segunda-feira, 1 de março de 2010

capítulos 20 a 47

XXI
Em meados da década de ‘20 várias mudanças eram já visíveis e audíveis no modo de vida tanto dos Campolargos como dos Vacarianos. No começo do século, membros das gerações mais novas dessas duas poderosas famílias tinham sido mandados estudar em Porto Alegre. Muitos voltaram para casa depois de terminado pelo menos o curso ginasial, e alguns obtiveram até diplomas de doutor em Direito, Medicina ou Engenharia, embora poucos deles chegassem a exercer essas profissões. Fos%e como fosse, todos traziam para Antares uma visão mais larga do mundo e da vida, e uns poucos podiam até ser considerados, se não intelectuais, pelo menos “intelectualizados”. Haviam adquirido 0 hábito da leitura, da música, do teatro e alguns deles – pouquíssimos, é verdade – compravam pinturas para pendurar nas paredes de suas residências, nas quais até então só se viam tristes retratos de antepassados mortos, com solenes molduras douradas.
Um jovem Campolargo de maneiras civilizadas chegou a publicar no jornal da terra um poema de sua autoria. (O velho Vacariano leu-o em voz alta e comentou, seco e certo: “Esse menino é fresco”.)
Em maio de 1926 causou os comentários mais desencontrados na cidade a notícia de que o herdeiro do trono dos Campolargos, Zózimo, tinha embarcado para Buenos Aires com sua esposa e prima-irmã Quitéria, para assistirem a alguns espetáculos da temporada lírica do Teatro Colón.
Até fins do século anterior os Vacarianos e os Campolargos haviam cultivado deliberadamente a endogamia, não com a finalidade de manter a pureza de suas estirpes, mas por motivos práticos, principalmente de ordem econômica. Queriam evitar, no caso das heranças, não só a divisão das terras do clã como também complicações nos inventários. Esses casamentos entre primos e primas – quase sempre sem amor e nem mesmo desejo – eram não raro ajustados pelos pais dos jovens, em concílios familiares. Com raras exceções, finda a minguada lua-de-mel, a mulher ficava em casa a engordar, a ter filhos e a cuidar (ou não) deles, ao passo que o marido passava boa parte da noite no Clube Comercial, jogando pôquer, ou na casa da amante, com a qual, continuando uma tradição centenária, também tinha filhos, que não reconhecia legalmente. O advogado que, por morte dum Vacariano ou dum Campolargo, ousasse apresentar-se como patrono dum filho natural do falecido, arriscava levar um tiro ou uma surra exemplar.
Durante a segunda década do novo século, porém, membros de outras famílias locais e até mesmo forasteiros, haviam começado a entrar nas cidadelas dos Vacarianos e dos Campolargos, pela porta do casamento. O velho Benjamim observava alarmado a tendência das novas gerações de sua tribo a produzir mais rebentos do sexo feminino que do masculino. Quando ele morresse, Zózimo – filho que lhe nascera quando ele tinha já 56 anos – ocuparia o seu lugar. Mas... e depois? Seu sucessor tinha apenas quatro filhas. Era o diacho. E o olho legítimo de Benjamim Campolargo entristecia quando ele pensava nessas coisas.
Tanto ele como Xisto relutavam em aceitar a idéia de que já não eram os senhores absolutos e discricionários dentro de seus feudos. As gerações novas rebelavam-se contra as idéias dos seus maiores em matéria de costumes e rituais domésticos. Chegavam a criticar, por antiquados, os seus métodos de trabalho campeiro, vejam só aonde chegamos!
Assim, ao findar a década de ‘20 os dois senhores de Antares pareciam-se um pouco com os gliptodontes e os me-gatérios no fim do Pleistoceno, isto é, eram dois representantes de espécies animais em processo de extinção. Mas, como é de se supor tenha acontecido com os monstros ante-diluvianos, Xisto e Benjamim não pareciam ter consciência de seu drama.

XXII
A revolução militar irrompida em São Paulo, em 1924, contra o governo do Presidente Artur Bernardes, ecoou no Rio Grande do Sul em localidades muito próximas a Antares, como São Borja, São Luís e Santo Ângelo, onde se revoltaram respectivamente dois regimentos de cavalaria e um batalhão ferroviário, este último sob o comando dum capitão de Engenharia, Luís Carlos Prestes. O velho Campolar-go chegou a organizar um corpo de voluntários para defender a sua cidade, caso ela fosse atacada. Como, porém, os insurgentes de Prestes, depois de darem combate às forças legalistas, abandonaram o Estado, rumo de Catanduvas, onde deviam reunir-se aos rebeldes de São Paulo – Antares foi poupada aos desastres de mais uma guerra, e sua população continuou a viver a vidinha de sempre.
Um dia, no princípio do verão de 1925, apareceu sorrateiro em Antares um membro da prestigiosa família Vargas, de São Borja. Chamava-se Getúlio, tinha quarenta e dois anos de idade, era bacharel em Direito e ocupava então uma cadeira de deputado na Câmara Federal, como representante do Partido Republicano de seu Estado. Homem sereno, de feições e maneiras agradáveis, sabia usar a cabeça com lúcida frieza e possuía qualidades carismáticas ainda não de todo reveladas plena e publicamente. Dizia pouco mas perguntava muito. Frio, solerte, sabia jogar com dois fatores importantes na vida: o tempo e as fraquezas humanas.
Usou de artimanhas tais, que naquele dia conseguiu reunir Xisto Vacariano e Benjamim Campolargo na casa dum amigo comum, homem apolitico e geralmente benquis-to na cidade.
Quando os dois sátrapas locais deram pela coisa, estavam já frente a frente, fechados a chave com o Dr. Getúlio numa sala de visitas que o calor de janeiro transformava num forno aceso, com a colaboração de cortinas de veludo, guardanapos de croche e tapetes felpudos. Um ventilador girava e zumbia, inócuo, em cima duma mesinha com tampo de mármore, ao lado dum vaso de alabastro com flores artificiais.
Os dois velhos inimigos naturalmente não se apertaram as mãos e nem sequer rosnaram a menor palavra um para o outro. Estavam ambos meio desarvorados. Aquilo então era coisa que se fizesse? Olhavam para Getúlio Vargas com uma expressão de censura em que se mesclavam surpresa e zanga. O deputado de São Borja, abrindo o seu sorriso mais sedutor, de excelentes dentes, convidou-os a sentarem-se, perguntando-lhes se queriam beber alguma coisa gelada. Nenhum dos dois queria. Sentaram-se com uma certa relutância pesada, cada qual na sua poltrona, separados por três metros de tapete. Getúlio Vargas acendeu com pachorra o seu charuto e por alguns instantes permaneceu silencioso a olhar, de um para outro, os dois velhos, como um árbitro que, no meio da arena, prepara-se para anunciar ao público a luta de boxe que se vai travar entre dois campeões de peso-pesado.
– Perdoem-me pela “traição” – disse ele. – Quando os fins são bons, às vezes temos de fechar os olhos à natureza dos meios. Foi essa a única maneira que encontrei para juntar numa mesma sala dois antigos adversários pessoais e políticos.
Fez uma pausa pontuada por baforadas da fumaça do charuto e pôs-se a andar dum lado para outro.
– Estou aqui a mandado de meu pai. O velho Manuel me fez portador dum pedido ao senhor, Cel. Xisto, e ao senhor, Cel. Benjamim. Os amigos hão de concordar em que os tempos estão mudando. O mundo se encontra diante da porteira duma nova Era. Essas rivalidades entre maragatos e republicanos serão um dia coisas do passado. Precisamos pacificar definitivamente o Rio Grande para podermos enfrentar unidos o que vem por aí...
Nenhum dos dois chefes antarenses perguntou o que era que vinha por aí. Mantiveram-se silenciosos e emburra-dos, bufando de calor. Getúlio ergueu a cabeça e soltou uma baforada de fumaça na direção do lustre de vidrilhos que pendia do centro do teto. Benjamim – que, por insistência de seus familiares, consentira em usar um olho de vidro para substituir o que perdera na Guerra do Paraguai – com o olho natural fit iva obsessivamente a escarradeira de louça pintada que tinha a seus pés. Xisto tamborilava nervosamente com os dedos de ambas as mãos nos braços da poltrona, enquanto seus lábios murchos e arroxeados se pre-gueavam, deixando escapar uma espécie de assobio que não passava duma ventosidade sem melodia.
– Pois o velho Manuel apela para os senhores – tornou a falar o emissário de São Borja – para que façam as pazes, apertem-se as mãos, esqueçam as diferenças e os agravos do passado e daqui por diante trabalhem juntos pelo progresso e pela grandeza de nossa terra. Não há nenhum desdouro nessa reconciliação, cuja iniciativa não partiu de nenhum dos prezados amigos aqui presentes. Foi um vizinho, um republicano, que se lembrou disso, com a melhor das intenções. Se não quiserem fazer as pazes em atenção ao meu pai ou a mim, reconciliem-se então pelo amor ao Rio Grande.
Getúlio continuou a falar sem ênfase oratória, macio e persuasivo. O Rio Grande estava destinado a cumprir no Brasil uma grande missão em prol da unidade nacional. Para isso, entretanto, era preciso primeiro recuperar a sua hegemonia política perdida após o assassinio do Senador Pinheiro Machado.

XXIII
Não passou despercebido ao jovem deputado o efeito mágico produzido pelo nome de Pinheiro Machado no Cel. Xisto, que, ao ouvi-lo, pigarreou enquanto a pàlpebra de seu olho esquerdo tremia nervosamente.
– Quem governa o Brasil – prosseguiu Getúlio – são ora os mineiros ora os paulistas, a famosa fórmula “café com leite”. – Soltou uma risada. – Não é justo que o chimarrão tenha também a sua vez?
Falou durante mais dez minutos, concluindo assim:
– Pois agora me digam sinceramente que é que ganham sendo inimigos? Quem perde é Antares e o Rio Grande. – Voltou-se para Xisto Vacariano. – Autorizo ao senhor, coronel, a dizer publicamente, a quem quiser, que foi meu pai, que fui eu, dois republicanos, que o procuraram para fazer esta proposta de paz. Que me diz, Cel. Benjamim?
O maioral dos Campolargos parecia ainda hipnotizado pela escarradeira. Finalmente ergueu o olho bom para o “moço de São Borja” e murmurou: “Pôs é...”, vago mas já meio inclinado ao sim. O cacique dos Vacarianos, que até então estiverà sentado meio de lado, mexeu-se na poltrona e transferiu o peso do busto para o outro hemisfério das nádegas, e seu assobio sem música foi substituído por uma espécie de prolongado ronco, que tanto podia ser um princípio de assentimento como o rosnar do cachorro prestes a morder. Getúlio tornou a fazer um apelo:
– Vamos, apertem-se as mãos! O que passou, passou. Os dois anciãos levantaram-se com certa má vontade, aproximaram-se um do outro com passos arrastados e lentos e, sem se olharem cara a cara, trocaram o simulacro dum aperto de mãos. Getúlio então abraçou-os a ambos, agradeceu-lhes e felicitou-os pelo gesto, em seu nome e no de seu pai.
Seguiu-se um momento de constrangido silêncio em que nenhum dos dois adversários crônicos parecia querer ser o primeiro a dirigir a palavra ao outro. Por fim o Cel. Campolargo, fazendo um esforço sobre si mesmo, olhou enviesado para Xisto e murmurou:
– Como vai a sua patroa?
Apanhado de surpresa, pois havia mais de sessenta anos que não trocava uma palavra sequer com aquele Campolargo, Xisto ficou meio estonteado, como se tivesse sido abruptamente agredido pelo outro. Mas, recompondo-se, respondeu automaticamente:
– Bem. E a sua?
– Ué... morreu o ano passado. Não sabia? Benjamim encabulou. Tinha esquecido o óbito por completo.
– Desculpe! Meus pêsames. Getúlio Vargas interveio:
– Bom, vamos agora ao “tratado de paz”. Acho necessário, indispensável mesmo, que mandemos publicar não só no jornal local, como também no Correio do Povo, no Diário do Interior de Santa Maria e no Correio do Sul de Bagé uma declaração conjunta, assinada por ambos os amigos, explicando ao eleitorado do Rio Grande o motivo e o sentido desta reconciliação. – Levou a mão ao bolso interno do casaco. – Tenho aqui um manifesto já preparado. Vou ler para ver se os amigos estão de acordo com os seus termos ...

