terça-feira, 2 de março de 2010

ERICO VERÍSSIMO INCIDENTE EM ANTARES

Copyright © 1971 by Erico Verissimo
Copyright © 1988 by Herdeiros de Erico Verissimo
Ilustração de capa: Iberê Camargo (detalhe)
Foto de Geraldo Viola / Arq. Editora Globo
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Brasil

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Impressão e acabamento:
RR Donnelley & Sons Company - EUA

CIP-Brasil. Catalogaçào-na-fonte – Câmara Brasileira do livro, SP
Veríssimo, Erico, 1905-1975.
Incidente em Antares / Erico Verissimo. – 45ª ed. - São Paulo: Globo, 1995
ISBN 85-250-0590-8 1. Romance brasileiro I. Título 88-05189 CDD-869935
Índices para catalogo sistemático:
1. Romances: Século 20: Literatura brasileira 869-935
2. Século 20: Romances: Literatura brasileira 869.935

Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados pelos seus nomes verdadeiros.
(Nota do Autor)

primeira parte

ANTARES

I
Afirmam os entendidos que os ossos fósseis recentemente encontrados numa escavação feita em terras do município de Antares, na fronteira do Brasil com a Argentina, pertenciam a um gliptodonte, animal antediluviano, que, segundo as reconstituições gráficas da Paleontologia, era uma espécie de tatu gigante dotado duma carapaça inteiriça e fixa, mais ou menos do tamanho dum Volkswagen, afora o formidável rabo à feição de tacape ricado de espigões pontiagudos. Calcula-se que durante o Pleistoceno, isto é, há cerca de um milhão de anos, não só gliptodontes como também megatérios habitavam essa região diabásica da América do Sul, onde – só Deus sabe ao certo quando – veio a formar-se o rio hoje conhecido pelo nome de Uruguai. Ignora-se, todavia, em que época da Era Cenozóica surgiram naquela zona do Brasil meridional os primeiros espécimes do Homo sapiens. Tudo nos leva a crer, entretanto, que esse problema jamais tenha preocupado os antarenses. O que até hoje ainda os deixa ocasionalmente irritados é o fato de car-tógrafos, não só estrangeiros como também nacionais, n|o mencionarem nunca em seus mapas a cidade de Antares, como se São Borja fosse a única localidade digna de nota naquelas paragens do Alto Uruguai. De pouco ou nada têm servido os memoriais assinados pelo Prefeito Municipal, pelos membros da Câmara de Vereadores e por outras pessoas gradas e repetidamente dirigidos ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, protestando contra a acintosa omissão. O Pe. Gerôncio Albuquerque, quando ainda vigário da Matriz local, mais de uma vez encaminhou, mas em vão, idêntica reclamação ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, do qual era membro correspondente.
No entanto a verdade clara e pura é que, a despeito da má vontade ou da ignorância dos fazedores de cartas geográficas, a cidade de Antares, sede do município do mesmo nome, lá está, visível e concreta, à margem esquerda do grande rio.

O incidente que se vai narrar, e de que Antares foi teatro na sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963, tornou essa localidade conhecida e de certo modo famosa da noite para o dia – fama um tanto ambígua e efêmera, é verdade – não só no Estado do Rio Grande do Sul como também no resto do Brasil e mesmo através de todo o mundo civilizado. Entretanto, esse fato, ao que parece, não sensibilizou até agora geógrafos e cartógrafos.
Tão insólitos, lúridos e tétricos – e estes adjetivos foram catados no artigo alusivo àquele dia aziago, escrito pelo jornalista Lucas Faia para o seu diário A Verdade, porém jamais publicado, por motivos que oportunamente serão revelados – tão fantásticos foram esses acontecimentos, que o Pe. Gerôncio chegou a exclamar, dentro de seu templo, que aquilo era o começo do Juízo Final. Nesse momento de susto e angústia coletiva, um cético gaiato, desses que costumam menosprezar a terra onde nasceram e vivem, murmurou: “A troco de quê Deus havia de começar o Juízo Final logo neste cafundó onde Judas perdeu as botas?”
Bem, mas não convém antecipar fatos nem ditos. Melhor será contar primeiro, de maneira tão sucinta e imparcial quanto possível, a história de Antares e de seus habitantes, para que se possa ter uma idéia mais clara do palco, do cenário e principalmente das personagens principais, bem como da comparsaxia, desse drama talvez inédito nos anais da espécie humana.

II
O mais antigo documento escrito que se conhece referente ao lugar onde mais tarde viria a ser fundada essa comunidade da região missioneira do Rio Grande do Sul, encontra-se no livro do naturalista francês Gaston Gontran d’Auberville, intitulado Voyage Pittoresque au Sud du Brésil (1830-1831). Escreveu o ilustre cientista em seu diário de viagem :
24 de abril. – Cruzamos esta manhã o Rio Uruguai, numa balsa, e entramos em território do Brasil. Estes campos verdes, duma beleza idílica, lembram os da nossa Provence. Aqui as pastagens são boas e o gado bovino, abundante. Os primeiros homens que encontramos, tanto os brancos como os índios, me olham com uma curiosidade meio desconfiada, que acho justificável, pois devem estranhar a minha indumentária, o meu aspecto físico e principalmente a minha bagagem: as gaiolas em que trago os pássaros vivos que apanhei no Paraguai e na Argentina, e os sacos e caixas cheios das plantas e pedras que venho colecionando desde o momento em que pisei terras do Novo Mundo.
Cerca das dez horas da manhã, chegamos a um lugarejo pertencente à comarca de São Borja e conhecido como Povinho da Caveira, formado por uma escassa dúzia de ranchos pobres, perto da barranca do rio. A pouca distância deles, situa-se a casa do proprietário destas terras, que me recebeu com certa cortesia. E um homem ainda jovem, de compleição robusta, cabelos e barbas castanhos e pele clara. Tem um ar autoritário, costuma falar muito alto, parece habituado a dar ordens e a ser obedecido. Chama-se Francisco Vacariano, nome provavelmente derivado da palavra “vaca” e que não me parece legítimo, mas adotado. A casa da estância de gado do Sr. Vacariano é apenas um rancho maior que os outros da povoação. Comunico-me com esse senhor no meu -precário espanhol, e ele me responde na mesma língua mas usando, uma vez que outra, palavras portuguesas.
Almoçamos ao meio-dia e o estancieiro nos serviu, numa grande marmita de ferro, pedaços de carne seca (aqui chamada “charque”) com farinha de mandioca, tudo misturado com gordura animal. O Sr. Vacariano imaginava que eu era uma espécie de mascate. Ficou desapontado quando verificou que eu não trazia tabaco, açúcar nem sal, gêneros de que carece no momento. Expliquei-lhe que sou um cientista e o meu hospedeiro pareceu não me dar crédito, pois acha impossível que um homem empreenda uma tão longa e penosa viagem apenas para apanhar bichos e juntar plantas e pedras.
Percebi que o Sr. Vacariano não confia nos “homens do outro lado do rio” nem parece gostar deles. Tal coisa não é para estranhar-se, se levarmos em conta que recentemente o Brasil esteve envolvido numa guerra com a Argentina pela posse da chamada Banda Oriental.
O meu guia, que é um homem loquaz e grande conhecedor desta região e desta gente, duma margem e outra do rio, assegurou-me que o meu hospedeiro não só herdou as sesmarias que a Coroa de Portugal concedeu ao seu avô, no início do povoamento desta província, como também se apossou pela força de algumas léguas de campo -pertencentes a outros estancieiros vizinhos, que pôs em fuga, sob ameaças. Contou-me ainda o dito guia que boa parte do rebanho de gado que o Sr. Vacariano hoje possui é formado de descendentes dos bois e vacas que o seu pai roubou na Argentina, aproveitando a confusão de tempos de desordens e lutas intestinos no país vizinho. O guia me pediu discrição absoluta, quanto a essas informações, pois, ao que diz, o Sr. Vacariano é um homem violento e vingativo.
Fui informado de que os índios deste pouoado pensam que sou um feiticeiro, e que o capataz do meu hospedeiro está convencido de que não passo de um bispo disfarçado que aqui veio, a mandado do Papa, para estudar a possibilidade do restabelecimento das reduções jesuíticas que outro-ra floresceram nesta região. O que, porém, mais me perturbou foram as palavras que o próprio Sr. Vacariano pronunciou, ao fim de nosso almoço. Reproduzo-as aqui, verbatim: “Sabe o que fiz com o último lotador de impostos que apareceu nestas terras’! Mandei matá-lo e atirei seu corpo no rio”. Felizmente, depois dessa ameaça soltou uma risada, deu-me uma palmada cordial nas costas e declarou que era um homem de boa-fé e portanto acreditava em que eu era mesmo um colecionador de plantas e passarinhos, pois “cada louco tem a sua mania”.
Passei a tarde herborizando nos arredores do povoado. A hora de recolher, o Sr. Vacariano prometeu proporcionar-me, ao amanhecer do dia seguinte, “um espetáculo inesquecível”.
Passei a noite quase sem dormir, por causa dos mosquitos.

