De quem a triste pátria fiar deve
A sua salvação? São estes? Dize...
Agora já te calas. Pois não tornes
A mostrar-me, outra vez, o gesto irado,
430 – Que um dia hei-de enfadar-me e, se me enfadas,
Ainda que me pecas de joelhos,
Não hás-de receber da minha pena,
Em verso ou prosa, mais uma só carta.
CARTA 12ª
Aquele que se jacta de fidalgo
Não cessa de contar progenitores
Da raça dos suevos, mais dos godos;
O valente soldado gasta o dia
5 – Em falar das batalhas, e nos mostra
Das feridas, que preza, cheio o corpo;
O louco namorado não descansa
Enquanto tem quem ouça as aventuras,
Que fez com as madamas, mais senhoras,
10 – Benzendo-se mil vezes, quando chega
Aos lances apertados de ser visto
Dos maridos, dos pais e dos parentes,
Em que, só por milagre, não foi morto.
Assim, assim, também, o teu Critilo
15 – Não cansa de escrever-te, enquanto encontra
65
Do tolo Fanfarrão, do indigno chefe,
Estranhas bandalhices, que te conte.
Ah! sofre, amigo, que te gaste o tempo,
Pois conter-se não pode, bem que queria,
20 – Que a força da paixão assopra a chama,
A chama ativa do picante gênio.
Já sabes, Doroteu, aonde chega
Do nosso Fanfarrão a bizarria,
Em premiar serviços de uma dama.
25 – Agora, nesta carta, vou mostrar-te
Até aonde chegam as grandezas
Que fez com os marotos, por que tenhas,
Do seu fidalgo gênio, noção clara.
Qual negra tempestade, que carrega
30 – As nuvens de cupins e de formigas,
Que criam, com as chuvas, longas asas,
Assim o nosso chefe traz consigo,
Arribação infame de bandalhos,
Que geram, também, asas, com a muita,
35 – Nociva audácia que lhes dá seu amo.
Na corja dos marotos aparece
Um magriço mulato, a quem o chefe,
Por ocultas razões estima e preza.
Talvez que, noutro tempo, lhe levasse
40 – Os miúdos papéis às suas damas.
Ocupação distinta, que já teve
Um famoso Mercúrio, que comia
Sentado à mesa dos mais altos deuses.
Deseja o nosso chefe que este lucre
45 – Quatrocentas oitavas, pelo menos,
E, para que não saiam de seu bolso,
Descobre esta feliz e nova idéia:
Dispõe dos bens alheios como próprios.
No público teatro de Lupésio
50 – Ordena, Doroteu, se represente
Uma vista comédia, por que fiquem,
Para o velho mulato, os lucros dela.
Ordena, ainda mais, que o seu Robério
Os boletos reparta pelas damas,
55 – Pelos contratadores opulentos
E por quantos casquilhos os quiserem
Pagar, ao menos, por dobrado preço.
Robério assim o faz; supõe, coitado,
Que prometeu pedir alguma missa.
60 – E, junto c’o mulato, vai entrando
Em uma e outra casa, aonde deixa
Ou selado papel, para a platéia,
Ou, com tábua pendente, a velha chave.
Ah! nota, Doroteu, que ação tão feia!
65 – Aquele bruto chefe que não paga,
As pessoas mais nobres, o cortejo
Sequer por um criado, agora manda
Que o seu próprio Robério, o seu bom aio.
Ande de porta em porta, qual mendigo,
70 – Pedindo para um bode a benta esmola!
Então, amigo, a quem? a quem? aos mesmos
Que tem desfeiteado muitas vezes
E às pobres, que é mais, às pobres moças
Que hão-de ganhar, à custa de seu corpo,
75 – Com que possam pagar deste convite
66
Um tão avantajado, indigno preço.
Maldito sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Chegou-se, Doroteu, a noite alegre
80 – Destinada à função, e o vil Robério
Dá nova prova de fervor e zelo:
Vai-se pôr, com o traste do mulato,
Na porta da platéia, e, quando acaba
A primeira jornada, também corre
85 – Os cheios camarotes: fina idéia!