XXIV
Momentos depois os dois velhos estavam em suas respectivas casas. Vacariano refletia, desapontado: “Acho que deixei me embrulhar por aquele deputadinho de borra”. Deu à família reunida para ouvi-lo a sua versão do encontro. Afirmou que tinha relutado muito, imposto condições, deixado bem claro que aquilo “não era casamento”, e que ele continuava a ser federalista, corno sempre.
Benjamim Campolargo não estava de todo descontente com o acordo que firmara. Getúlio Vargas bem podia ser o homem já escolhido pelo Dr. Borges de Medeiros para substituí-lo no governo do Estado. Talvez ele, Benjamim, tivesse acabado de atender a um pedido do futuro presidente do Rio Grande do Sul. Em casa também mentiu, dando a sua versão do fato. Ao fim do relato disse: “Me tragam álcool para eu me desinfetar. Toquei a mão dum Vacariano. Dizem que falta de vergonha é doença contagiosa”.
Pouco mais disse pelo resto de sua vida, que foi de apenas algumas horas, ^aquele mesmo dia teve um edema agudo de pulmão e faleceu ao anoitecer. Xisto, que logo após a reunião se havia retirado para a estância, morreu menos de uma semana mais tarde, com o ventre rasgado pela cornada dum boi xucro que seu lenço vermelho provocara. Antares entrou assim no seu Eoceno político.
Vacarianos e Campolargos – honrando o tratado de paz – trocaram-se condolências e custosas coroas de flores. Tibério fe ninguém nunca ficou sabendo ao certo por que o velho Xisto dera ao seu primogênito o nome dum imperador romano de tão equívoca fama) assumiu a chefia da família. Não houve problemas de inventário. Não apareceu nenhum advogado cabresteando filhos ou filhas naturais do velho Xisto, embora os houvesse às pencas.
Quanto a Zózimo, o único descendente macho do falecido Benjamim por linha reta, era um homem sem nenhuma vocação para a liderança. Tinha terminado o curso gi-nasial e feito dois anos de Direito. Gostava de ler, era meio indolente – homem de boa paz. Ficou desconcertado quando se viu feito patriarca do clã dos Campolargos. Respondeu a essa situação com eólicas intestinais que duraram uma semana. Por sorte ou desgraça sua – e neste particular as opiniões em Antares dividiam-se – sua mulher Quitéria, uma Campolargo tanto por parte de pai como de mãe, era uma criatura enérgica e inteligente, senhora de razoáveis leituras, e até duma certa astúcia política, de maneira que, depois da morte do velho Benjamim, embora Zózimo empunhasse, sem o menor garbo, o cetro de patriarca, D. Quita – como ela gostava de ser chamada, pois detestava, por antigo, o nome avoengo que recebera em batismo – passara a ser a “eminência parda”, o “poder por trás do trono”.
Eram bastante cordiais suas relações com a mulher de Tibério Vacariano, D. Briolanja, conhecida na intimidade como Lanja – outra que também não gostava do próprio nome de sabor arcaico. Nunca haviam tido nenhum atrito. Visitavam-se. Estimavam-se até. Trocavam-se receitas de doces, bolos e tricô. Lanja era o tipo da dona de casa, ocupada e preocupada com os filhos, os netos e os deveres domésticos, isso para não falar na sua devoção ao marido. Pode-se afirmar que as boas relações humanas entre essas duas damas contribuíram, mais que qualquer outro fator, para a consolidação da paz entre Campolargos e Vacarianos.

XXV
Quando em novembro de 1926 chegou a Antares a notícia de que Getúlio Vargas havia sido feito Ministro da Fazenda do gabinete de Washington Luís, que sucedera Artur Bernardes na presidência da República, Tibério Vacariano sorriu e, como se estivesse falando dum foguete, disse a um amigo: “Lá se foi o Baixinho! Vai subir muito alto antes de estourar”.
Não se enganava. Getúlio Vargas foi eleito presidente de seu próprio Estado quando Borges de Medeiros chegou ao termo de seu quinto mandato. Graças ao seu espírito conciliatório e à sua habilidade política, conseguiu o novo governante criar no Rio Grande um tão ameno clima político, que tornou possível a aliança de libertadores com republicanos numa Frente Única que apoiou a candidatura de Vargas à presidência da República, resultante duma desavença entre os políticos de São Paulo e os de Minas Gerais – pois estes não aceitavam o candidato que Washington Luís havia indicado intransigentemente para substituí-lo.
Consumada a Aliança Liberal em todo o Brasil, maragatos e pica-paus, cerrando fileiras no Rio Grande do Sul, de braços dados, Tibério Vacariano exclamou: “Esse Getú-lio nasceu mesmo com o rabo virado pra Lua!” E atirou-se com entusiasmo à propaganda eleitoral do “homenzinho de São Bor ja”. (“Que diria o falecido Xisto se me visse trabalhando pela candidatura dum republicano?”)
No dia das eleições nacionais ajudou os pica-paus a falsificar atas, fazendo todos os defuntos do cemitério local votar no seu candidato. Andava de mesa eleitoral em mesa eleitoral, oferecendo sugestões no sentido de aumentar fraudulentamente o número de votos favoráveis a Getúlio Vargas. (“Imaginem eu, um maragato, querendo ensinar o Padre-Nosso ao vigário”, brincava ele com os republicanos, mestres em fraudes daquela espécie.) Os fiscais do candidato oficial, em geral funcionários públicos federais que exerciam essa função a contragosto, faziam vista grossa a todas essas bandalheiras.

XXVI
Quando em 1930 o Congresso Nacional proclamou a vitória eleitoral do candidato de Washington Luís, Tibério Vacariano berrou na praça de Antares-. “Fomos esbulhados! Esses ladrões só nos podiam vencer em eleições fraudulentas! Agora só há um caminho: a revolução!”
E aqueles meses durante os quais os jornais falavam com insistência duma “arrancada” das forças do Rio Grande do Sul para derrubar o autocrata que ousava impor à nação um candidato próprio – foram tempos de impaciência, tanto para Campolargos como para Vacarianos, cavalos de guerra que mordiam o freio e escarvavam o chão. indoceis, e só não se precipitavam em épico galope rumo da capital federal porque suas rédeas estavam em mãos indecisas. “No Rio e em São Paulo já fazem troça de nós. Dizem que somos parlapatões, que a nossa decantada bravura é pura farofa!”
Zózimo Campolargo, esse parecia já disposto a aceitar o fato consumado. De resto, o Dr. Borges de Medeiros, chefe de seu partido, não lhe parecia nada entusiasmado com a idéia duma subversão da ordem. E Zózimo assim se deixou ficar na sua vidoca, lendo lenta e interminavelmente os jornais, indo de vez em quando ao cinema (gostava especialmente dos filmes de cow-boys), tomando o seu chi-marrão habitual e relendo romances de Camilo Castelo Branco, Machado de Assis e Eça de Queiroz.
Tibério, porém, não se conteve. Embarcou para Porto Alegre, confabulou com o próprio Getúlio Vargas, achou-o vago, ambíguo e ficou irritado: “Mas como é o negócio, Presidente? Vamos ou não vamos?” O Homem sorriu: “Devagar com o andor, coronel”. Tibério voltou para Antares decepcionado. Depositava agora as suas esperanças bélicas em Oswaldo Aranha, figura fascinante que lhe parecia mais gauchamente afoito que o precavido e manhoso político de São Borja.
Em princípios de outubro daquele ano, quando lhes chegou finalmente a esperada senha telegràfica (“O que é que há?”) Tibério tinha já organizado a sua tropa. E alegrava-lhe o coração ver entre seus soldados mais lenços vermelhos do que brancos.
Um dia lhe chegou a ordem de marchar. E uma das maiores decepções de sua vida foi que a batalha campal de Itararé – que poderia ter sido uma das maiores da História do Brasil, não chegou a travar-se.
Havia, porém, um Vacariano entre os membros da Legião Bento Gonçalves que, depois da vitória da revolução, amarraram seus cavalos no obelisco da Av. Rio Branco. Como observou alguém, não bastara aos gaúchos derrubar o governo federal: era preciso também, numa afirmação de machismo guasca, ridicularizar aquele símbolo fálico da cidade São Sebastião do Rio de Janeiro.

XXVII
Zózimo Campolargo seguira também rumo de Itararé com o Corpo Provisório de Antares, comandado por Tibério Vacariano. Não levava a sério o seu uniforme caqui nem as suas divisas de major. Não se considerava diminuído e, muito menos, engrandecido por servir sob as ordens dum Vacariano. Tudo aquilo lhe era indiferente. E que muito do que nele parecia pura apatia era um pouco ceticismo e um certo horror à teatralidade.
Em 1932, quando os paulistas fizeram a sua revolução, exigindo uma Constituição nova para o país e eleições presidenciais – pois lhes parecia que o “governo provisório” de Vargas estava ficando crônico – Tibério Vacariano de novo formou seus batalhões, “para defender a legalidade”, segundo ele – “para forrar o poncho”, murmuravam à so-capa seus desafetos, que conheciam todas as tramóias que o filho de Xisto fazia com as suas famosas “requisições de guerra”.
Zózimo Campolargo, entretanto, simpatizava com a revolução constitucionalista. Nada, porém, podia – nem mesmo queria – fazer de concreto a favor dela. Limitava-se a escutar às escondidas o noticiário sobre a guerra civil divulgado pelas estações de rádio dos revoltosos.
Entre os muitos bens e obrigações que lhe haviam cabido por morte do pai, herdara também, embora a contragosto, a fidelidade política que o velho Benjamim votava ao Dr. Borges de Medeiros, e da qual ele, Zózimo, participava duma maneira apenas intelectual, morna e distante. Quando se divulgou a notícia de que o velho chefe republicano, num gesto simbólico mas dum grande sentido moral, havia “ido para a coxilha” de armas na mão, cumprindo um compromisso assumido com os revolucionários paulistas – Zózimo Campolargo, que gostava de imaginar-se um homem liberto de mitos e símbolos – julgou-se no dever de juntar-se ao ídolo político de seu falecido pai. Preparou-se para isso, mas com tão pouco entusiasmo e tamanho vagar, que na véspera de deixar Antares para ir ao encontro do pequeno grupo que acompanhava o Dr. Borges de Medeiros, chegou-lhe a notícia de que o histórico varão da propaganda republicana havia sido feito prisioneiro por tropas fiéis a Getúlio Vargas, depois do combate de Cerro Alegre.
Como na cidade era bastante conhecida a sua posição ante aquela guerra civil, Zózimo Campolargo não hesitou em cruzar o rio, buscando asilo na Argentina. D. Quitéria, porém, permaneceu em Antares, para tomar conta da família e de seus negócios, e de vez em quando ia a Buenos Aires visitar o marido. Tibério Vacariano fazia vista grossa a essas idas e vindas. Gostava dos Campolargos. Dizia aos íntimos que nesse casal era a mulher quem carregava os cojones. Zózimo voltou para Antares em princípios de 1933. Quando ele e Tibério se encontraram na rua pela primeira vez, apertaram-se as mãos, abraçaram-se e o Vacariano, com um risinho entre sarcástico e afetuoso, perguntou:
– Ué? Onde andou metido todo esse tempo? Na estância?