III
25 de abril. – Antes do nascer do sol montamos a cavalo, meu hospedeiro e eu, e nos dirigimos para uma várzea, a uma escassa légua de sua estância, e apeamos perto dum bosque, onde ficamos à espera do clarear do dia. Quando o sol apareceu, vi diante de mim uma planície pantanosa cheia duma grande variedade de aves aquáticas. Mal consegui esconder o meu pasmo e o meu júbilo, pois aquilo se me afigurava o sonho dourado dum naturalista. No primeiro relance, pude perceber ali graciosas garças, íbis, grous, galinhas-d’agua, patos, narcejas, alguns exemplares dum pássaro que, à distância, me pareceu do gênero Francoli-nus, mas dum tamanho acima do comum. Tive im.pe.tos de correr na direção daquele congresso de aves e apanhar as que pudesse, mas o Sr. Vacariano me segurou o braço, di-zendo-me que esperasse, pois havia “algo e spedar que me queria mostrar. Pouco depois apontou para uma árvore des-folhada, a uns vinte metros de onde estávamos, e eu vi, em-poleirada num dos seus galhos, uma garça dum alvor de neve, de linhas elegantes, e que em dado momento voltou a cabeça na direção do sol nascente, perfilou-se, esticou o longo pescoço e soltou um assobio prolongado, duma suavidade indescritível, a um tempo bucólico e triste, lembrando o pífaro dum pastor. Era como se a ave estivesse cantando um hino ao dia nascente. Numa espécie de transe, eu pensava nas belezas que a imaginação criadora e dadivosa de Deus espalhou pelo universo, quando o Sr. Vacariano me disse que os índios chamavam àquela garça “flauta do sol”. (Tratava-se evidentemente de um exemplar da Ardea cyanoce-phala.)
Voltamos para a estância e durante o resto do dia colhi exemplares de gramináceas e solanáceas e outras plantas que encontrei naqueles prados paradisíacos. O meu hospedeiro pareceu ter simpatizado comigo, pois quando lhe pedi emprestadas duas juntas de bois, para substituir os animais cansados que haviam puxado nossa carreta até ali, ele acedeu prontamente ao vieu pedido.
A noite, depois do jantar, saímos ambos a caminhar nos arredores da casa da estância. Como para lhe pagar pelo formoso espetáculo da manhã, localizei no céu a constelação de Escorpião, que no hemisfério austral começa a aparecer no horizonte, a leste, depois de 15 de abril, mostrei ao Sr. Vacariano a bela estrela chamada Antares, e disse-lhe que, embora não parecesse, ela era maior do que o Sol. O meu hospedeiro olhou para a estrela em silêncio e mais tarde, quando chegamos a casa, murmurou: “Antares.... Bonito nome. Para mim quer dizer ‘lugar onde existem muitas antas’, bem como nestas terras perto do rio”. Pediu-me que escrevesse essa palavra, o que fiz, num pedacinho de papel, para o qual o Sr. Vacariano ficou olhando durante algum tempo, murmurando: “Bonito nome para um povoado... melhor que Povinho da Caveira”. Depois, guardando o papel no bolso, sorriu com seus fortes dentes de carnívoro e acrescentou: “Mas não acredito que essa estrela seja mesmo maior que o Sol”.

IV
Outro documento, pouquíssimo conhecido mas também importante, sobre o que se poderia chamar de pré-história de Antares é uma carta escrita pelo P.« Juan Bautista Otero, S. J., ao provincial de sua ordem, em Buenos Aires. Conta o missionário nessa missiva, datada de 4 de dezembro de 1832, que cruzou o Rio Uruguai e chegou ao Povinho da Caveira onde pediu e obteve permissão do dono daquelas terras, um certo Sr. Francisco Bacariano (sic) para fazer casamentos e batizados. Eis um trecho da referida carta:
Aqui vivem muitos índios e índias em estado de indi-gência e, o que é ainda pior, em pecaminosa mancebia. Por outro lado, a ausência de mulheres da raça branca neste aldeamento leva os homens de origem portuguesa a servirem-se dessas indígenas para a satisfação de sua luxúria. O próprio Sr. Bacariano, segundo me informou pessoa digna de fé, é pai de quase uma dezena de filhos naturais com várias destas süvícolas, mas não os batiza nem legitima. Horroriza-me a idéia de que um dia quando adultas, essas criaturas venham, sem o saber, a cometer incesto. Este é, porém, um problema que por ora temos de deixar nas mãos misericordiosas de Deus. Assim, nestes últimos três dias tenho celebrado muitos casamentos e batizado grande número de pagãos, não só crianças como também adultos. Ontem, domingo, rezei uma missa ao ar livre, com apreciável concorrência. O Sr. Bacariano não me parece ter muito respeito pela nossa religião ou por qualquer outra, mas apesar disso me tem tratado com consideração e até facilitado o meu trabalho apostolar. Perguntei-lhe, com o devido respeito, se não pretendia casar-se, e ele me respondeu que, dentro de poucos meses, iria a Alegrete para contrair núpcias com uma moça, de nome Angélica, filha dum abastado estancieiro daquela localidade.