Para ver se os tolinhos, assim, largam,
Na copa do chapéu, que a esmola apanha,
Embrulhos de mais peso ! Ah ! doce amigo,
Quem bandalho nasceu, ainda que suba
90 – Ao posto de maior, morreu bandalho,
Que o tronco, se dá fruto azedo, ou doce,
Procede da semente e qualidade
Da negra terra, em que foi gerado.
Servia-se este chefe de um lacaio,
95 – E, por não lhe pagar salário certo,
Deu neste ardil, também: quando ia às festas
Lhe dava o seu brandão, e as mais pessoas,
Que estavam na tribuna, por obséquio,
Lhe davam as compridas, grossas velas.
100 – Se dava algum despacho, de que vinha
Proveito à parte rica, lho entregava,
Por que fosse ganhar o grande prêmio
Com que os néscios, servidos, o brindavam.
Nas vésperas, amigo, da partida,
105 – Tratou de lhe fazer maior a safra:
Passou atestações a todo mundo
E, sem saber se o mundo lh'as queria,
Mandou ao mesmo servo as entregasse
E os prêmios do trabalho recolhesse!
110 – Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Havia, Doroteu... mas não gastemos
O tempo em referir mais bandalhices
Da mesma natureza; refiramos
115 – Outras, que sejam de diversa classe.
Não quero, Doroteu, que o justo tédio,
Que infunde a semelhança, te duplique
O tédio, que produz a minha frase.
Fizeram os devotos de uma imagem,
120 – Da festa protetor, ao grande chefe.
Aceita o Fanfarrão do cargo a honra
E medita fazer um grão festejo.
Ordena aos cavalheiros, que vieram
Correr as argolinhas, em obséquio
125 – Do ditoso consórcio dos infantes,
Que esperam, nesta terra, à sua custa,
E que, nos dias da função, repitam
Os feitos jogos, com o mesmo lustre.
Manda que o grande curro, que o Senado
130 – Fez levantar, na praia, permaneça,
E venham os boizinhos, que, por serem
Mais bravos do que os outros, se guardaram,
Mal rapavam o chão e mal corriam,
Atrás do mau capinha, no terreiro.
135 – Eis aqui, eis aqui, amigo, o como
67
Se fazem coisas grandes, sem despesa.
Manda mais o bom chefe que se aluguem
Os palanques a quatro oitavas d’ouro,
Para que se comprasse um patrimônio,
140 – A sacrossanta imagem, deste lucro.
Que sábias intenções, que fins tão santos!
Celebram-se os festins e não escapa
Um camarote só, que não se alugue;
Mas deste rendimento não se sabe,
145 – Que a compra se meteu, de todo, à bulha.
Não penses, Doroteu, que o nosso chefe
Comeu este dinheiro. Longe, longe
De nós este tão baixo pensamento.
Indo já no caminho, o seu Matúsio
150 – Passou, sobre Marquésio, certa letra.
Para que se pagasse ao Santo Cristo.
Agora considera se este fato
Não mostra que ele zela a consciência.
Agora inquirirás se o tal Marquésio
155 – Pôs na sacada letra o seu "aceito".
Não pôs, não pôs, amigo, porque disse
Que deste passador não tinha efeitos.
Porem o bom Matúsio, mais seu amo,
Levam as consciências descansadas,
160 – Pois não devem supor, pelo costume,
Que a letra não pagasse o mau rendeiro.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Roubou um seu criado a certa escrava
165 – E dentro lha meteu, do seu palácio.
Conheceu o senhor quem fez o furto,
E foi pedir ao chefe que mandasse
Que o terno roubador restituísse
A serva, com os lucros! pois cedia
170 – De toda a mais ação, que a lei lhe dava.
Que entendes, Doroteu, que obrou o chefe?
Que fez um sério exame sobre o caso?
Que, conhecendo ser a queixa justa,
Meteu, em duros ferros, ao criado?