XXVIII
Quando em 1934 o Brasil adotou uma nova Constituição e Getúlio Vargas foi eleito Presidente da República pela Assembléia Constituinte, por um período de quatro anos, Tibério Vacariano fez sua primeira visita ao Rio de Janeiro. Teve um rápido colóquio com o Presidente, que o recebeu com afabilidade, no Palácio do Catete, declarandc-lhe: “O senhor, coronel, é o meu homem de confiança em Antares”. Tibério aproveitou a oportunidade para conseguir com o chefe da nação bons empregos em repartições públicas federais para alguns de seus parentes e amigos. Fez esses pedidos como quem quer dar a entender que ele, Vacariano, não queria nada para si mesmo, pois “Deus me livre, Prendente, de abusar duma amizade...”.
Passou um mês na capital federal, conheceu-lhe a vida noturna, fez relações, insinuou-se nos bastidores da política e ficou estonteado quando teve uma visão do mundo dos negócios e especialmente do submundo das negociatas. Guardou a impressão de que o Rio era como uma daquelas localidades do Far West americano – que ele conhecia de fitas de cinema – nos tempos da corrida para o ouro. Na capital do Brasil havia ouro à flor do solo. Os primeiros faiscadores – vindos de todos os quadrantes do país – mexiam no cascalho das repartições públicas e principalmente no dos ministérios. Alguns haviam já encontrado veios riquíssimos. Era uma luta de apetites, choques de interesses, um torneio de prestígio, um jogo de “pistolões”. Muitos dos capitães e soldados da revolução que levara Vargas ao poder, cobravam agora o seu soldo de guerra. Um amigo de Tibério, um gauchão cínico, que ganhara um lucrativo cartório, lhe disse um dia, comentando aquele “garimpo” alucinado: “Para conseguir o que quer, Tibé, essa gente é capaz de tudo, até de usar meios decentes e legais”.
Tibério Vacariano voltou para casa com a cabeça cheia de planos efervescentes. Concluíra que havia chegado a sua hora de “tirar o pé do lodo”, isto é, livrar-se por uns tempos da vidinha pacata, segura mas medíocre e monótona que levava em Antares. Afinal de contas um homem só vive uma vez. Tinha já entrado na quadra dos quarenta, sentia-se em pleno meio-dia da vida. O Rio de Janeiro fervia permanentemente de fêmeas jovens e apetitosas, algumas delas fáceis. Pela primeira vez Tibério havia atentado na beleza do cenário da grande metrópole. “Ota cidade linda!” – costumava dizer aos amigos.
Em Antares encontrou tantos problemas e tarefas ato-caiados à sua espera, que se deixou envolver por eles e pela rotina, e acabou guardando seus projetos cariocas em alguma recôndita gaveta de seu ser. Algumas vezes, porém, quando estava em cima dum cavalo, na estância, parando rodeio ou simplesmente cruzando uma invernada, passavam-lhe pelo campo da memória imagens fugidias como essas que a gente mal vê pela janela dum trem em movimento. O Corcovado... a pedra da Gávea... ondas batendo na pedra do Arpoador... as areias de Copacabana... caras, coxas, seios, pernas, nádegas de mulheres, sob pára-sóis coloridos... peles reluzentes de óleo de coco... e o sol e o mar e as montanhas... “Pota que me pariu! Que é que eu estou fazendo aqui neste fim de mundo, fedendo a creolina e levando esta vida de baguai?”
Nessas ocasiões Tibé Vacariano entregava-se a algo que tinha todo o jeito duma saudade. Precisava voltar àquela “California”!

XXIX
E voltou mesmo, em 1938, depois de proclamado o Estado Novo, que lhe pareceu um “golpe genial do Baixinho” para continuar no poder sem os trambolhos do Congresso e dos partidos políticos. Antes de embarcar, conversou longamente com Zózimo, que o escutou num silêncio entre tristonho e constrangido:
– Precisas compreender, homem, que os tempos mudaram. – E, num tom quase de colegial lendo um editorial de jornal, acrescentou: – É preciso reformar as velhas estruturas chamadas democráticas liberais. O Getúlio compreendeu a coisa. Somos um país subdesenvolvido de analfabetos e indolentes. É indispensável unificar e organizar a nação com punho de ferro. Vê o caso da Itália... O Mussolini acabou com a anarquia, implantando a ordem e o respeito à autoridade, e os trens já partem e chegam dentro do horário.
– Não sabia que tinhas aderido ao fascismo – sorriu Zózimo.
– Qual fascismo qual nada! Sou um realista e como tal simpatizo com os regimes autoritários. Sempre simpatizei, tu sabes.
– Mesmo no tempo do Dr. Borges de Medeiros?
– Ó homem, estamos na era do avião e do rádio e tu me vens com o borgismo! Naquela época eu era pouco mais que um rapazola inexperiente. E se me meti na revolução de ‘23 foi só para seguir o meu velho pai. Mas não desconverses. O Hitler reergueu a Alemanha, aboliu todos os partidos (menos o dele, naturalmente), botou pra fora do país os judeus que, como se sabe, são os culpados dessas guerras e intrigas políticas e financeiras internacionais, homens gananciosos e sem pátria.
– Também não sabia que tinhas virado racista.
– Racista eu? Ora, não sejas bobo. Sabes como trato a minha negrada. Eles me adoram. Mamei nos peitos duma negra-mina. Me criei no meio de moleques pretos retintos. Quando leio esses casos de ódio racial nos Estados Unidos, comento a coisa com a Lanja e lhe digo que no Brasil a gente, graças a Deus, não tem esses problemas, pois aqui o negro conhece o seu lugar.
Logo ao chegar ao Rio, em maio de 1938, a primeira coisa que Tibério fez foi visitar Getúlio Vargas e reafirmar-lhe a sua solidariedade pessoal e política. Nessa ocasião o ditador lhe disse: “Pois me alegro de ver que o amigo compreendeu o espírito do Estado Novo, que no fundo é puro castilhismo”. Tibério, que havia herdado do pai uma antipatia invencível pela figura de Júlio de Castühos e por suas idéias políticas, limitou-se a dizer: “Mas é claro, Presidente, só não vê isso quem não quer!”
Naquele mesmo ano o chefe do clã dos Vacarianos comprou um apartamento na Av. Atlântica com o auxílio dum empréstimo conseguido rapidamente no Banco do Brasil, graças a um cartão com umas palavrinhas do Homem. Pretendia dali por diante passar uma parte do ano no Rio e a outra em Antares, evitando assim – explicava – os invernos úmidos das barrancas do Uruguai, que já começava a sentir nos ossos.

XXX
Em 1940 estava já funcionando a máquina que ele montara para ganhar dinheiro. Associado a um primo seu e amigo íntimo, formado em Direito, Tibério abrira um escritório de advocacia administrativa e começara a vender a mais curiosamente abstrata das mercadorias: influência. Era um negócio em que não empatava nenhum capital em dinheiro. Jogava com o seu prestígio pessoal, suas boas relações com indivíduos colocados em postos-chave na engrenagem governamental. Sabia-se que ele tinha trânsito livre no Catete e em vários ministérios, e isso lhe valia boas comissões pagas com muito boa vontade por quem quer que estivesse interessado em movimentar requerimentos encalhados no mar de sargaço das repartições públicas.
Esquentado, autoritário – a princípio cometeu o erro de empregar nessas gestões o que ele chamava de “sistema gaúcho” e ir levando tudo e todos por diante “a grito no mais...”. O primo foi franco com ele: “Olha, Tibé, não te esqueças que não estás na tua estância onde mandas e desmandas, gritas com os teus peões e eles baixam a cabeça e te obedecem. Esse negócio de bancar o valentão não dá resultado aqui no Rio. Os nortistas, os nordestinos e os mineiros são, sem dúvida alguma, tão machos como nós e nos levam a vantagem de serem muito mais espertos e habilidosos. Ou tu mudas de tática ou acabamos dando com os burros nágua”.
Tibério não gostou da crítica mas procurou aproveitar a lição. Mudou de método. Aos poucos aprendeu a pacienta, a blandícia, a sinuosidade. Recalcou suas cargas de cavalaria ancestrais. Pode-se até dizer que no Rio completou 0 seu aprendizado de pedestre. Não esqueceu, entretanto, flue de vez em quando, em casos extremos, quando todos os outros recursos se esgotam, dava bom resultado segurar “o sacripanta” pelas lapelas, apertá-lo contra uma parede e rosnar: “Te quebro a cara, cafajeste!” Gestos violentos como esse, porém, se foram tornando cada vez mais raros.
Aos quarenta e dois anos, era Tibério Vacariano um homem alto e corpulento, de cabeça leonina, cara larga dum moreno claro, olhos meio enviesados e escuros, denunciando antepassados bugres, denúncia essa confirmada pelos malares um pouco salientes e pela basta cabeleira negra e lisa. Trajava com essa “elegância da fronteira”, de que era exemplo típico o Dr. José Antônio Flores da Cunha – camisas e gravatas de seda, ternos de linho branco, chapéu panama. Era um bom contador de “causos”. Suas anedotas e relatos picarescos, temperados aqui e ali com castelhanismos oportunos, faziam sucesso, contribuindo para que o filho do falecido Xisto Vacariano se tornasse uma figura popular em certos círculos sociais do Rio de Janeiro, onde era considerado um “boa bola”. Tinha fama de generoso, pois as pessoas não chegavam a perceber bem que suas dádivas eram mais verbais que concretas. Tibério sabia administrar muito bem a sua “generosidade”, exercendo-a apenas com pessoas que lhe estavam sendo ou pudessem um dia vir a ser-lhe úteis.
Era visto com freqüência na madrugada dos cassinos, na companhia de belas mulheres. Jogava roleta com alguma sorte. Teve uma amante húngara, que acabou abandonando “por cara”.
Além da advocacia administrativa, ganhava dinheiro em transações imobiliárias e ocasionalmente no câmbio negro. A Segunda Guerra Mundial proporcionou-lhe oportunidades para bons negócios, uns lícitos, outros ilícitos. Habituara-se a viver à sombra do Banco do Brasil, do qual conseguia empréstimos para amigos e sócios, e para si mesmo. E, como tantos de seus pares, já possuía, num banco de Zurique, uma conta corrente numerada, cada vez mais gorda em dólares.
Em 1931 entrara no que considerava um verdadeiro “negócio da China”. Estabeleceu uma “fábrica” de seda nos arredores de Antares. Constava ela apenas dum grande barracão de madeira às margens do Uruguai, sem nenhuma máquina, apenas com mesas e prateleiras, e uma porta que dava para o rio e três na fachada. À noite vinham da margem argentina barcas carregadas de peças de seda, de origem vária, e que eram levadas para a “fábrica”, onde uns cinco ou seis empregados as enrolavam em rótulos Seda Flor da Fronteira – Indústria Nacional e depois as expediam para muitas partes do Estado e para Santa Catarina e Paraná. Os guardas aduaneiros protegiam esse contrabando. Eram “gente do Tibé”, todos bem remunerados pelo caudilho.
Ano após ano, mal entrava o mês de novembro, Tibério punha-se a caminho do Rio Grande do Sul, de Antares e das suas terras, onde tornava a ser o estancieiro, o patrão, o homem que manda, desmanda e grita. Aliviava assim o peito e a cabeça de todos os impropérios e ímpetos agressivos reprimidos durante seus meses de “atividade civilizada” no Rio de Janeiro, no convívio com gente do asfalto e da areia da praia.
De quando em vez, durante o verão, ia à cidade para conversar com seus amigos e prepostos. O prefeito de Antares era um primo-irmão seu, pois o interventor federal não nomeava ninguém para cargos públicos dentro daquele município sem antes consultar o seu cacique.
Quando, em fins de abril ou princípios de maio de cada ano, embarcava de volta à capital federal, Tibério Va-cariano, ao vestir a sua roupa de linho ou tropical, enver-gava também a sua “personalidade carioca”. Já se habituara a esse tipo de vida, e achava até um sabor esquisito nessa duplicidade. D. Briolanja, que detestava o Rio de Janeiro com um provincianismo talvez animado por uma centelha de orgulho farroupilha, via com resignada apreensão as transformações por que passava o marido. Nada dizia, porém. Tinha o hábito, que mais parecia um vício, do silêncio. Voltava-se inteira para os filhos e os sobrinhos e para as suas atividades de dona de casa. Sabia também que, se interpelasse o marido por causa daquela sua vida de cassinos e aventuras eróticas (recebia às vezes cartas anônimas) ele lhe perguntaria, como já fizera uma vez: “Por acaso está te faltando alguma coisa, Lanja?”