V
Que esse casamento se realizou, é fato fora de dúvida, pois seu registro se encontra nos velhos livros da Matriz de Alegrete.
Chico Vacariano teve com sua esposa legítima ao todo sete descendentes-, entre homens e mulheres. Para grande alegria sua, nasceu-lhe primeiro um filho macho, que recebeu o nome de Antônio Maria.
Um ano após o nascimento do primogênito, teve Francisco Vacariano de enfrentar um longo período de dificuldades e agruras, durante o qual se viu mais de uma vez na iminência de perder suas terras, seu gado e o resto de seus bens. Foi por ocasião da chamada Guerra dos Farrapos deflagrada por milhares de homens daquela província que se 3rgueram em armas contra o governo imperial, então nas mãos dum Regente, pois o príncipe Dom Pedro, herdeiro do trono, não atingira ainda a maioridade.
Francisco Vacariano jamais tomou uma posição definida nessa luta. Se por um lado estava convencido da justiça da causa revolucionária, por outro o fato de os rebeldes haverem proclamado a República do Piratini lhe causava um certo desagrado, que ele exprimiu à sua mulher nestas palavras: “Um imperador é uma espécie de pai que a gente tem. Numa república me parece que todo o mundo fica meio órfão...”.
Assim, Chico Vacariano – como mais tarde viria a dizer com malícia um de seus inimigos – tratou de “jogar com pau de dois bicos”. Abrigava altemadamente em suas terras ora tropas revolucionárias ora tropas legalistas. Atendeu as requisições de cavalos, gado e mantimentos que lhe faziam ambas as facções. De resto, como poderia dizer “não” a maiorias armadas?
O que muito o favoreceu nesse jogo dùplice foi o fato de o Povinho da Caveira ser uma localidade de difícil acesso, pouco lembrada pela revolução e completamente esquecida pelo resto do mundo. Mesmo assim, duma feita Chico Vacariano e seus familiares tiveram de cruzar o rio às pressas, refugiando-se durante mais de um ano na Argentina.
A guerra civil durou quase um decênio inteiro. Vacariano costumava dizer que aquela campanha era a principal responsável pelos seus primeiros cabelos brancos e pelas precoces rugas que lhe vincavam a face. Terminada definitivamente a luta, Chico voltou ao pago, reconstruiu a sua casa, que na sua ausência quase virará tapera, e tratou de refazer aos poucos o seu rebanho bovino e recuperar o seu prestígio pessoal naquela região. O tratado de paz entre os Farrapos e os Imperiais tinha sido firmado com tanta dignidade e patriotismo, de ambas as partes, que duma simples leitura de seus termos não se poderia deduzir quem tinha sido o vencedor e quem o vencido.
Nunca ninguém perguntou a Chico Vacariano, pelo menos cara a cara, de que lado havia ele pelejado durante a guerra civil. E esse foi um assunto que o senhor de Povinho da Caveira sempre evitou pelo resto de sua vida natural.
O Povinho foi elevado a vila por alvará de 25 de maio de 1853, data em que recebeu oficialmente o nome de An-tares. Pouca gente entendeu a razão dessa mudança ou o sentido da nova denominação. Muitos, como Chico Vacariano, imaginavam que Antares significava “lugar das antas”. Houve até quem pensasse tratar-se do nome de um general brasileiro, herói de alguma daquelas muitas guerras contra os castelhanos.
Durante mais de dez anos Francisco Vacariano – como havia já acontecido desde 1829 no primitivo Povinho – foi a autoridade suprema e inconteste na vila. Nem mesmo o governo provincial tentava intervir na vida daquela pequena comunidade ribeirinha, que ainda fazia parte do município de São Borja.

VI
No verão de 1860 chegou ao conhecimento de Chico Vacariano que um certo Anacleto Campolargo, criador de gado e homem de posses, natural de Uruguaiana, ia comprar terras nas proximidades de Antares. Murmurava-se que esses Campolargos eram descendentes por linha reta dum tropeiro paulista que entrara um dia numa furna do cerro do Jarau – talvez na famosa Salamanca da antiga lenda – encontrando lá um fabuloso tesouro, pois de outro modo ninguém podia explicar como um modesto negociante de mulas andasse sempre com a sua guaiaca cheia de onças de ouro, rutilantes como sóis.
Mesmo sem jamais ter visto a cara de Anacleto Campolargo, o senhor de Antares fez o possível para que a transação não se consumasse. “Não quero intrusos por aqui!” – dizia. Ora, essas terras que Campolargo queria adquirir pertenciam a um chefe político de São Borja, homem influente, amigo íntimo do governador da província. Chico Vacariano não teve outro remédio senão “engolir o sapo”, segundo uma expressão sua.
Consumada a transação, Anacleto Campolargo mandou logo construir uma grande residência de alvenaria em Antares, na praça do Império, naquele tempo pouco mais que um potreiro onde cavalos e vacas pastavam.
A primeira vez em que Chico Vacariano e Anacleto Campolargo se defrontaram nessa praça, os homens que por ali se encontravam tiveram a impressão de que os dois estancieiros iam bater-se num duelo mortal. Foi um momento de trepidante expectativa. Os dois homens estacaram de repente, frente a frente, olharam-se, mediram-se da cabeça aos pés, e foi ódio à primeira vista. Chegaram ambos a levar a mão à cintura, como para arrancar as adagas. Nesse exato momento o vigário surgiu à porta da igreja, exclamando: “Não! Pelo amor de Deus! Não!”
Nenhum dos dois potentados parecia amar a Deus e muito menos ao vigário. Contiveram-se, porém, cada qual uma secreta razão particular, e depois retomaram ambos seu caminho, seguindo em sentidos opostos.
Foi assim que entre as duas dinastias antarenses, a dos Vacarianos e a dos Campolargos, começou uma feroz rivalidade, que deveria durar quase sete decênios, com períodos de maior ou menor intensidade, ao sabor de acontecimentos de ordem política, econômica ou puramente pessoal.

VII
Pouco a pouco Anacleto Campolargo foi conquistando amigos e impondo-se ao respeito e à estima de boa parte da população antarense. Era o primeiro homem na história daquela comunidade que ousava enfrentar o “Chico Vaca” – como lhe chamavam pelas costas os seus desafetos. Agressivo, opiniático, autoritário, o patriarca do clã dos Vacarianos era um sujeito sem tato. Suas palavras em geral soavam como chicotadas. O maioral dos Campolargos, porém, sinuoso e macio, cultivava o murmúrio, sabia “manipular” suas emoções e modular o tom da voz de acordo com a sua conveniência e os seus propósitos. Tinha um ar paternal, freqüentemente chamava o interlocutor de “meu filho”, se estava diante dum jovem, ou de “meu chefe”, se falava com um ancião. (“Já provou deste fumo? Não? É especial. Tem palha? Pois faça um crioulo. Pode ficar com esse naco. Ora, obrigado por quê?”)
Homem de algumas letras, Anacleto Campolargo organizou na vila o Partido Conservador, o que bastou para que Chico Vacariano, até então um tanto indiferente em matéria de política, tratasse de organizar o Partido Liberal.
Assim, Antares passou a ter dois senhores igualmente poderosos. Era exatamente essa igualdade de forças que impedia as duas facções de se empenharem em batalhas campais de extermínio. Continuando uma velha tradição, nas missas de domingo e dias santos, os conservadores sentavam-se nos bancos da direita, à frente do altar-mor, e os liberais nos da esquerda. Em seus sermões, pregados com voz trêmula, o vigário fazia acrobacias de retórica para não dizer nada que pudesse, mesmo de leve, descontentar qualquer dos dois grupos. Quando alguém lhe perguntava em particular para qual dos dois proceres antarenses inclinavam-se as suas simpatias, o pároco sussurrava, olhando dum lado para outro, a medo-, “Deus é o meu único chefe e a Igreja a minha única política”. Neutralidade, entretanto, era uma palavra inexistente no vocabulário político e social de An-tares. O forasteiro que ali chegasse, mesmo para uma visita breve, era praticamente obrigado a tomar logo partido.
Tanto os Campolargos como os Vacarianos eram criadores de gado e de cavalos. Foi, porém, o velho Anacleto o primeiro que começou a criação de ovelhas naqueles campos. Chico Vaca havia muito possuía lavouras de trigo, li-nho e arroz, razão por que era o mais rico senhor de escravos em toda a região.