175 – Que não lhe perdoou, enquanto o mesmo
Ofendido queixoso não lhe veio
Suplicar o perdão da culpa grave?
Devias esperar que assim fizesse,
Mas, quando a razão pede certa coisa,
180 – Ele, então, executa o seu contrário.
Não zela, Doroteu, a sã justiça,
Nem zela a honra própria, maculada
Na sua habitação, que o servo muda
Em torpe lupanário. Não, não zela;
185 – Antes, prezado amigo, austero, estranha
Ao mísero queixoso, que se atreva
A supor que os seus servos são capazes
De poderem obrar excessos destes.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
190 – Que tanto influxo tens sobre este leso.
Passados alguns tempos, Ludovino
Encontrou, uma noite, a sua escrava
E à casa conduziu do bom Saônio,
Aonde, em hospedagem, se abrigava.
195 – Aqui lhe perguntou a longa história
68
Da fugida que fez, e a triste serva,
Com animo sincero, assim lhe fala:
"Ribério me induziu a que fugisse,
Meteu-me no seu quarto, aonde estive,
200 – Fechada, muitos dias. Alugou-me,
Depois, uma casinha; aqui me dava,
Dos sobejos da mesa de seu amo,
Para eu alimentar a pobre vida.
Tive dele dois filhos; o demônio
205 – Enganou-me, senhor, cuidei... “E, nisto,
Queria mais dizer, porem, de pejo,
As lágrimas lhe estalam, e se cortam
As últimas palavras, com suspiros.
Agora dirás tu, amigo honrado:
210 – "Agora, agora sim, agora é tempo,
Insolente Ribério, de nós vermos,
Para exemplo dos mais, o teu castigo.
Os soldados já marcham, já te prendem,
Já vens maniatado, já te metem
215 – Na sórdida enxovia, já te encaixam,
No pescoço, a corrente, e vais marchando
Com rosto baixo, a ver Angola ou Índia.”
Devagar, devagar com essas coisas:
Os servos de palácio são os duques
220 – Do nosso Santiago, e não se prendem
Por essas, nem por outras ninharias.
Atrevidos soldados já se aprontam,
Mas não para prenderem a Ribério,
Sim para conduzirem, entre as armas,
225 – Ao pobre Ludovino e à sua serva,
Que já buscando vão à sua casa,
Que dista desta terra muitas léguas.
É o mesmo Ribério quem
A fazer, Doroteu, a diligência,
230 – Cobrindo a testa da insolente esquadra.
Já viste, Doroteu, insultos destes?
Já viste que pertenda um homem sério
Que, à força, um bom senhor de si demita
A escrava desonesta, porque possa
235 – Ficar na mancebia? Já, já viste
Que se mande prender ao ultrajado
Pelo mesmo ladrão? Ah! caro amigo
Que, destas insolências que te conto,
Apenas pode ver quem mora em Chile!
240 – Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Há, nesta grande terra, um homem sábio
E o único formado em medicina.
A este bom doutor estimam todos,
245 – Por sua profissão, por seus talentos,
Por seu afável modo e, mais que tudo,
Pelas muitas virtudes que respira.
Curava o nosso sábio a certo enfermo
E, vendo a vária febre e os mais sintomas,
250 – Ordena que ele tome um copo d’água
A que dá de Inglaterra o povo o nome.
Manda-lhe o boticário uma botelha,
Que já servido tinha; o sábio, atento
A que ela poderia ter perdido
255 – A força natural, a não aprova
69
E passa a receitar outro composto,
Que possa produzir o mesmo efeito.
Chorando, o boticário sobe ao chefe
E diz-lhe que o doutor a rejeitara.
260 – Por ser seu inimigo e, desta sorte,
Tirar-lhe, da botica, o bom conceito.
Manda o chefe chamar aos boticários
E manda que examinem a garrafa;
Concordam os doutores que não tinha.
265 – Ainda, corrupção, talvez por verem
Que ainda conservava algum amargo.