XXXI
Quando em 1943 um grupo de intelectuais e políticos mineiros publicou um manifesto pedindo a volta do Brasil ao regime democrático, Tibério Vacariano interpretou isso como a primeira fissura visível no baluarte do Estado Novo, cujos fundamentos – sentia ele – estavam sendo aos poucos solapados pelo trabalho subterrâneo de seus inimigos. A própria História – como lhe havia dito um amigo de boas letras – conspirava contra o regime getulista, cujas contradições eram demasiado visíveis e haviam ficado ainda mais gritantes quando, no ano seguinte, o Brasil mandou uma Força Expedicionária à Itália, para lutar ao lado dos americanos, em nome da democracia, contra o totalitarismo hitlerista, enquanto Getúlio Vargas mantinha ern casa uma versão paternalista de fascismo.
Foi com certa apreensão – e já pensando na sua retirada, caso houvesse uma radical mudança de ventos políticos – que Tibério Vacariano viu entrar o ano de 1945. Em janeiro leu nos jornais a notícia de que se havia reunido o Primeiro Congresso de Escritores Brasileiros, do qual resultará um memorial em que se reclamava publicamente a volta do país ao regime democrático. Tibério era um inveterado ledor de jornais e de vez em quando lia livros – de preferência biografias e crônicas políticas – mas em seu espírito, por alguma razão misteriosa, jamais tinha presente com clareza a relação existente entre livro e autor, como a de causa e efeito. Quando se referia a alguma pessoa incor-rigivelmente sonhadora, destituída de senso comum, costumava dizer: “E um poeta!” Estava já convencido de que os escritores em sua maioria inclinavam-se politicamente para a esquerda, sendo portanto “uns chatos”. Pois agora até esses escrevinhadores – que nem sequer constituíam uma classe pois não tinham sindicato – haviam deitado manifesto, reclamando não só completa liberdade de expressão como também eleições presidenciais por sufrágio universal e com voto secreto!
O que deu a Tibério uma idéia de como o Departamento de Imprensa e Propaganda – o famigerado D.I.P. – começara a “dormir nas palhas” foi o ter ele permitido que os jornais publicassem uma entrevista com José Américo de Almeida, e na qual o amigo do falecido João Pessoa se manifestava claramente favorável à realização de eleições presidenciais e declarava, com todas as letras, que nesse pleito dois homens havia no Brasil que não podiam ser candidatos: ele próprio e o Dr. Getúlio Vargas.
O ditador, que fazia muito andava silencioso, marom-bando, concedeu à imprensa uma entrevista coletiva na qual procurou justificar a sua discutida Constituição de ‘37, da autoria do Prof. Francisco Campos. Quando lhe perguntaram se pretendia ser candidato à reeleição, desconversou.
Falava-se, pois, e escrevia-se livremente sobre a “rede-mocratização do Brasil”. Os jornais aos quais o D.I.P. dera um dedinho de liberdade tomavam toda a mão, alguns já exigiam o braço e cedo a imprensa acabaria agarrando o corpo inteiro...
Os universitários, que tinham fundado a União Brasileira de Estudantes, realizaram no Rio um agitado comício popular pró-democracia. Seus colegas no Recife fizeram idênticas demonstrações mas a polícia lá reagira contra eles com grande violência, matando um estudante e um operário.

XXXII
Em abril de 1945 o governo de Getúlio Vargas concedeu anistia a todos os presos políticos do país, inclusive ao chefe comunista Luís Carlos Prestes, encarcerado havia quase nove anos.
As eleições presidenciais haviam sido marcadas oficialmente para o dia 2 de dezembro daquele mesmo ano. Um dia um amigo “liberalòide” de Tibério encontrou-o no saguão de um dos ministérios e saudou-o de longe com um gesto de mão e estas palavras: “A procissão está na rua, meu velho!” Tibério sacudiu a cabeça, num assentimento, e ficou pensando: “Que a procissão está na rua eu sei. Só não sei ainda que santo, que irmandade vou seguir”.
Um dos candidatos à presidência da nação já público e notório era o Brig.ro Eduardo Gomes, com o qual Tibério antipatizava por causa de sua reputação de homem impoluto, espécie de vestal do Exército e da Democracia. (A palavra democracia começava a fazer-lhe mal ao estômago.) Um novo partido, a União Democrática Nacional, formado principalmente por elementos antigetulistas, havia decidido adotar oficialmente a candidatura do Brigadeiro. Um segundo candidato surgira na pessoa do Gen. Eurico Gaspar Dutra, Ministro da Guerra do governo de Getúlio Vargas, com cujo beneplácito – já publicamente anunciado pelo próprio ditador – ele contava. (Tibério via nesse apoio um gesto de diabólica habilidade política, ao mesmo tempo de sutil humorismo e, bem no fundo, de “vingança”, como se o Baixinho pensasse assim: “Ah! Me acham ruim? Pois elejam o Dutra para ver o que é bom”.)
Para Tibério o Gen. Dutra “não cheirava nem fedia”. Era sem dúvida um cidadão honrado. Mas quantos milhões de homens decentes existiriam no território nacional mas sem competência para dirigir a nação? Outro aspecto da questão sucessória que impressionava o Cel. Vacariano era o fato de que o salafrário do Getúlio – e aqui o adjetivo salafrário tinha uma conotação positiva e afetuosa – contava ainda com a estima e a admiração de grande parte do povo brasileiro.
Um dia teve uma audiência de cinco minutos com o ditador e. depois de tratar do assunto que o levara até ele, perguntou-lhe de chofre: “Presidente, por que o senhor não se candidata em dezembro? As massas estão do seu lado. A sua eleição seria uma barbada”. O são-borjense mostrou os belos dentes no seu já lendário sorriso despistador e murmurou: “Quem sabe, coronel?” E em seguida como que se sumiu, envolto na fumaça azulada de seu longo charuto. E não tocou mais no assunto.
A Grande Guerra havia terminado. Hitler estava morto e o nazismo, aniquilado. A Força Expedicionária Brasileira em breve começaria a voltar à pátria. O Partido Comunista Brasileiro agora funcionava legalmente e realizara já um grande comício Os estudantes continuavam politicamente ativos. Os mineiros ainda conspiravam. A candidatura do Gen. Dutra contava com o apoio oficial do Partido Social Democrático, formado de elementos conservadores, forças que até então, dum modo ou de outro, haviam colaborado com Getúlio Vargas em todo o país, e que tinham grande força nas pequenas cidades das zonas rurais.
Talvez o mais certo – concluiu Tibério, pensando na sabedoria dum ditado gaúcho – seria apostar no “cavalo do comissário”, que nunca perde carreira.
Em agosto daquele ano um amigo seu, getulista dos quatro costados, lhe disse:
– Coronel, acabamos de fundar o Partido Trabalhista Brasileiro. Vai ser o mais poderoso do Brasil, o partido das massas, do operariado, do homem comum, do povo. Seja um dos nossos! O P.T.B. vai lutar contra essa idéia desastrosa das eleições presidenciais em dezembro. Queremos uma Constituinte com Getúlio ainda no poder.
– Mas esse é o programa do Partido Comunista!
– E daí? Se a idéia é boa, por que não apoiá-la?
– Com comunistas não vou nem pro Céu.
– Mas quem lhe disse que comunista entra no Céu?
– Queres que te fale com franqueza? As coisas estão de tal modo confusas que já não sei mais a quantas andamos. Depois que li nos jornais que o governo dos Estados Unidos permitiu que as tropas russas chegassem a Berlim primeiro que as deles, e depois que vi numa fotografia soldados soviéticos e americanos confraternizando... bom, não duvido de mais nada. Se me disserem que Deus Nosso Senhor deu uma guinada para a esquerda, eu acredito...
Tibério Vacariano via agora, para onde quer que se voltasse, cartazes e letreiros nas paredes e muros: Queremos Getúlio! – Abaixo as Eleições de Dezembro! – Constituinte com Getúlio. Os termos queremismo e queremista pareciam ter entrado definitivamente para o dicionário político brasileiro.
Por outro lado o Brigadeiro empolgava as chamadas elites, atraía os elementos intelectuais da nação, ao mesmo tempo que sua figura física e sua auréola de bom filho e bom católico fascinava mulheres de todas as idades. A cara do Gen. Dutra – achava Tibério – não ajudava o homem eleitoralmente. Mas um dia, por acaso, entreouviu um certo Dr. Fernando Carneiro, homem de aguda inteligência, dizer numa roda: “Ganha o Gen. Dutra. É que o eleitor brasileiro tem uma curiosa confiança e até uma certa predileção afetuosa pelos homens fisicamente feios”. Quanto ao Baixinho, continuava calado, e muitos imaginavam que ele tinha escondida na manga uma carta – um ás – que jogaria no momento oportuno.
Tibério Vacariano tratou de preparar cuidadosamente a sua retirada. Fazia já alguns anos que tinha fechado a sua “fábrica de seda” às margens do Rio Uruguai. Não queimou propriamente pontes, mas queimou papéis. Quando menino aprendera, em teatros mambembes e circos de cavalinhos, que existem principalmente dois tipos de mágicos: os sujos e os limpos. Os primeiros trabalhavam tão mal, que seus truques ficavam visíveis e risíveis, e os pobres coitados eram vaiados pelo público. Os segundos tinham tal habilidade, tal destreza, que as suas prestidigita-ções pareciam verdadeiros milagres. Tibério gabava-se de ser um “mágico limpo”. Procurava fazer as suas trapaças sem ficar com o rabo preso na ratoeira. Por princípio jamais escrevia cartas ou mesmo bilhetes. Negava-se terminante-mente a assinar compromissos escritos, até mesmo os rigorosamente legais. Com ele era tudo “no papo”. Mesmo assim, encontrou documentos que precisava destruir, por perigosos.
Quando em setembro daquele ano de 1945 voltou para Antares, ao vê-lo chegar na maciota, antes do tempo, os maldizentes murmuraram: “O navio deve estar mesmo afundando, pois os ratos já começaram a abandoná-lo...”.