VIII
Quando o Brasil entrou em guerra com o Paraguai, Vacarianos e Campolargos enrolaram os seus estandartes tribais e, à sombra da bandeira do Império, lutaram juntos contra a “indiada de Solano Lopes”. Chico Vacariano queixou-se-. “Só não me agrada é que desta vez temos castelhanos peleando de nosso lado”. Referia-se às forças da Argentina e da República Oriental do Uruguai, que haviam formado com o Brasil a Tríplice Aliança, para enfrentar o temível ditador paraguaio.
Como Anacleto e Francisco tivessem já passado da idade militar, cada um deles mandou dois de seus filhos alistarem-se como Voluntários da Pátria.
A guerra durou de 1865 a 1870. Foram tempos de tristeza, apreensões e durezas para os habitantes de Antares. Só depois que a campanha terminou é que chegou à vila a notícia de que Antônio Maria, o primogênito de Chico Va-cariano, havia tombado morto na batalha de Lomas Valen-tinas. Os dois Campolargos voltaram vivos mas estropiados. Benjamim, o mais velho, que havia perdido um olho num combate corpo a corpo, trazia as divisas de major e uma medalha militar. Seu irmão Gaudêncio tivera de amputar um braço. Antão Vacariano, que deixara a mão esquerda enterrada em solo paraguaio, voltara feito coronel e também condecorado por atos de bravura.
Foram esses três antarenses recebidos em sua terra com honras de heróis. Cada qual contava as suas estórias da campanha – algumas horripilantes, outras pitorescas e até jocosas. Num ponto, porém, Benjamim Campolargo e Antão Vacariano discordavam. É que cada um deles reclamava para si a dúbia glória de ter matado com um pontaço de lança o ditador Solano Lopes, na batalha de Cerro-Corá. A História, porém, desmentiu ambos.

IX
Graças aos bons ofícios e ao prestígio político de Ana-cleto Campolargo, amigo de figurões do governo da província, Antares foi separada de São Borja e elevada à categoria de cidade e sede de município, por Lei Provincial de 15 de maio de 1878. Ora, esse fora sempre um dos projetos mais caros a Chico Vacariano, agora já próximo dos oitenta anos. A idéia, porém, de que tudo se tinha conseguido por obra exclusiva de seu maior inimigo, deixou-o de tal maneira abalado que, uma semana antes de começarem os festejos com que se celebraria o grande evento, Chico Vaca caiu morto, fulminado pelo que um médico de São Borja diagnosticou como um “ataque de cabeça dos brabos”. Num gesto cavalheiresco, Anacleto transferiu os festejos para dezembro daquele ano, e até mandou em nome da família Cam-polargo uma coroa de flores para o defunto. Os Vacarianos recv saram a homenagem, vendo no gesto um intolerável “debique”.
Dezembro chegou, a cidade preparava-se para as grandes comemorações quando se espalhou a notícia de que o velho Campolargo, que estava na estância, fora picado por uma jararaca, tendo morrido em menos de meia hora, apesar das benzeduras de suas negras velhas e das ervas e un-güentos de seu curandeiro bugre.
Assim, quando entrou o ano de 1879, os dois grandes clãs de Antares tinham à sua frente novos chefes. Benjamim, o caolho, era o patriarca dos Campolargos e Antão, o maneta, o maioral dos Vacarianos – dois quarentões na força da vida. Ambos haviam jurado em silêncio, junto aos cadáveres paternos, continuar aquela luta de família até ao fim do Tempo.

X
Quando, anos mais tarde, a Princesa Isabel assinou o decreto em que se abolia a escravatura no Brasil, Antão Va-cariano disse a seus familiares que esse “ato de loucura” ia precipitar o fim do Império. Foi com relutância que, pelo menos formalmente, liberou seus escravos. Ora, Benjamim Campolargo, que havia alguns anos fundara o Grêmio Republicano de Antares, exultou com a notícia da Abolição, e mais tarde soltou vivas e foguetes ao saber que a República fora finalmente proclamada no Brasil.
Durante dias Antares esteve em pé de guerra. Mulheres e crianças foram proibidas de sair à rua. Na praça trocaram-se insultos e tiros. As vidraças do prédio do Grêmio Republicano foram partidas a pedradas e balaços por monarquistas enraivecidos. Um petardo explodiu contra a porta da residência dos Vacarianos. Houve cabeças quebradas e outros ferimentos corporais, leves uns, graves outros; morte, porém, nenhuma.
Fosse como fosse, o Império havia caído e os Vacaria-nos não tiveram outro remédio senão resignar-se. E, como faziam sempre que sofriam algum revés, fecharam a casa da cidade e refugiaram-se na estância, onde curtiram a sua vergonha, o seu despeito e o seu rancor. Antão verteu às escondidas algumas lágrimas quando soube que os republicanos haviam mandado o velho imperador para o exílio. “Este país está perdido!” – disse aos membros de sua família. – “O remédio agora é esperar a hora de fazer uma revolução e reconduzir o Velho ao trono.” Xisto, o primeiro Vacariano na ordem de sucessão, resmungou: “Essa república não se agüenta nas pernas. Dizem que o barulho já começou no Rio de Janeiro”.
Em 1890 a Matriz de Antares, cuja construção tinha sido iniciada havia vinte anos, foi inaugurada por ocasião da Festa do Divino Espírito Santo. Benjamim Campolargo, Imperador Festeiro, mandou carnear seis de suas reses para dar churrasco ao povo, organizou uma quermesse e fez queimar fogos de artifício vindos da capital do Estado.
Os Vacarianos, que tinham prometido dar um sino de bronze para o novo templo, recusaram cumprir a promessa. Quando o vigário timidamente os interpelou, alegando que a Igreja nada tinha a ver com a política, Antão retrucou truculento: “Padre, nesse assunto nem Deus pode se dar o luxo de ser neutro!”

XI
Os historiadores de Antares, que não são muitos, até hoje temem lembrar certos “fatos desagradáveis” da crônica desse município. Num ponto, porém, parecem todos de acordo. A revolução federalista, que irrompeu em 1893, foi sem a menor dúvida o mais cruel e sangrento período da luta hereditária entre as duas famílias antarenses rivais. Antão Vacariano e seus irmãos, filhos, cunhados e sobrinhos, partidários apaixonados do famoso tribuno do Império, Gaspar da Silveira Martins, tomaram o lado dos revolucionários e, num golpe de surpresa, apossaram-se de Antares. Os Cam-polargos, porém, não tardaram a reagir e, ajudados por forças republicanas vindas de São Borja, retomaram a cidade. O combate travou-se ao anoitecer. A tropa dos Vacarianos retirou-se, com algumas baixas, e em desordem. Antão, que tinha ficado para trás comandando uma dúzia de companheiros numa operação de retaguarda, para proteger a fuga do grosso de sua força, foi feito prisioneiro. Trazido à presença de Benjamim Campolargo, trocou com este palavras e frases virulentas. O comandante vencedor, porém, recobrou a calma e disse:
– Sou um homem de bem. Respeito o direito dos prisioneiros de guerra. Vou poupar a sua vida, apesar de todas as barbaridades que você e seus bandidos praticaram enquanto estavam de donos da cidade.
Antão Vacariano encarou firme o adversário e replicou :
– Não peço nem aceito favor de nenhum caolho filho da puta! Me soltem, me devolvam a minha adaga e venham de um a um, que eu mostro quem é macho e quem não é.
Benjamim sacudiu a cabeça e soltou a sua risadinha gutural.
– Não sou prevalecido. Não brigo com maneta. Como única resposta Antão escarrou-lhe na cara. E
neste ponto as versões divergem. Afirmam alguns cronistas que, cego de ódio, Benjamim tirou sua faca da bainha, precipitou-se sobre o inimigo e sangrou-o ali mesmo. Outros dizem que mandou um de seus homens degolar o prisioneiro mais tarde, a frio. A verdade é que Antão Vacariano foi assassinado naquela noite, e seu corpo, envolto num lençol, enterrado no cemitério local, numa sepultura rasa e sem marca.