Então, então o chefe, enfurecido,
Ordena ao ajudante que, ali mesmo,
Avise ao professor que ele tem ferros,
270 – Cadeias e galés, com que reprima,
Se neles prosseguir, os seus excessos.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Pensavas, Doroteu, que o nosso chefe
275 – Passasse à insolência, que refiro,
De insultar, por amor de um vil mulato,
Um velho professor tão bem aceito,
Um velho professor, alem de sábio,
Na terra singular, no seu oficio?
280 – Não, meu prezado amigo, não pensavas;
Pois quero, Doroteu, dizer-te a causa:
Esta grave ameaça e grave insulto
Foi feita em tom de paga, porque o bode
Curava, cuidadoso, ao próprio chefe,
285 – De mal oculto, que a modéstia cala.
Maldita seja tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!
Ah! dize, Doroteu, por que motivo
O pai de Fanfarrão o não pôs antes
290 – Na loja de algum hábil sapateiro,
C’os moços aprendizes deste oficio?
Agora dirás tu: "Nasceu fidalgo
E as grandes personagens não se ocupam
Em baixos exercícios." Nada dizes.
295 – Tonante, Doroteu, é pai dos deuses:
Nasceu-lhe o seu Vulcano e nasceu feio.
Mal o bom pai o viu, pregou-lhe um coice
Que o pôs do Olimpo fora, e o pobre moço
Foi abrir uma tenda de ferreiro.
CARTA l3ª
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...............................................................................
...............................................................................
Ainda, caro amigo, ainda existem
Os vestígios dos templos suntuosos
Que a mão religiosa do bom Numa
Ergueu o Marte e levantou a Jano.
5 – Ainda, ainda lemos que elegera,
70
Para estas divindades, sacerdotes,
E que muitas donzelas consagrara,
Afim de conservar-se, aceso, o fogo,
Em o templo de Vesta, sobre as aras.
10 – Também, também sabemos que este sábio,
Para ter mais conceitos entre o seu povo,
Fingiu que a ninfa Egéria, sendo noite,
Vinha falar com ele, e que, benigna,
A forma do goveno lhe inspirava.
15 – O mesmo fez Sertório, que dizia
Que nada executa, que não fosse
Ensinado por uma branca cerva,
Que, a deusa caçadora lhe mandara.
Mafoma, o vil Mafoma, astuto segue
20 – Também este sistema: ao seu ouvido
Acostuma a chegar-se a mansa pomba.
A nação, ignorante, se convence
De que este seu profeta conhecia
Os segredos do céu, por este meio.
25 – Não há, meu Doroteu, não há um chefe,
Bem que perverso seja, que não finja,
Pela religião, um justo zelo,
E, quando não o faça por virtude,
Sempre, ao menos, o mostra por sistema.
EPÍSTOLA A CRITILO
Qual seja o original. Dentro em minha alma
Vejo, ó Critilo, do chileno chefe,
Tão bem pintada a história nos teus versos,
Que não sei decidir qual seja a cópia,
Qual seja o original. Dentro em minha alma
5 – Que diversas paixões, que afetos vários
A um tempo se suscitam! Gelo e tremo,
Umas vezes de horror, de mágoa e susto;
Outras vezes do riso apenas posso
Resistir aos impulsos. Igualmente
10 – Me sinto vacilar entre os combates
Da raiva e do prazer. Mas ah! que disse!
Eu retrato a expressão, nem me subscrevo
Ao sufrágio daquele, que assim pensa,
Alheio da razão, que me surpreende.
15 – Trata-se aqui da humanidade aflita;
Exige a natureza os seus deveres.
Nem da mofa ou do riso pode a idéia
Jamais nutrir-se, enquanto aos olhos nossos
Se propõe do teu chefe a infame história.
20 – Quem me dirá que da estultice as obras
Infestas à virtude e dirigidas
A despertar o escândalo conseguem,
No prudente varão, mover o riso?
Eu veio que um Calígula se empenha
25 – Em fazer que de Roma ao Consulado,
Se jure o seu cavalo por colega.