XXXIII
Tibério Vacariano encontrava-se ainda na estância em outubro de 1945 quando ouviu pelo rádio a notícia de que o Exército havia forçado Getúlio Vargas a renunciar. Escutou também, e com um risinho sardònico – murmurando de quando em quando: “Pois sim...” – “Essa eu não engulo.” – “Agora é que vens nos contar isso?” – a leitura da proclamação em que o Gen. Goes Monteiro justificava o golpe de Estado, assumindo plena responsabilidade por ele.
No dia seguinte saiu para o campo, com “uma coisa no peito”. Sentia pena do Dr. Getúlio. O baque devia ter sido duro para o seu amor-próprio...
Um sobrinho seu veio da cidade para lhe comunicar que o ex-ditador já se encontrava no município de São Bor-ja, na sua estância do Itu.
– O senhor vai visitá-lo? – perguntou o rapaz. Tibério lançou-lhe um olhar enviesado:
– Não sei ainda.
Estava em dúvida. Sentia que a sua obrigação era ir ver o homem a quem tantos favores e atenções devia. Concluiu, entretanto, que numa conjuntura como aquela, o melhor era fazer como certos animais na hora do perigo: fingir de morto. Justificava-se perante si mesmo e os outros: “O Dr. Getúlio deve estar cercado de queremistas trabalhistas e sevandijas. Se eu visito o Homem agora, todo mundo vai pensar que isso é um ato de solidariedade política. Nessa eu não caio”. Deixou-se ficar em suas terras.
Voltou para Antares em meados de novembro e promoveu uma reunião do diretório local do Partido Social Democrático, do qual era presidente. Encontrou um dia Zózimo Campolargo na Praça da República, abraçaram-se, trocaram-se nacos de fumo em rama, prepararam os seus palhieiros e sentaram-se num banco, à sombra dum platano, para conversar e fumar.
– Sempre adversários, hem, Zózimo?
– Pois é. Me fizeram presidente do diretório da U.D.N. Coisas da Quita, que continua uma grande politiqueira... E por falar em política, já foste visitar o Dr. Getúlio?
– Não. Por que perguntas?
– Ele não era teu amigo?
– Era e é. Mas eu separo o homem do político. São duas coisas diferentes.
– Desde quando? – sorriu Zózimo. – Desde que ele caiu?
– Ora, vai-te à merda!
– Dela sairemos se o Brigadeiro for eleito.
– Mas não vai ser. Ganha o Gen. Dutra. Aposto um Poleango. (Era assim que Tibério pronunciava, como muitos outros gaúchos, Polled Angus.)
– Então é por isso que estás no P.S.D., não? Ou queres me fazer crer que é por convicções políticas?
– Falar em convicções políticas nesta altura dos acontecimentos é a maior bobagem deste mundo. Em matéria de idéias a tua U.D.N. e o meu P.S.D. são cavalos da mesma raça, filhos da mesma égua e do mesmo garanhão, com o mesmo pêlo e as mesmas manhas, só que com nomes diferentes. E ou não é? Confessa.
Zózimo sacudiu negativamente a cabeça.
– A U.D.N. é vinho de outra pipa – replicou. – O P.S.D. está minado de getulistas e oportunistas. O Dr. Getúlio está recomendando a seus partidários que votem no Gen. Dutra, mas presta bem atenção, Tibé, ele faz isso sem o menor entusiasmo. E ao mesmo tempo acertou a sua própria candidatura ao Senado e à Câmara federais pelo P.T.B. e pelo P.S.D. E uma duplicidade inédita na nossa vida política, acho.
Tibério, com o cigarro apertado entre os dentes, olhava fixamente para a Matriz, murmurando:
– Ê. O Getúlio nunca fecha as suas portas nem as suas janelas. Pelo menos com tranca. É um feiticeiro.
– Feiticeiro? Não sei. Talvez a feitiçaria dele esteja nas nossas fraquezas, ambições e superstições. Em qualquer caso, as urnas vão ter a última palavra. Acho que o teu amigo está politicamente liquidado.
– Não sei... não sei... até o dia 2 de dezembro muita coisa pode ainda acontecer.
– Estás vendo? Isso é que eu chamo de superstição e fraqueza. No fundo és um queremista!
De súbito, mudando o tom de voz, Tibério Vacariano disse :
– O Pe. Gerôncio me disse que a Matriz anda precisando duns consertos e duma pinturinha.
– O Brasil também, Tibé, o Brasil também.

XXXIV
Quando a eleição do Gen. Eurico Gaspar Dutra foi confirmada pelo Congresso, muitos jornais em todo o país reconheceram que o apoio de Getúlio Vargas havia sido decisivo para essa vitória. O próprio ex-ditador fora eleito por expressivo número de votos não só deputado federal como também senador.
“Eu não me enganava” – refletiu Tibério Vacariano. – “O prestígio do Homem é ainda uma coisa séria. Ele ainda é trunfo no baralho político.” Pediu a um amigo comum que sondasse o Dr. Getúlio para saber como ele receberia uma visita sua. A sondagem foi feita e a resposta veio, clara e curta. O Dr. Getúlio Vargas não o receberia.
Em fins de 1947, Tibério um dia comentou entre amigos que o Gen. Dutra, na sua opinião, havia feito uma coisa certa e outra errada. A certa era ter posto o Partido Comunista Brasileiro fora da lei. A errada, ter proibido os jogos de azar em todo o território nacional. Alguém objetou que o jogo, além de ser uma imoralidade, era a perdição das criaturas. Tibério fitou o moralista com os seus olhinhos malaios e disse: “Olhe, moço, mais desgraça tem acontecido aos homens por causa de mulher do que por causa de jogo. Você então acha que devia haver uma lei proibindo homem de gostar de mulher, e vice-versa?”
Na volta de um de seus invernos cariocas Tibério contou aos amigos que costumavam reunir-se todos os dias às dez da manhã, na Farmácia Imaculada Conceição, de propriedade de um dos genros de Zózimo Campolargo, num grupo de chimarrão conhecido na cidade como “a rodinha da Imaculada”:
– Vocês diziam que havia corrupção no tempo do Getúlio, não é? Pois fiquem sabendo que as negociatas e as roubalheiras continuam neste governo do Gen. Dutra e dizem até que a coisa agora é pior, só que mais escondida. O Presidente, que é um homem de bem, não sabe da missa a metade. Durante a guerra acumulamos reservas em ouro na importância de mais de setecentos milhões de dólares. Já não temos quase mais nada. Gastamos tudo comprando sobras de guerra e outras porcarias que os Estados Unidos nos impingiram.
– Ora, coronel, isso é exagero.
– Exagero qual nada! – vociferou o Vacariano, segurando a cuia como uma granada de mão prestes a ser atirada contra a “cambada de ladrões” que cercava o novo Presidente. – Nunca falta um sem-vergonha filho da mãe disposto a vender a pátria por trinta dinheiros. Nossa situação econômica e financeira é uma calamidade.
Alguém arriscou um resmungo:
– Afinal de contas, coronel, o general foi eleito pelo seu partido.
– Bom, mas com a gente do Brigadeiro a coisa ia ser ainda pior.
Os outros freqüentadores da “rodinha da Imaculada” entreolharam-se significativamente, mas em silêncio. Todos conheciam muito bem o Cel. Tibério Vacariano, flor do patriciado rural de Antares.

XXXV
Quando em 1950 Getúlio Vargas aceitou a sua candidatura à presidência da República, o caso foi debatido às dez de certa manhã pelos tomadores de mate da Farmácia Imaculada Conceição. Disse Zózimo Campolargo:
– Ë uma loucura. O Getúlio perdeu a noção da realidade. Nunca na História do Brasil ou de qualquer outro país, que eu me lembre, um ditador expulso do poder pelo seu próprio exército voltou ao governo eleito pelo povo.
Tibério Vacariano escutou estas palavras sem dizer água, amaciando esquírolas de fumo na palma da mão. Pouco depois, já de crioulo aceso entre os dentes, os olhos entrecerrados, murmurou: “Não sei... não sei... Acho que o Baixinho tem parte com o demônio. O eleitorado trabalhista está aumentando”. Ali mesmo em Antares, às quase três centenas de operários do Frigorífico Pan-Americano somavam-se agora os trabalhadores da Cia. Franco-Brasilei-ra de Lãs, estabelecida na periferia da cidade, fazia dois anos. Havia ainda o pessoal das indústrias menores. Calculava-se que pelo menos noventa por cento desse proletariado em idade eleitoral estava inscrito no P.T.B. e obedeciam todos à chefia dum tal Geminiano Ramos, homem de escassos trinta anos e que, além de ter fama de marxista, usava bi-godões à Stalin. Como o Partido Comunista Brasileiro estivesse fora da lei, Geminiano – operário de folha-corrida policial ainda limpa – infiltrara-se no Partido Trabalhista Que, no dizer de Tibério, era uma espécie de “sala de espera do comunismo”.
A União Democrática Nacional tentava de novo a fortuna nas urnas com o nome do Brig.r° Eduardo Gomes. O Partido Social Democrático, por insistência do Gen. Eurico Dutra, apresentara um candidato eleitoralmente inexpressivo, o Dr. Cristiano Machado, praticamente só conhecido em seu estado natal, Minas Gerais. “Esse inocente vai ser jogado na fogueira!” – profetizou Tibério.
Um dia na “rodinha da Imaculada”, poucas semanas antes da eleição, lançou um desafio geral:
– Aposto dois bois Poleangos com cada um de vocês como o Getúlio ganha a eleição, e de rebenque erguido.
No meio do silêncio que se seguiu, Zózimo Campolargo falou sereno:
– Não sou homem de apostas.
Tibé teve vontade de dizer-. “Não és homem de nada. Um água-morna dominado pela mulher”. Mas engoliu essas palavras com um sorvo quente de chimarrão.