XII
A vingança dos Vacarianos não tardou. Meses depois, as forças federalistas, comandadas por Xisto, retomaram Antares e conseguiram prender Terézio, o mais novo dos Campolargos.
Xisto mandou reunir na praça os homens da cidade e ordenou que mulheres e crianças ficassem fechadas em suas casas. De mãos amarradas às costas, Terézio foi trazido à sua presença, em meio de grave silêncio. Ao redor dos dois adversários agrupavam-se aqueles guerreiros barbudos, sujos, suados e alguns até com a pele e as vestes ensangüentadas do último combate.
– É do conhecimento geral – bradou Xisto Vacariano – que os Campolargos assassinaram covardemente o meu mano Antão, que não teve nem o consolo de morrer como homem, peleando de arma na mão. Foi miseravelmente sangrado como um boi no matadouro. Pois agora chegou a nossa hora. Este Campolargo vai pagar pelos crimes do seu irmão e de todos os cachorros sarnentos de sua raça maldita!
Terézio estava livido. Mal moveu os lábios quando disse:
– Guerra é guerra. Não peço clemência.
– Não pedes nem te dou, corno filho duma grã-puta! Seguiu-se uma cena digna do pincel e da imaginação
dum Hieronymus Bosch. Xisto mandou amarrar o prisioneiro pelas pernas e pendurá-lo no galho duma árvore, com a cabeça a poucos centímetros do solo. Depois acercou-se de sua vítima, empunhando um grande funil de lata, cujo longo bico lhe enfiou às cegas no ânus, profundamente. Com a cara contraída de dor e vergonha, Terézio cerrou os dentes mas não deixou escapar o menor gemido.
Nenhum daqueles homens parecia saber ao certo o que Xisto pretendia fazer. Um deles cochichou ao ouvido dum companheiro: “Acho que o coronel vai dar uma lavagem de Pimenta e mostarda nesse ‘pica-pau’”.
Os planos de Xisto, porém, eram mais terríveis. Todos compreenderam o que ele ia fazer quando gritou: “Tragam o tempero pra salada!” e dois de seus homens, vindos do quintal do casarão dos Vacarianos, aproximaram-se, conduzindo com todo o cuidado, para não se queimarem, uma grande chaleira de ferro cheia de azeite em ebulição.
O céu estava azul e limpo. Uma brisa de primavera boba nas folhas das árvores e nas rosas de todo o ano que cobriam a cerca, ao lado da residência, agora deserta, dos Campolargos. Havia um grande silêncio na praça ensolarada.
Xisto murmurou: “Sabes o que vou te fazer, sacri-panta? Te incendiar as tripas”. A uma ordem sua, os dois homens começaram a despejar lentamente no funil todo o conteúdo da chaleira. Terézio Campolargo soltou um urro e começou a estrebuchar.
Apenas um homem, de todos quantos assistiam à cena, soltou uma risada. Os outros se mantiveram num silêncio taciturno. Romualdo, o mais moço dos Vacarianos, acercou-se do chefe da família e protestou: “Mas isso é uma barbaridade, mano!” Sem desviar o olhar da vítima, que continuava a berrar e espernear como um porco que está sendo sangrado, replicou: “Precisas aprender a lidar com o inimigo, menino. Se a coisa te faz mal ao estômago, toma um chàzinho de erva-doce e vai pra casa te deitar”.
A agonia de Terézio foi de curta duração. Quando suas convulsões cessaram, Xisto olhou para o céu, aliviado. Vieram contar-lhe então que o vigário, que estava na igreja, rezando, lhe pedia o corpo do jovem Campolargo para a encomendação e o sepultamento. Xisto sacudiu negativamente a cabeça. “Encomendar pra quê? Se esse ‘pica-pau’ tinha mesmo alma, a esta hora ela já entrou nos quintos do inferno.” Disse isto, voltou as costas para o cadáver e tornou à sua casa, onde o esperava um assado de paleta de ovelha, que ele comeu com a tranqüilidade dum justo.