Vejo que os cidadãos e as tropas arma
O filho de Agripina, que os transporta
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Em grossos vasos sobre o Tibre e logo
30 – Por inimigos lhes assina os matos,
Que atacar manda com guerreiro estrondo.
Direi que me recreia esta loucura?
Que devo rir-me e sufocar o pranto
Que pula dos meus olhos? Não, Critilo,
35 – Não é esta a moção que n'alma provo.
Por entre estes delírios, insensível,
Me conduz a razão, brilhante e sábia,
A gemer igualmente na desgraça
Dos míseros vassalos, que honrar devem,
40 – De um tirano o poder, o trono, o cetro.
Se Talia e Melpômene nos pintam,
Nos seus teatros, paixões humanas,
Ao ridículo gesto, ou ao semblante
Da cena que o coturno me apresenta,`
45 – Eu me conformo ao interesse, quando
Aborreço a maldade e quando rendo
À formosa virtude os dignos votos.
Despedace Medéia os caros filhos,
Guise Atreu de seus netos as entranhas,
50 – Eu terei sempre horror às impiedades.
Jamais da irreligião, da fé mentida
Me hão-de enganar os pérfidos rebuços
Ou da fingida cena os vãos adornos.
Devo pois confessar, Critilo amado,
55 – Que teus escritos, de uma idade a outra
Passarão, sempre de esplendor cingidos:
Que a humanidade, enfim desagravada
Das injúrias que sofre, por teu braços,
Os ferros soltará, que desafrouxa,
60 – Tintos do fresco, gotejado sangue.
Súditos infelices, que provastes
Os estragos da bárbara desordem,
Respirai, respirai: ao benefício
Deveis do bom Critilo a paz suave,
65 – Que a vossa liberdade alegre goza,
Sim, Critilo, são estes os agouros
Que, lendo a tua história, ao mundo faço.
De pejo e de vergonha os bons monarcas,
Que pias intenções sempre alimentam,
70 – De reger como filhos os seus povos,
Tocados se verão. Prudentes, sábios,
Consultarão primeiro sobre a escolha
Daqueles chefes, que a remotos climas
Determinam mandar, deles fiando
75 – A importante porção do seu governo.
Prevenidos que a vã, brutal soberba
Só nas obras influi destes monstros,
Pelo escrutínio da virtude espero,
Que regulados os seus votos sejam.
80 – De uma estéril mortal genealogia
0 Que o mérito produz de seus maiores,
Eles, amigo, argumentar não devem
Propalados talentos. A virtude
Nem sempre aos netos, por herança, desce.
85 – Pode o pai ser piedoso, sábio e justo,
Manso, afável, pacífico e prudente:
Não se segue daí que um ímpio filho,
Perverso, infame, díscolo e malvado,
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Não desordene de seus pais a glória.
90 – Nem sempre as águias de outras águias nascem,
Nem sempre de leões, leões se geram,
Quantas vezes as pombas e os cordeiros
São partos dos leões, das águias partos!
Para reger, ó rei, os vossos povos,
95 – Debalde ides buscar brasões e escudos
Entre os vossos dinastas. Roma, Roma
As fasces, as secures, mais as outras
Imperiais insígnias só tirava
Da provada virtude. Se das togas
100 – Distinguia uma e outra espécie, Atenas
1! quem a todas o caráter dava.
Igualmente civil jurisconsulto
Que instruído guerreiro, era mandado
Um cidadão que da província as rédeas
105 – Manejasse fiel. Daqui os Fábios,
Daqui os Cipiões e os bons Emílios,
Os Césares daqui, que os fastos ornam.
Quão diferentes, hoje, os nossos grandes!
É filho do marquês, do conde é filho,
110 – Vá das Índias reger vasto império.
() Deus! e que infelices os vassalos
Que tão longe do trono prostitui
O vosso império aos abortivos chefes!
Lá vai aquele, que de avara sede
115 – E por gênio arrastado: que tesouros
Não espera ajustar! Do alheio cofre
Se há-de esgotar a aferrolhada soma.
Desgraçada Justiça! Da igualdade
Tu não sabes o ponto: é a balança
120 – Do interesse que só por ti decide.