XXXVI
Uma noite, uma semana antes da eleição, da janela de seu palacete, mas invisível para quem estivesse na rua, o patriarca dos Vacarianos assistiu ao último comício de propaganda do P.T.B., que se realizava na Praça da República. Os oradores falaram de dentro do coreto da banda de música. Alto-falantes colocados nos quatro ângulos da praça, ampliavam-lhes as vozes. “Papai” – disse uma das filhas de Tibério – “a praça está preta de gente.” Ele sacudiu a cabeça, num assentimento impaciente: “Estou vendo, menina” – disse. D. Lanja, procurando consolá-lo, murmurou: “É, mas mais da metade dessa gente decerto não vota. São curiosos”.
O marido buscou consolo num palheiro, enquanto ouvia os oradores, “papagaios queremistas” que repetiam as promessas e críticas de seu candidato. Nos seus discursos durante toda a sua campanha presidencial, Getúlio Vargas abstivera-se de atacar diretamente a figura respeitável do Presidente da República, mas dissera horrores dos desastrosos erros da política cambial de seu Ministro da Fazenda, que levava o país à bancarrota. Como Vargas, os oradores daquele comício apontavam os defeitos e injustiças da “democracia liberal capitalista” e falavam até – como tinham mudado os tempos! – em “democracia socialista de trabalhadores”. O povo reagia a essas frases com o mais frenético entusiasmo: gritos, urros, aplausos, vivas e morras.
– Veja você, Lánja – disse Tibério, atirando uma baforada da acre fumaça de seu crioulo em pleno rosto da esposa. – Quem diria que eu ia viver para testemunhar uma cena dessas! Oradores na praça, na frente da minha casa, falando em “democracia socialista” e atacando o capitalismo. Tudo obra do Getúlio! O mal que esse homenzinho tem feito ao Brasil com as suas leis sociais e as demagogias trabalhistas! Está tudo demudado. Meu pai e seus correligionários federalistas nunca conseguiram fazer nesta cidade um miserável comício durante os vinte e cinco anos da ditadura borgista.
Na praça a turba bradava ritmadamente: Ge-tú-lio! Ge-tú-lio! Quando de novo se fez silêncio para que outro orador falasse, Tibério se deu o luxo duma reminiscência em voz alta:
– Uma vez, em 1922, reunimos uns gatos-pingados nesta mesma praça pta fazer propaganda da candidatura do Dr. Assis Brasil, até que um pouco sem entusiasmo, porque meu pai não ia muito com a cara do homem de Pedras Altas. Pois bem. O velho Benjamim mandou seus capangas dissolverem o comício a rabo-de-tatu e facão. Em poucos minutos a praça se esvaziou... Quando dei pela coisa, estava só com meu pai e uns três ou quatro companheiros, de revólveres arrancados, no centro da praça, cercado pelos apaniguados do velho Campolargo. Se não fosse a intervenção do juiz de comarca, na certa eles nos liquidavam, porque eram maioria e nós estávamos dispostos a morrer brigando. No entanto agora essa canalha está aí atacando o regime, com todas as garantias legais. O Getúlio entregou o Brasil pra eles numa bandeja de ouro.
“A vitória será nossa!” – gritava na praça o orador, o industriário Geminiano Ramos. Tibério Vacariano fez um rapido exame de consciência e achou-se culpado. Na realidade, não fizera nada pelo candidato de seu partido. Durante a campanha adotara a técnica do “corpo mole”. Que diabo! Que entusiasmo a gente pode ter por um candidato desconhecido? Cristiano Machado ia ser sacrificado, espécie de Cristo político. Seu partido o havia abandonado quase por completo, pelo menos no Rio Grande do Sul. Mais uma vez se ia provar como era fantasticamente poderoso o fascínio que o “homenzinho de São Borja” exercia sobre muitos daqueles líderes do P.S.D.
No dia das eleições, quando chegou a sua hora de votar, ele próprio, Tibério Vacariano, hesitou por um instante dentro da cabina. (Não se habituava com o voto secreto, que chamava de “voto de covarde”.) E para não “embromar” a marcha da eleição, soltou um “que bosta!” e, num impulso sentimental, votou em Getúlio Vargas. Deixou a cabina meio desenxabido, como quem sai dum quarto de banho completamente nu para entrar inadvertidamente numa sala cheia de senhoras.

XXXVII
Getúlio Vargas tomou posse do cargo de Presidente da República em janeiro de 1951. No inverno desse mesmo ano Tibério Vacariano foi ao Rio de Janeiro e tentou mais uma vez reaproximar-se do Homem. Viu, porém, todas as suas tentativas frustradas, tanto as diretas como as indiretas. Ante essa repulsa obstinada, teve as mais variadas reações. A primeira foi de revolta: “Pois o pitoco que se lixe! Posso viver muito bem sem a amizade dele!” A segunda foi de estranheza: “Ué! Dizem que o Getúlio é um homem frio, sem rancores, perdoou até ao João Neves da Fontoura pelo Acuso... Que é isso comigo?” Houve depois um momento em que se sentiu vítima duma injustiça. (“Andariam me intrigando com o Presidente?”) A seguir consolou-se com a idéia, ou esperança, de que um dia o Gegê havia de precisar dele, Tibério, e seria então o primeiro a mandar-lhe emissários de paz. A todas essas o senhor de Antares sentia-se ferido no seu amor-próprio, e arrependia-se de haver-se rebaixado a pedir a Getúlio Vargas que o recebesse de novo. Isso produzia nele um constrangimento não só perante todos quantos sabiam da estória como também perante si mesmo. O diabo era que se ele, Tibério, era indulgente e compreensivo consigo mesmo, os seus desafetos, ao contrário, jamais lhe perdoavam os erros e além disso tinham uma memória de elefante.
Da janela de seu apartamento da Av. Atlântica às vezes ficava olhando para o mar, pata aquele belo mar com o qual, em todos os seus muitos anos de Rio de Janeiro, jamais tivera a menor intimidade. Gabava-se até, com um certo orgulho de campeiro, de nunca ter sequer molhado as pontas dos dedos dos pés na água do oceano. Nascera e criara-se à beira do Uruguai, onde vezes sem conta nadara, pescara e navegara de caique. Nas suas terras não podia ver lagoa, açude, sanga ou arroio que não sentisse gana de pelar-se, atirar-se nágua e dar umas braçadas ou uns mergulhos. “Sou peixe de água doce” – costumava dizer. E agora que não era mais persona grata do governo, que deixara de ser vaqueano nos labirintos daqueles ministérios e repartições públicas, chegava à conclusão de que peixe de rio não pode mesmo viver em água salgada.
Poucos dias antes de voltar para casa, Tibério Vacaria-no foi por puro acaso apresentado a um jovem industrial chinês, recém-chegado dos Estados Unidos, um certo Mr. Chang Ling, que ele passou logo a chamar de “seu Jango Lins”. Tratava-se de um dos muitos homens de negócio que tinham conseguido fugir de Changai antes de esta cidade cair em poder dos comunistas. Trouxera consigo a família, os seus móveis mais preciosos, uma carta de crédito (possuía no Chase Manhattan Bank de Nova Iorque uma conta Pessoal com um apreciável saldo credor) e o seu know-how. Queria instalar no Brasil uma fábrica de óleos comestíveis de soja e amendoim.
Mal viu na sua frente aquele homem franzino, baixo e amarelento– Tibério teve uma inspiração e convidou-o para almoçar no Bife de Ouro, juntamente com o seu intérprete, um rapaz brasileiro que sabia inglês, e que andava pajeandò Mr. Ling através do emaranhado da selva carioca. O primeiro prato não havia sido ainda servido e já o Cel. Vacariano, voltando-se para o intérprete, pedia:
– Diga aí pro seu Lins que descobri o lugar ideal para a fábrica dele.
A tradução foi feita. O chinês sorriu e quis saber onde era.
– Conta pro moço – continuou o Cel. Tibério – que sou meio dono duma cidade do Rio Grande do Sul que tem nome de estrela (ouvi dizer que chinês gosta muito de estrela) nas barrancas do Rio Uruguai, justamente na zona da soja.
Fez uma pausa para que o intérprete traduzisse as suas palavras para aquela língua bárbara. O chinês continuava a sorrir.
– Diga também que sou plantador de soja, e da boa! E se ele quiser estabelecer o negócio dele em Antares, eu arrumo tudo: o terreno para a fábrica, material de construção a preço baixo e mais ainda: cinco anos de isenção de impostos municipais! O prefeito da cidade é meu sobrinho e eu tenho na mão a Câmara de Vereadores.
O chinês escutou, sacudindo de quando em quando a cabeça, a enumeração de todas essas promessas e depois disse algo em voz baixa ao intérprete, que se voltou para o maioral de Antares :
– Mr. Ling quer saber das suas condições.
– As minhas condições? Ora, quero apenas contribuir para o progresso industrial da minha cidade, que diabo!
Na realidade pretendia fazer o chin assinar oportunamente um compromisso de compra de toda a sua safra anual de soja, esperava vender-lhe um de seus próprios terrenos para a construção do edifício da fábrica e, se possível, ainda por cima ganhar de presente algumas ações da companhia, em troca de todos esses “favores”.
Enquanto o tradutor falava, Mr. Chang Ling tomava notas numa pequena caderneta de capa azul, que depois guardou no bolso do casaco.
– Então? – perguntou Tibério Vacariano, olhando para o intérprete, que a seguir confabulou em voz baixa com o chinês.
– Mr. Ling lhe agradece por tudo, inclusive pelo delicioso almoço, e declara que, quanto ao negócio, vai ainda pensar.
Tibério Vacariano pagou a conta do restaurante com a certeza de que havia perdido naquele encontro tempo e dinheiro. Enganava-se. Três meses mais tarde Mr. Chang Ling apareceria em Antares com a mulher e seus cinco filhos e mais três compatriotas seus, especialistas na fabricação de óleos comestíveis.
Menos de um ano mais tarde inaugurava-se em Antares a Cia. de Óleos Sol do Pampa, da qual Tibério Vacariano possuía 500 ações que não lhe haviam custado um vintém. Conseguira impingir ao chinês um de seus muitos terrenos situados na periferia da cidade. Tinha agora comprador certo para toda a sua produção de feijão-soja. Mas manda a verdade que se diga que cumpriu todas as promessas que fizera no Bife de Ouro ao “seu Jango Lins”.