XIII
Seis meses mais tarde os Campolargos retomaram An-tares num ataque de surpresa, à noite. Os Vacarianos retiraram-se com a sua tropa, deixando para trás, mortos ou feridos, vários companheiros. E quando, horas depois do combate, Xisto conseguiu reunir os seus homens no topo duma coxilha e começou a chamar pelos irmãos, deu pela falta de Romualdo e ficou frio. “Quem é que viu o Romualdo por último?” Ninguém se lembrava. Xisto deu-o por perdido, encolheu os ombros e pensou: na guerra como na guerra...
Mais tarde ficou-se sabendo que Romualdo na hora do inesperado ataque dos “pica-paus” estava na cama com uma china e, não tendo tempo de fugir, fora capturado.
Benjamim Campolargo esfregou as mãos num contentamento frenético. Tinha chegado a desejada hora de vingar a morte de Terézio.
No dia seguinte, por volta das oito da manhã (era já outono, dia frio e triste, céu cor de pêlo de capivara) Benjamim tratou de saber do vigário em que árvore seu irmão havia sido torturado. O padre deu-lhe a informação, mas disse: “Por tudo quanto existe de mais sagrado na vida, pelo amor de sua mãe e de seu falecido pai, eu lhe suplico que não sacrifique esse moço. Não foi ele quem matou o Terézio”.
Benjamim sorriu: “Padre” – disse ele com brandura – “eu lhe juro por Deus Nosso Senhor que não vou matar o Romualdo”. O sacerdote arregalou os olhos, surpreso. “Jura mesmo?” O outro ergueu a voz: “Juro! Aqui na frente dos meus companheiros! Pela honra da minha mãe, da minha mulher e das minhas irmãs, juro que vou soltar o moço, e vivo!” O vigário ficou pensativo, incrédulo ainda, mas nada disse. Lavou simbolicamente as mãos e voltou para a igreja.
Romualdo Vacariano foi trazido à presença de Benjamim Campolargo, que exclamou: “Tirem toda a roupa desse sujeitinho!” Três de seus homens obedeceram à ordem. “As botas também... Bom. Agora amarrem ele na mesma árvore onde penduraram o meu irmão. Assim não! Com a barriga contra o tronco, as pernas abertas... Isso!”
Um círculo duns cento e poucos homens formava uma espécie de muro ao redor da árvore. Como no dia da tortura e morte de Terézio, todas as mulheres e crianças tinham sido fechadas nas suas casas. Os companheiros entreolha-vam-se, sem saber ao certo o que seu chefe ia fazer. Benjamim chamou um dos seus companheiros, um negro alto e corpulento, e lhe disse:
– Elesbão, você é quem vai fazer o serviço no moço. O preto levou a mão à faca. Era um exímio degolador.
Benjamim sacudiu negativamente a cabeça.
– Não. O instrumento não é esse, mas o que você tem entre as pernas.
Elesbão não entendeu imediatamente o que o seu comandante queria. Quando compreendeu, murmurou, constrangido :
– Ora, coronel, eu nunca fiz dessas coisas.
– Mas vai fazet agora. E uma ordem.
– Por que logo eu?
– Porque sim.
– Aqui na frente de todo o mundo?
– É exatamente isso que eu quero: testemunhas. Elesbão olhou para o homem nu e depois para o seu comandante :
– Me prenda, coronel, me rebaixe de posto, mas uma coisa dessas eu não faço. Degolar é diferente...
Num átimo Benjamim examinou mentalmente a difícil conjuntura. Por um lado não podia ser desautorizado na frente dos seus próprios comandados; por outro, não queria castigar e talvez perder um companheiro do valor do Elesbão. Quem’ salvou a situação foi um caboclo parrudo e mal-encarado, o Polidoro, contumaz barranqueador de éguas, que se apresentou voluntário para executar a tarefa.
– Está bem – disse o chefe Campolargo. – Está na mesa. Sirva-se.
E o caboclo violentou Romualdo. Uns três ou quatro homens soltaram risadinhas. Outros, porém – a maioria – retiraram-se do local para não assistirem à cena degradante. Um capitão bigodudo chegou a gritar: “Isso não se faz a um macho, coronel! Por que não mata logo o miserável?” Benjamim, que saboreava o espetáculo, não deu a menor atenção ao protesto.
Consumado o ato, gritou: “Agora soltem a moça!” Dois soldados desamarraram Romualdo, que deu alguns passos, cambaleante, como se estivesse bêbedo, a cara aparvalhada. De repente soltou um urro, como um animal ferido de morte e, nu como estava, saiu a correr na direção do rio, atirou-se no chão, no alto da barranca, e rolou declive abaixo, até cair nágua. Pôs-se a nadar, e, a uns trinta metros da margem, deixou-se afundar. Seu corpo jamais foi encontrado.
Depois desses atos de violência e perversidade ninguém podia sequer imaginar que fosse um dia possível para Va-carianos e Campolargos voltarem a viver na mesma cidade. Terminada a revolução, com a vitória dos republicanos, Xisto Vacariano emigrou com todo o seu clã para a Argentina, onde permaneceu por dois anos. Durante essa longa ausência, um amigo seu, homem de bem e neutro em política, tomou conta da estância e dos outros negócios dos Vacarianos e, com o auxílio de amigos influentes, conseguiu evitar que os Campolargos se apossassem discriciona-riamente dos bens móveis, imóveis e semoventes de seus velhos adversários.

XIV
Em 1898 Xisto Vacariano’tomou um vapor em Buenos Aires e viajou até ao Rio de Janeiro onde – conta-se – se avistou com o senador Pinheiro Machado, figura prestigiosa da política nacional. Eram velhos conhecidos. Havia alguns anos, o prócer republicano hospedara-se na estância dos vacarianos e, à hora do jantar – conversa vai, conversa vem —, acabaram descobrindo que Pinheiro Machado, que ?e alistara com apenas dezesseis anos como Voluntário da ratria, durante a Guerra do Paraguai, havia servido no regimento de que Xisto Vacariano era oficial. Comemoraram a descoberta bebendo vinho do Porto e Xisto deu de presente ao futuro senador da República um de seus cavalos de purosangue e um par de estribos de prata feitos na Bélgica.
Xisto valia-se agora desta amizade para tentar resolver a sua situação e a de toda a sua família. Pinheiro Machado escutou-o com atenção e prometeu “amansar” os Campolar-gos, pelos quais – confessou – não morria de amores, apesar de eles serem seus correligionários. Mandou uma carta a Júlio de Castilhos – então Presidente do Estado – explicando-lhe a situação e pedindo a sua intercessão no assunto. Castilhos escreveu a Benjamim Campolargo reco-mendando-lhe fizesse “vista grossa” ao reaparecimento dos seus inimigos Vacarianos em Antares.
Benjamim levou alguns dias para “digerir” essa carta. Respondeu, porém, a ela declarando que faria como seu “prezado chefe e amigo” pedia. Tinha antes escrito ordenava mas passou a carta a limpo para trocar o verbo. Assim os Vacarianos foram voltando pouco a pouco para Antares. com todos os membros de suas famílias.
Naquelas primeiras semanas após a volta dos proscritos (termo usado por um jornalista republicano local) não só a população de Antares como a própria cidade – casas, muros, calçadas, plantas, pedras – pareciam viver em estado de extrema tensão, na expectativa do primeiro encontro físico entre um Campolargo e um Vacariano.
Xisto e Benjamim defrontaram-se uma tarde à frente do Grêmio Republicano. O primeiro pigarreou forte. O outro fuzilou o inimigo com um olhar de seu único olho válido. Nada disseram nem fizeram. Cada qual seguiu seu caminho e Antares e os antarenses respiraram desoprimidos.

XV
Antares celebrou com grandes festas a entrada do século xx. Armou-se no centro da praça um carrossel, de propriedade dum espanhol residente em Uruguaiana. À tarde houve Cavalhadas e à noite quermesse. Acenderam-se fogueiras onde se assaram batatas-doces e lingüiças. Num grande tablado erguido à frente da Matriz, houve danças a noite inteira, ao som de músicas tocadas pelos melhores san-foneiros da cidade e redondezas. À meia-noite em ponto o sino da igreja rompeu a badalar festivamente, homens davam tiros de pistola para o ar, foguetes de lágrimas espocavam nas alturas, derramando sobre os telhados e o rio chuveiros de estrelas multicores. Homens, mulheres e crianças abraçavam-se gritando, chorando e rindo. Benjamim Campolar go, que assistia à festa da sacada de sua residência, desce« para a praça e confraternizou com o povo. Sentou-se con. a esposa à cabeceira duma mesa de cinqüenta metros de comprimento, ali ao ar livre, e deu início à grande ceia – carne de gado, ovelha e porco, galinhas e patos assados, pratarraços de arroz de carreteiro e, no firn, sobremesas feitas pelas melhores doceiras da cidade. E, a todas essas, dê-lhe vinho, dê-lhe cachaça, dê-lhe cerveja...
Os Vacarianos, esses celebraram o grande acontecimento em família, sem se misturarem com “a canalha republicana”.
A pessoa escolhida pelo intendente para falar em nome da municipalidade – um professor – saudou o século xx como a era da Luz e do Progresso, a qual, “mercê das novas invenções e descobertas do saber humano, haverá de proporcionar aos povos de todas as nações do Universo uma vida de conforto, fartara e harmonia, como nunca na História da Humanidade”.
Já quase ao clarear do dia, intoxicados de bebidas alcoólicas, dois machos do clã dos Campolargos – primos-irmãos ainda na casa dos vinte – estranharam-se, trocaram primeiro palavrões, depois bofetadas e finalmente facadas. Um deles recebeu um pontaço de faca no ventre (superficial) e o outro deixou no chão da praça um naco de seu braço esquerdo. O velho Benjamim teve de intervir pessoalmente, ajudado por dois irmãos, para evitar que o conflito se generalizasse num “pega pra capar” desastroso.
Ao saber do incidente, no dia seguinte, Xisto Vacaria-no sorriu e disse: “Começou bem pra nós esse tal de século xx”.