Que despachos injustos, que dispensas.
Que mercês e que postos não se compram
Ao grave peso de selada firma!
Outro vai que, lascivo, e desenvolto
125 – Só da carne as paixões adora e segue.
Honras, decoros, vós sereis despojos
Do seu bruto apetite. Em vão, cansados
Pais de família, zelareis vós outros
Da vossa casa o pundonor herdado.
130 – Aos vis ataques do atrevido orgulho
Hão-de ceder as prevenções mais fortes;
Vítimas da voraz sensualidade
Vossas filhas serão, vossas mulheres.
Que direi do soberbo, do vaidoso,
135 – Do colérico e de outros vários monstros,
Que freio algum não conhecendo, passam
A sustentar no autorizado cargo
Tudo quanto a paixão lhes dita e manda!
Não sofre aquele, que o vassalo oculte
140 – os cabedais que à sua indústria deve
E que a seus filhos e a seus netos, possa
Deixar, morrendo, uma opulenta herança.
Um falso crime lhe figura, aonde
Esgote as forças, que levar procura
145 – Alem das frias, apagadas cinzas.
Este medita que a nobreza ilustre
Sufocada se veja. A prisão dura,
O distante degredo é que promete
73
Da prevista vingança o fim prescrito.
150 – Ó senhores! ó reis! ó grandes! quanto
São para nós as vossas leis inúteis!
Mandais debalde, sem julgada culpa,
Que o vosso chefe, a arbítrio seu, não possa
Exterminar os réus, punir os impios.
155 – É c’os ministros de menor esfera
Que falam vossas leis. Nos chefes vossos
Somente o despotismo impera e reina.
Gozar da sombra do copado tronco
É só livre ao que perto tem o abrigo
160 – Dos seus ramos frondosos. Se se aparta
Da clara fonte o passageiro, prova
Turbadas águas em maior distancia.
Mas ah! Critilo meu, que eu estou vendo,
Que já chegam a ler as cartas tuas:
165 – Estes bárbaros monstros são cobertos
De vivo pejo, ao ver os seus delitos,
Que em tão disforme vulto, hoje aparecem.
Destro pintor, em um só quadro a muitos
Soubeste descrever. Sim, que o teu chefe
170 – As maldades de todos compreende.
Aqui vê-se o soberbo, que pensando
Do resto dos mais homens nada serem,
Mais que humildes insetos, só de fúrias
Nutre o vil coração e a seus pés calca
175 – A pobre humanidade. Aqui se encontra
O ímpio, o libertino, que ultrajando
Tudo que é sagrado, tem por timbre
Ao público mostrar, que o santo culto
Que nos intima a religião, somente
180 – Aos pequenos obriga, e que por arte
Os conserva a ilusão no fanatismo,
Porque da obediência às leis se dobrem;
Aqui se acha o lascivo; é o vaidoso,
1! o estúpido, enfim é o demente
185 – O que ao vivo aparece nesta empresa.
Tu, severo Catão, tu repreendes
Com teu mudo semblante a pátria Roma.
Nem seus teatros de lascívia cheios
Sofrem teus olhos nobremente irados.
190 – Pede o congresso, de terror ferido,
Que o rígido censor o circo deixe
Ou que se não produza a torpe cena.
Este, ó Critilo, o precioso efeito
Dos teus versos será, como em espelho,
195 – Que as cores toma e que reflete a imagem,
Os ímpios chefes de uma igual conduta
A ele se verão, sendo argüidos
Pela face brilhante da virtude,
Que, nos defeitos de um, castiga a tantos.
200 – Lições prudentes, de um discreto aviso,
No mesmo horror do crime, que os infama,
Teus escritos lhes dêem. Sobrada usura
É este o prêmio das fadigas tuas.
Eles dirão, voltando-se a Critilo:
205 – Quando devemos, ó censor fecundo,
Ao castigado metro, com que afeias
Nossos delitos, e buscar nos fazes
Da cândida virtude a sã doutrina!
74
FIM