XXXVIII
Em dezembro daquele ano de 1951, aconteceu a Tibério algo que lhe mudou a vida por completo, fazendo-o esquecer as humilhações a que o Presidente o submeteu.
Um dia o telefone de sua casa tüintou, e ele pegou o fone, já irritado, como sempre, pois não se havia habituado ainda àquela engenhoca, pela qual tinha uma má vontade atávica.
– Pronto! – gritou como quem espera ouvir e dizer desaforos.
– É o Cel. Tibério? – perguntou uma voz melíflua de mulher.
– Quem deseja falar com ele?
– A Venusta.
Ao ouvir o nome da caftina, Tibério olhou instintivamente dum lado para outro para verificar se havia alguém mais na sala ou proximidades. Pigarreou e disse-.
– Um momento. – Largou o fone e foi fechar a porta. Não haveria perigo de outra pessoa escutar a conversação, pois aquele era o único aparelho existente no casarão. – Pronto. Pronto!
– É a Venusta.
– Já ouvi! Mas você não devia telefonar pra minha ca,sa, ora essa! Já lhe disse isso mil vezes.
– Não fique brabo, coronel. É um assunto importante. Tenho um presente de Natal pro senhor. ..
Ele escutava, desconfiado. Aquilo só podia ser um subterfúgio para um pedido de dinheiro. Havia anos ele ajudara Venusta, uma prostituta aposentada, a montar o bordel mais fino de Antares. emprestando-lhe dinheiro a juro baixo e prazo longo.
– Que negócio é esse de “presente”? – indagou, cauteloso.
– Eu não me esqueço do que o senhor fez por mim, Cel. Tibério.
– Está bem, está bem, fale baixo. E não precisa pronunciar o meu nome.
– Estou sozinha aqui em casa. Descobri a rapariga mais linda do mundo. Dezessete aninhos, coronel! O senhor vai ficar maravilhado.
– Novinha, hem? – Soltou uma risada áspera de ta-bagista. – E você vai enrolar a menina em papel celofane e memandar por portador, hem? Quanto vai me custar essa brincadeira?
– Não estou pensando em negócio. – Como Venusta ceceava, a palavra negócio soou quase como negófio. – Não sou mal-agradecida.
– Como é a moça? Ruiva? Muito branca? Morocha?
– Morena jambo. Mas não adianta descrever pelo telefone. O senhor tem que ver ela pessoalmente.
– Onde está a bichinha?
– Aqui comigo, guardadinha no refrigerador – disse a alcoviteira com uma risadinha despudorada. – Olhe, coronel, a menina caiu na vida não faz nem uma semana.
Logo que botei o olho nela pensei no senhor. É órfã de pai e vivia com a mãe. Agora está comigo há dois dias e não foi mais pra cama com ninguém. Não deixei. Reservei ela pro senhor. Venha ver. Se não gostar, fica o dito pelo não dito.
– E se eu gostar?
– É sua.
– Está bem. Hoje de noite apareço aí.
Ao jantar tomou apenas uma sopa leve. Depois disse à mulher que ia ao clube e provavelmente voltaria tarde. Saiu de casa a pé, mas entrou num carro de aluguel do outro lado da praça e pediu ao motorista que o deixasse à esquina duma determinada rua, na parte baixa da cidade.
O bordel da Venusta ficava numa ruela pouco iluminada e tinha nos fundos do seu pequeno quintal um portão que dava para um terreno baldio – espécie de entrada secreta ou pelo menos discreta, geralmente usada pelos senhores respeitáveis da cidade que queriam entrar naquela casa de rendez-vous sem serem vistos. Tibério apertou o botão da campainha da porta dos fundos. Venusta em pessoa veio recebê-lo, recendente a Tabu, com um vestido de algodão estampado, a cara exageradamente pintada, os cabelos oxigenados de fresco. Era uma cinqüentona de carnes balofas e muito alvas, que Tibério tinha levado algumas vezes para a cama nos tempos em que ela era moça e não de todo destituída de atrativos. Subiram uma pequena escada e entraram num corredor estrategicamente mal-iluminado e por fim pararam diante da porta dum quarto.
– A menina está lá dentro à sua espera, coronel. Ela já sabe quem o senhor é e está até meio nervosinha.
– Mas eu ainda não sei direito quem ela é...
– Ora, ninguém de circunstância. O pai era ferroviário e morreu esmagado por um trem, há uns quatro anos... acho que o senhor se lembra do fato. A mãe costura pra fora. Gente muito pobre. Um caixeiro-viajante fez mal pra menina e desapareceu. A mãe descobriu a coisa e botou a boca no mundo. A moça então veio pra cá, mas ninguém ainda sabe que ela está comigo. Acho que é fácil acomodar a velha com uns cobres. Deixe a coisa por minha conta.
– Essa estória está me cheirando mal. A menina é menor, a mãe pode me incomodar, fazer chantagem. Não sei... Tenho muitos inimigos. Não sei... Nunca falta um rábula filho da mãe pra pegar uma causa dessas e me extorquir dinheiro... Não sei.
Ficou ali na frente da porta murmurando “não sei... não sei...”. Mas seu corpo sabia, da cabeça aos pés, sabia com uma intensidade que aumentava com o passar dos minutos, o sangue batendo-lhe com força nas fontes, toda a sua virilidade já agressivamente esculpida, intumescida e latejante.
– Está bem – disse por fim, com voz opaca. – Já não estou pensando mais com a cabeça, mas com outra parte do corpo. Seja o que os anjos quiserem.
Venusta abriu a porta e ele penetrou no quarto como um Miúra que entra na arena.

XXXIX
Mais tarde, naquela mesma noite, no leito conjugai, com Lanja a seu lado, ressonando tranqüilamente, Tibério recordou a hora que passara com a rapariga. Que fêmea mais bem-feita de corpo! Uma potranca de raça – cabocla de pele acetinada cor de areia úmida, seios miúdos, quadris estreitos, delicada como uma flor... Em cima dela sentira-se com vinte anos menos. E, depois de descarregar a sua primeira e furiosa onda de desejo, ficara ofegante e feliz, deitado ao lado da criaturinha.
– Onde nasceste?
– No Cacequi.
– Como é o teu nome?
– Me chamo mesmo Cleopatra, mas me tratam por Cleo.
– Bonito nome, Cleo...
E então ele pusera-se a apalpá-la devagarinho, para sentir nos dedos a contextura daquela epidemie, a elasticidade daqueles músculos, o desenho daquele corpo. Chegara a inventar um brinquedo:
– Nunca ouviste a estória da Salamanca do Jarau?
– Nunca.
– Pois era uma vez um campeiro, de nome Blau Nunes. Tinha aprendido com o fantasma dum padre renegado o caminho da furna do Jarau, onde existia um tesouro escondido, e guardado pelos bichos e assombrações mais horríveis. ..
– Credo!
– Faz de conta que aqui vai o Blau Nunes...
Com os dedos indicador e médio da mão direita imitou as pernas dum homem a caminhar. Blau Nunes percorreu o braço e o ombro de Cleo, devagarinho, pisando forte.
– De repente Blau avista um cerro...
E os dedos de Tibério escalam o seio direito de Cleo e quando chegam ao cume dessa macia elevação brincam com seu mamilo – “Uma pedra?” – e a rapariga se retorce, cosquenta. “Ai! Ai! Ai!”
– Então Blau Nunes desce do cerro e começa a andar por uma linda várzea...
E agora os dedos de Tibério caminham pelo ventre levemente côncavo da menina, com lenta volúpia.
– De repente Blau Nunes avista um capão...
– Não!
E ela ergue as pernas, cruza as coxas, num movimento instintivo de defesa, procurando esconder sua furna. Mas Blau Nunes continua a andar... lá dentro está a entrada da Salamanca, do tesouro...
E os dedos de Tibério – antes, as pernas de Blau Nunes – penetram no capão e encontram a boca da furna. “Ai!” – suspira ela. – “Ai!”. Blau Nunes está alucinado.
– Onças de ouro! – exclama Tibério. – Dobrões de ouro! Jóias!
E Cleo se retorce toda, rindo, excitada.
Tibério Vacariano levantou-se num prisco. Lanja acordou, alarmada.
Que foi, Tibé? Estás sentindo alguma coisa?
Sentado na cama, meio ofegante, ele murmurou:
– Não é nada. Perdi o sono.
– Decerto tornaste muito café.
– Pois é. O calor também está brabo. Mas não é nada, Lanja. Dorme. Eu me arranjo...
Levantou-se, acendeu um cigarro, começou a passear pela casa, de pijama, sem destino certo. A imagem de Cleo não lhe saía da mente. O cheiro dela estava nas suas narinas, nos seus dedos, na sua pele, entranhado em todo o seu corpo. Abriu a janela que dava para a praça e debruçou-se nela. Vaga-lumes lucilavam por entre árvores e arbustos. Ti-bério olhou para o céu e viu o Cruzeiro do Sul bem por cima da Matriz. O vento morno chegava-lhe às narinas com um cheiro de campo queimado, de mistura com recordações de infância e adolescência.
Ali na janela o Cel. Vacariano pensou na sua idade. Cinqüenta e sete na cacunda! Não se podia dizer que fosse já um velho, mas moço, moço mesmo não era mais. Imaginou Cleo instalada na pensão da Venusta, recebendo qualquer homem que tivesse dinheiro para pagar o preço que a caftina nedia pelo seu esplêndido corpo. A idéia lhe era intolerável.
Voltou para a cama e só conseguiu adormecer madrugada alta. Levantou-se às oito horas, sentindo-se um tanto desmoralizado por ter “queimado o assado”, pois entre seus hábitos supersticiosos estava o de saltar da cama antes do sol nascer.
A primeira imagem que lhe veio à cabeça ao despertar foi a de Cleo, como a figura dum sonho bom.
Tornou a procurar a rapariga na noite daquele dia. E noutra manhã, barbeando-se no quarto de banho, conversou em silêncio consigo mesmo, puteou-se afetuosamente, examinou a própria cara no espelho, com um cuidado entre realista e tolerante. “Bonito sei que não sou, mas – que diabo! – há no mundo gente mais feia que eu.”
Tudo aquilo que sentia com relação à moça – refletiu – devia ser conseqüência da idade crítica. Sim, os homens tinham também o seu climatèrio. Ouvira esta palavra pela primeira vez da boca de seu médico carioca. O seu climatèrio finalmente chegara, e com que força!
Decidiu fazer de Cleo sua amante exclusiva, montar casa para ela. Convenceu a mãe da rapariga a vir morar com a filha, arranjou tudo com a colaboração da Venusta. Quando um novo ano entrou o Cel. Vacariano tinha o que em língua de advogado se chama de “mulher teúda e man-teúda”. Sentia-se feliz e remoçado. Se Lanja desconfiava de alguma coisa, pelo menos não dava nenhuma demonstração disso.
E agora, cada vez que Tibério queria fazer amor com a amante, bastava dizer-lhe: “Vamos brincar de Salamanca?” Blau Nunes passou a ser uma personagem importante na vida de ambos. E muitas vezes Tibério Vacariano pensou num remoto antepassado seu que, segundo uma lenda da família, tinha um dia entrado na furna encantada do Jarau e andava sempre com as guaiacas cheias de onças de ouro.