XVI
A esta altura da presente narrativa é natural que o leitor esteja inclinado a perguntar se não existiam em Antares homens de bem e de paz, com comportamento e sentimentos cristãos. A pergunta é pertinente e a resposta, sem a menor dúvida, afirmativa. Havia, sim, e muitos. Desgraçadamente seus ditos, feitos e gestos não foram recolhidos pela história oficial. Apenas uns poucos deles incorporaram-se à tradição oral da cidade e do municipio-, os restantes perderam-se para sempre no olvido.
Os livros escolares, cujo objetivo é ensinar-nos a história da nossa terra e do nosso povo, são em geral escritos num espírito maniqueísta, seguindo as clássicas antíteses – os bons e os maus, os heróis e os covardes, os santos e os bandidos.
Via de regra, não se empregam nesses compêndios as cores intermediárias, pois os seus autores parecem desconhecer a virtude dos matizes e o truismo de que a História não pode ser escrita apenas em preto e branco.
Por motivos puramente de economia de espaço – uma vez que o objetivo desta narrativa é tecer um sumário pano de fundo histórico contra o qual apresentar oportunamente os macabros eventos daquela sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963 – estas páginas lamentavelmente têm seguido o espírito dos citados livros escolares, focando de preferência as duas grandes oligarquias que em Antares, durante cerca de setenta anos, disputaram o predomínio político, social e econômico. Ficaram assim na penumbra do segundo, do terceiro e do último plano todos aqueles que – para usar duma expressão de Spengler – não “fazem” mas “sofrem” a História, a saber: estancieiros menores, agricultores de minifúndios, membros das profissões liberais e do magistério e ministério públicos, funcionários do governo, comerciantes, artesãos e por fim essa massamorda humana composta de párias – brancos, caboclos, mulatos, pretos, curibocas, mamelucos – gente sem profissão certa, changadores, índios vagos, mendigos, “gentinha” molambenta e descalça, que vivia num plano mais vegetal ou animal do que humano, e cuja situação era em geral aceita pelos privilegiados como parte duma ordem natural, dum ato divino irrevogável.

XVII
Tinha razão o editorialista do semanário A Verdade (fundado em 1902) quando escreveu que o Progresso se aproximava de Antares com botas de sete léguas. Nos tempos em que a localidade era ainda conhecida pelo nome de Povinho da Caveira, Chico Vacariano, seu fundador, sempre que tinha de mandar um recado, verbal ou escrito, a uma pessoa que morasse longe, valia-se dum portador, dum “chas-que”, dum “próprio”. Em fins do século xix, Antares gozava já dos benefícios e facilidades do telégrafo, isso para não falar no serviço postal.
Estradas de ferro ligavam muitas cidades do Rio Grande do Sul umas às outras, e o apito de suas locomotivas assustava os bichos do campo e do mato, ao mesmo tempo que a fumaça de suas chaminés sujava aqueles ares puros. Não parecia otimismo exagerado esperar-se que dentro duns dez anos, no máximo, seus trilhos fossem estendidos até a Antares. Agora, na primeira década do novo século, surgia o telefone, que Xisto Vacariano afirmava ter sido inventado por Dom Pedro II, com a colaboração dum mecânico norte-americano, seu amigo particular. O primeiro a instalar na sua casa um desses aparelhos foi Benjamim Campolargo, que corria sempre na dianteira de seu rival, em matéria de empreendimentos progressistas.
Os “próprios” e os “chasques” continuavam ativos e uteis. As mulheres, as crianças e os velhos usavam como veículos de transporte a aranha, a diligência e outras carruagens de tração animal. Carretas ainda rechinavam, ronceiras puxadas por bois lerdos, através daquelas campinas. Os antarenses em sua maioria achavam – e nisso não eram diferentes de outros campeiros do Rio Grande do Sul – que o único meio de locomoção digno dum homem macho continuava a ser o cavalo. Em certos casos tinha-se a impressão de que esse animal era um prolongamento do corpo do cavaleiro, assim como a pistola ou o revólver faziam já parte da sua anatomia.
Quando se instalou em Antares a primeira usina elétrica, Xisto Vacariano, sentado à cabeceira de sua mesa à hora do jantar, disse aos filhos: “No Povinho, o avô de vocês vivia muito bem se alumiando com lâmpada de óleo de peixe e vela de sebo. A máquina mais complicada que ele conhecia era o monjolo. Pra mim, lampião de querosene ou acetilene já é luxo demais. Ninguém me convence de mandar botar na minha casa a tal de luz elétrica. Dizem que esse negócio dá choque, pode até matar uma pessoa”.
Quando, no inverno de 1912, o intendente mandou instalar luz elétrica nas ruas da cidade, o velho Eusébio Reis, que durante mais de vinte e cinco anos exercera sozinho as funções de acendedor de lampiões, caiu numa tão grande depressão nervosa, que numa madrugada de julho enforcou-se num dos postes da iluminação moderna, e seu corpo amanheceu hirto, coberto de geada, balançando-se dum lado para outro, sacudido pelo vento gelado que soprava das bandas dos Andes.
Para surpresa geral, foi um Vacariano quem, em 1911, trouxe para Antares o primeiro automóvel, um Oldsmobile, que mandara vir de Buenos Aires. Depois de aprender a dirigir o veículo, um dos seus maiores prazeres era passear nele, de tolda arriada, pela cidade, apertando provocadora-mente na buzina de fonfom sempre que passava pela frente do solar dos Campolargos. Estes não tardaram em mandar buscar da Alemanha um automóvel Benz.

XVIII
Como o Dr. Júlio de Castilhos estivesse seriamente enfermo, o bacharel em Direito Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, que havia sido seu chefe de polícia, sucedera-o em 1898 como Presidente do Estado, bem como no de chefe do Partido Republicano gaúcho. Castilhos faleceu em 1903, durante a operação de garganta a que fora submetido. Benjamim Campolargo, acompanhado de dois de seus filhos, embarcou às pressas para Porto Alegre, a fim de assistir às exéquias de seu chefe e amigo. Chegou tarde, mas aproveitou a oportunidade para visitar o Dr. Borges de Medeiros, que ainda não conhecia pessoalmente. Achou-o seco, formal mas digno. Ouviu, de várias pessoas importantes da capital, os maiores elogios ao caráter do presidente. Ninguém mais probo, ninguém mais justo, ninguém mais sábio – dizia-se. “Um verdadeiro varão de Plutarco” – afirmavam os edítorialístas de A Federação, o órgão oficial do Partido Republicano Rio-Grandense. Benjamim Campolargo, graças talvez a uma autovacina, voltou para Antares incontami-nado pelas virtudes morais de seu chefe. Continuou a perseguir a oposição, a coagir juizes, promotores e jurados. Governava despoticamente o município de Antares, onde os maragatos eram minoria. Tornou-se assim, como tantos outros chefes políticos municipais do Rio Grande do Sul, uma espécie de “príncipe eleitor”. Reeleito em 1903, 1913 e 1918, Borges de Medeiros exerceu durante vinte anos a sua “ditadura científica” de inspiração positivista, fechado no palácio do governo e quase divinizado como um Lama do Tibete.
Sem recursos humanos para enfrentar seus inimigos crônicos, os Vacarianos agora competiam com eles em outros terrenos que não o da política. Todos os fins de ano, quando se tratava de eleger uma nova diretoria para o Clube Comercial, a mais fina sociedade local, havia sempre uma chapa apresentada pelos Campolargos, a oficial, e outra pelos Vacarianos. O pleito era precedido de propaganda, cabala, pressões de toda sorte, e até de suborno. No dia da eleição os eleitores compareciam à sede do clube armados de punhais e revólveres, e era raro o ano em que não houvesse bate-boca, troca de insultos, de bofetadas e até de tiros.
Desde 1915 o futebol – “o salutar esporte bretão”, segundo um redator de A Verdade – tornara-se popular em Antares. Os Campolargos haviam fundado o Esportivo Mis-sioneiro e os Vacarianos favoreciam o Fronteira F. C. Não se tem notícia duma partida entre esses dois adversários que não haja terminado sem luta corporal entre seus torcedores, isso para não falar nas trocas de caneladas e pe-chadas entre os jogadores, em disputa da bola. Conta-se a seguinte estória, que parece ter sido já incorporada ao folclore futebolístico gaúcho. O Fronteira e o Missioneiro defrontavam-se numa partida decisiva de campeonato, o jogo aproximava-se do final e nenhuma das duas esquadras conseguira ainda marcar um ponto sequer. No último minuto do jogo, Pollito, atacante do Missioneiro – um argentino “contrabandeado” do outro lado do rio, a peso de ouro – driblou quase toda a defesa do Fronteira e ia na certa marcar um tento quando um Vacariano bombachudo que estava ali por perto saltou rápido para dentro do gramado, rebolou no ar o seu laço e pealou o castelhano, que caiu de costas, batendo com a nuca no chão. O goleiro do Fronteira saltou para agarrar a bola, mas um dos Campolargos alvejou-a com um tiro de revólver, e o balão se desinflou com um longo suspiro nas mãos do keeper, que soltou um berro de horror. O público invadiu o campo e então começou uma verdadeira batalha campal que durou mais de meia hora, pois soldados da polícia municipal, chamados para impor a paz, acabaram tomando partido e participando do entrevero.

XIX
A Primeira Guerra Mundial chegou a Antares principalmente através das páginas róseas do Correio do Povo. Pela primeira vez em mais de cinqüenta anos Campolargos e Vacarianos encontravam-se por assim dizer do mesmo lado, na mesma trincheira, alvejando simbolicamente um inimigo comum, os boches. Xisto e Benjamim admiravam a França, detestavam a Alemanha e consideravam o Kaiser um bandido desalmado, um bárbaro. Papagaiando frases de jornais e folhetos de propaganda, ambos afirmavam que os
Aliados deviam a qualquer preço “salvar a Civilização das garras sanguinárias dos hunos”.
A década de 20 trouxe para Antares muito progresso, tanto de ordem material como intelectual. Durante esse pós-guerra, o ritmo de construções de casas particulares acelerou-se. Os Vacarianos reformaram o seu casarão – “uma simples meia-sola”, disseram os seus desafetos. Os Campolargos construíram um sólido palacete de dois andares.
Em 1924 uma firma norte-americana instalou um frigorífico nos arredores da cidade – o que levou o editorialista do diário local a afirmar que Antares, até então um município exclusivamente agropastoril, começava auspiciosamente a industrializar-se.
O telégrafo, o cinema, os jornais e revistas que vinham de fora, a estrada de ferro e, depois de 1925, o rádio – contribuíram decisivamente para aproximar o mundo de Antares ou vice-versa. Forasteiros também muito faziam pelo progresso social e cultural da cidade: magistrados, promotores públicos, funcionários do governo estadual e federal, caixeiros-viajantes... Era, porém, de lamentar que Antares não possuísse, como São Borja, uma guarnição militar federal, um batalhão que fosse.
Em 1925 os Vacarianos haviam comprado o primeiro sedan Chrysler que jamais sentou suas rodas nas ruas de Antares. Numa espécie de esperada represália, os Campolargos não tardaram a adquirir na Argentina um Studeba-ker preto que, na opinião de seus rivais, tinha o aspecto dum carro fúnebre.
Foi também nesse ano de 1925 que a polícia descobriu e prendeu o primeiro comunista da história de Antares, um certo Mário Pinho, um tipògrafo, natural de Santiago do Boqueirão, homem pálido e triste que se gabava de ter lido de fio a pavio, em tradução espanhola, O Capital de Karl Marx. O agente do “olho de Moscou” passou um mês na cadeia e, depois de solto, mudou-se para Santa Maria.
Nos bailes do Clube Comercial moças e rapazes das Melhores famílias locais dançavam o charleston, sob o olhar crítico das matronas. Num sarau de arte, no solar dos Cam-polargos, um forasteiro recitou versos modernos – que ninguém entendeu – de Oswald e Mário de Andrade. Antares, pois, atualizava-se, integrando-se na Era do jazz.

XX
Em 1923 os partidários do Dr. Assis Brasil – aliança de maragatos com dissidentes do Partido Republicano – haviam feito a sua revolução, protestando contra mais uma reeleição do Dr. Borges de Medeiros, confirmada pela Assembléia estadual, mas considerada pela oposição uma farsa fraudulenta, pois o candidato oficial republicano – alegavam seus inimigos – não obtivera os três quartos da votação total exigidos nesse caso pela Constituição.
Xisto V acariano a princípio pensara em ficar sossegado em sua estância (não tinha muita simpatia pessoal por Assis Brasil), mas como lhe tivesse chegado aos ouvidos o rumor de que Benjamim Campolargo ia mandar prender todos os Vacarianos machos, decidiu “ir para a coxílha” com os filhos, irmãos, genros, netos, sobrinhos, amigos, peões e demais cumpinchas: cento e vinte homens ao todo. Embora já na quadra dos oitenta, Xisto mantinha-se ainda ereto em cima do cavalo, e sentia-se apto para enfrentar mais uma campanha em sua vida. Assim, os Vacarianos se juntaram às forças de Honório Lemes. Evidenciara-se desde o primeiro momento da revolução que o número de combatentes republicanos era consideravelmente maior e mais bem armado que o dos “bandoleiros”, pois o governo estadual, além de seus partidários civis que formavam as tropas irregulares, contava também com o apoio da sua Brigada Militar, força bem armada e aguerrida.
O velho Vacariano explicava aos seus comandados: “O Gen. Honório tem razão. O plano não é dar combate de frente aos ‘chimangos’, mas negacear, atacar de surpresa, fugir na hora do aperto e voltar depois quando menos nos esperarem. O nosso chefe conhece a Serra do Caverà como a palma de suas mãos. O inimigo não ousa atacar o homem no chão dele. Assim, vamos embromando esses borgistas para provocar uma intervenção federal. O Presidente da República não gosta do Borjoca. Está louco pra meter sua cucharra na nossa panela”.
Não se teve notícia de nenhum combate, nem mesmo duma escaramuça passageira, entre os guerreiros dos Vacarianos e os dos Campolargos.
A intervenção federal foi finalmente feita no Rio Grande do Sul e dela resultou um tratado de paz. Benjamim Campolargo cantou vitória, mas Xisto Vacariano disse: “Bobagem desse caolho caduco! Quem ganhou a parada fomos nós. Com meia dúzia de espingardas descalibradas, revólveres enferrujados e lanças de guajuvira, os assisistas conseguiram o que queriam: esse tratado que reforma a Constituição do Estado, que os castilhistas consideravam intocável, e proíbe a reeleição do Chimango!”

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