XL
Em meados do inverno de 1954, Tibério Vacariano passou duas semanas no Rio, tratando de negócios. Revisitou o cenário de suas aventuras estado-novistas, reencontrou amigos e conhecidos, ouviu boatos e confidencias em torno da situação política nacional, e um dia esteve a pique de quebrar a cara dum sujeitinho que fingiu não reconhecê-lo na rua. (O calhorda devia-lhe favores!)
De volta a Antares, contou as “novidades” aos amigos da roda de chimarrão da Imaculada, e uma noite visitou com a mulher a casa dos Campolargos, pois pelo telefone prometera a Quita, sua “inimiga íntima”, um relatório verbal sobre sua viagem “à Corte”, do ponto de vista político - que era o único que realmente interessava a mulher de Zózimo.
Quando estavam os dois casais acomodados na sala de visitas dos Campolargos, sob o olhar vigilante do falecido Benjamim, ali presente num retrato a óleo de meio-corpo – os homens acenderam os seus palheiros, após o café, e as mulheres apanharam os seus trabalhos de tricô, baixaram a cabeça e puseram-se a movimentar as agulhas.
Durante alguns minutos falou-se do rigor daquele inverno – a umidade agravava o reumatismo de D. Briolanja e não fazia nenhum bem à asma de D. Quitéria – e depois cavou-se um silêncio, seguido da esperada pergunta da senhora da casa:
– E então... como vai o teu “amigo”?
Tibério, as mãos trançadas contra o volumoso ventre, as pernas abertas, como se estivesse cavalgando a poltrona e não sentado nela, disse:
– O Getúlio está jodido.
– Tibé! – exclamou Lanja, erguendo brusca a cabeça, as orelhas subitamente avermelhadas. Zózimo sorriu ca-nhestro. Quita, porém, soltou uma risadinha em que se notava um leve ronrom de gato. Costumava dizer a amigos e familiares que não tinha medo nem vergonha de palavras.
– Diga por que, Tibé – pediu ela. – Mas não me venhas com potocas.
– Ué!? Por que eu havia de mentir?
– Sempre puxas brasa para a tua sardinha pessedista que, por sinal, já está podre.
Tibé sorriu, remexeu-se na cadeira, cocou disfarçada-mente uma das virilhas e começou:
– O governo está enfrentando uma crise brabíssima. Acho que este vai ser ou, melhor, já está sendo o pior ano de toda a vida política do Getúlio.
– Começou com o manifesto dos coronéis – disse Zózimo, enquanto Tibé era sacudido por um repentino acesso de tosse bronquítica, que lhe tingiu a cara duma escura purpura, fazendo-o lacrimejar. Quando pôde de novo falar, disse com voz meio apagada:
– Deve ter sido duro para o Homem demitir o seu filho político e espiritual do Ministério do Trabalho. A oposição exigiu a cabeça do Jango Goulart...
Zózimo lembrou a campanha que desde o início do ano fazia o Estado de São Paulo, que chamava Jango de alter ego de Getúlio Vargas e acusava-o de chefe do “peronismo brasileiro”.
– E por acaso não será? – perguntou Quita. – O Getúlio e o Jango é que encorajam os operários a fazerem greves e ameaças. Não se tem mais sossego neste país. E depois, onde se viu fazer um aumento de 100% nos salários mínimos?
– Ó Quita – interveio Zózimo, com sua habitual cordura. – Como é que os trabalhadores podem viver com esses salários de fome?
– Vivem – replicou a esposa. – Deus é grande. Vivem e se reproduzem como coelhos.
– Bom – continuou Tibério – o que a oposição afirma e certos jornais de responsabilidade glosam, é que o Getúlio mesmo provoca toda essa inquietação social para criar um clima de confusão do qual ele pessoalmente possa tirar proveito. Dizem que está procurando pretextos para evitar as eleições presidenciais e continuar no poder.
Quitéria ergueu a cabeça:
– A solução mais decente, por legal, foi a que propôs na Câmara a bancada da U.D.N. O impeachment. E se a coisa não saiu foi porque os deputados do teu P.S.D., Tibé, se juntaram com os do P.T.B. para derrotar a moção ude-nista. Te lembras da mensagem que o Getúlio apresentou ao Congresso, em março passado? Foi dum nacionalismo tão exagerado, que assustou meio mundo. Com esse seu anti-americanismo, ele vai acabar levando o Brasil pro lado de Moscou...
– Esperem! – exclamou Tibério. – Vocês não sabem do melhor... ou do pior. Sei de fonte segura que o Getúlio anda apático, desinteressado de tudo e de todos, mal lê os papéis que assina, cochila nas audiências e nas reuniões do Ministério. Enfim, não é o mesmo homem de outros tempos.
– Está velho... – murmurou Quita, de cabeça baixa, como se dissesse um segredo às suas agulhas e ao seu fino »o de lã.
– Não é isso – protestou Tibério. – Afinal de contas ele tem só setenta e dois anos... que diabo! O que está acontecendo é que o Homem anda desiludido, desencantado. Descobriu finalmente que não tem amigos, que está cercadode aproveitadores sem escrúpulos, com raras exceções.
– Quem semeia ventos – sentenciou a dona da casa – colhe tempestades. O diabo é que nesse caso a tempestade cai sobre a cabeça de todos os brasileiros.
– A U.D.N. – prosseguiu o Cel. Vacariano – desde o princípio do ano abriu as suas baterias contra o Catete. Vocês têm lido os artigos do Carlos Lacerda? Que panfletário! Que mestre da violência verbal! Seus escritos estão demolindo pouco a pouco o governo do Getúlio. Palavra de honra, se esse moço tivesse dito na imprensa sobre a minha pessoa a metade do que disse sobre o Getúlio, eu tomava um avião, ia ao Rio e metia-lhe um balaço em cada olho, palavra.
Sem erguer a cabeça, Quita troçou:
– Deixa de prosa, Tibé. O Lacerda não ia gastar pólvora em chimango.
– Mas não acredito – observou Zózimo – que o Getúlio tenha obtido qualquer resultado financeiro pessoal com esses negócios de crédito irregulares do Banco do Brasil e essas outras indecências de que está sendo acusado pela U.D.N.
Tibé reacendeu o palheiro e disse:
– Em matéria de dinheiro o Getúlio é um homem honesto. Mas finge que não vê certas safadezas que se fazem a seu redor. A sua técnica é a de corromper para governar. E nunca se roubou tanto, nunca se fez tanta negociata à sombra do Getúlio e em nome dele como neste seu atual quatriênio. Parece que no Catete todo o mundo está dançando uma espécie de galope final.
Neste ponto Quitéria ergueu os olhos sem mover a cabeça, e esse seu gesto eqüivalia a dizer: “Olhem só quem está falando em negociatas...”
Tibério põe-se de pé, subitamente animado-.
– Ah! Ainda não contei o melhor a vocês. A grande figura desta República é o negro Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do Getúlio.
– Dizem que está rico... – murmurou Lanja.
– Milionário – reforçou Quita. – Que vergonha! Temos no Brasil uma Eminência Negra!
– E nesta infeliz República – prosseguiu Tibério – o Gregório tem mais força que muito ministro. Escutem esta, que é muito boa... Um dia tive de ir ao Catete...
– Não me digas que foste outra vez procurar o Ge-túlio pra fazer as pazes com ele! – interrompeu-o a dona da casa.
– Deixa o Tibé falar, Quita – pediu Zózimo.
– Qual pazes qual nada! Vamos falar com franqueza. Se o governo do Homem está por um fio, a troco de que santo havia eu de entrar agora nessa canoa furada? Bom, mas é que precisei movimentar um requerimento e fui ao Catete me entender com um oficial de gabinete com quem tenho ainda boas relações. Entrei no palácio, me meti por uns corredores meus velhos conhecidos e de repente, sem saber como. me vi na sala onde o Gregório costuma dar as suas audiências... E que vejo? Lá estava o crioulo como um potentado africano, sentado numa cadeira, com uma toalha amarrada ao pescoço, um barbeiro escanhoando o rosto dele, uma manicura ao lado polindo as suas unhas... O negrão estava cercado pelos seus pistoleiros, moços de recado, enfim, pelos membros da sua corte. Quando me viu entrar, nem se dignou a me dar bom dia. Também fingi que não tinha visto ele e fiz meia volta. Um de seus apaniguados estava dizendo qualquer coisa sobre o João Goulart e, antes de sair, ouvi o Gregório dizer em voz alta, com um ar de superioridade: “O Jango é um premário!”
As mulheres pareciam mais entretidas nos seus trabalhos de agulha que nas estórias de Gregório Fortunato. Mas Zózimo sacudiu a cabeça dum lado para o outro, exprimindo a sua consternação ante tudo aquilo.
– E o- pior – continuou Tibério – é que senadores e outros figurões da República adulam o negrão, mandam-lhe presentes e bilhetinhos com pedidos.
– Pobre do Dr. Getúlio! – suspirou Lanja, que sem-pre tivera uma afeição quase maternal pelo homenzinho de São Bor ja.
O olho bom do retrato de Benjamim Campolargo parecia contemplar o grupo que ali estava na sala, com a mesma fixidez meio perplexa com que, havia quase trinta anos, fitara uma escarradeira de louça pintada, no dia em que o jovem deputado Getúlio Vargas, com sua lábia e a sua simpatia pessoal, persuadira-o a apertar a mão de seu arqui-inimigo, Xisto Vacariano. Como se também tivesse pensado nesse remoto acontecimento, Tibério ergueu a cabeça, mirou demoradamente o retrato do patriarca dos Campolargos e, sem tirar o cigarro da boca, disse:
– Este mundo velho dá cada voltai
Nenhum dos presentes contestou estas palavras.

XLI
Foi na casa da amante que, em princípios daquele frio e chuvoso agosto, Tibério Vacariano ouviu, pelo rádio que tinha sobre a mesinha de cabeceira, uma notícia urgente que o deixou estarrecido. No Rio de Janeiro dois desconhecidos haviam atentado contra a vida de Carlos Lacerda, à frente de sua casa, na Rua Toneleros, tendo assassinado um oficial da aeronáutica, o Maj. Rubens Florentino Vaz, que estava em companhia do diretor da Tribuna da Imprensa. Lacerda recebera num dos pés um ferimento sem gravidade, e os assaltantes haviam fugido.
Tibério, que estava deitado ao lado de Cleo, conduzindo Blau Nunes numa das suas andanças ereto-anatômicas pelo corpo da rapariga, ergueu-se rápido, exclamando: “A Ia fresca! A Ia fresca 1” E assim nu como estava, sentou-se na beira da cama para escutar o resto da notícia. Lacerda tinha visto ambos os assaltantes, que haviam escapado num automóvel. O estúpido crime causara indignação geral e havia já grande agitação nos meios políticos, militares e populares do Rio de Janeiro.
“É o fim do Getúlio”‘ – refletiu Tibério enqu?nto se vestia, depois duma excursão quase frustrada à furna do Jarau, da qual aquela vez trouxera não dobrões de ouro, mas escassas moedas de cobre azinhavrado. “Agora estão perdidos. . . Mexeram com os milicos. . . É o mesmo que bolir em casa de marimbondos. E o fim.” E tocou para casa.
No dia seguinte o assassinio do Maj. Vaz e o atentado contra a vida de Carlos Lacerda eram o assunto único na “rodinha da Imaculada”. Mais notícias haviam chegado. Um dos telegramas resumia um editorial do jornal O Globo: Getúlio Vargas atingiu ontem, pela força dos imprevistos, um dos pontos decisivos da sua carreira política. Ou S. Ex.a reconhece com suas providenciais antenas esse clamor de justiça que rompe de todas as bocas, não se fazendo nem por omissão cúmplice de seus amigos ou com estes submerge na renúncia aos deveres contraídos com o povo nas urnas em 1950. Não lhe restam senão poucas horas para optar.
Os membros habituais da “rodinha” estavam excitados. Logo que Tibério chegou à farmácia – o chimarrão se tomava a um canto, no fundo do laboratório – perguntas lhe foram atiradas, como dardos. Que era que ele pensava da situação? Quem tinha sido o mandante do atentado? Que aconteceria agora que dois mil oficiais aviadores se haviam reunido no Clube da Aeronáutica para estudar o caso e tinham decidido conduzir um inquérito próprio, paralelamente ao que estava sendo feito pelo Ministério da Justiça?
Tibério sentou-se, pegou a cuia, procurou esquentar ao seu contato as mãos enregeladas, deu o primeiro chupão na bomba de prata, provou o mate e finalmente disse com ar profético :
– Aposto como o Getúlio não passa o próximo Natal no Rio. Antes de dezembro está de volta à estância do Itu, deposto pelas Forças Armadas!
– Mas achas que foi ele o mandante do atentado?
– Não. Conheço bem o Presidente. Não seria capaz duma barbaridade dessas. Estou certo de que alguém do seu grupo de áulicos mandou fazer o serviço no Lacerda com a intenção de ser agradável ao Velho. Um dos mandatários errou a pontaria e matou o pobre do Maj. Vaz. Serviço mui porco.
O proprietário da farmácia, que aviava uma receita, metido no seu imaculado guarda-pó branco, disse em voz alta:
– Deus escreve direito por linhas tortas.
– Torta era a pontaria do bandido – retorquiu Tibério. – E não vejo por quê Deus havia de ser mais do lado do Lacerda que do major. Reconheço que às vezes Deus tem também uma pontaria miserável, Ele que me perdoei
– Mas quem foi o mandante? – tornou a perguntar um dos amigos.
Aventaram-se nomes. Benjamim Vargas? Gregório Fortunato? Luterò Vargas? Quem? Quem?
Tibério devolveu a cuia ao companheiro que estava perto da chaleira dágua quente, e, com um sorriso pícaro, improvisou:
– Hoje cedinho escrevi o nome do autor do atentado num pedacinho de papel que botei dentro dum envelope lacrado e depois fechei no cofre. Vou abrir esse envelope no dia em que o pessoal da Aeronáutica agarrar os criminosos e descobrir o nome do mandante.
Houve um silêncio geral, pois as “farsas” do Tibério eram demasiadamente conhecidas daquela companhia.
– Por que não nos dizes agora esse nome? – perguntou um dos mais assíduos membros do grupo.
– Se vocês quiserem fazer uma aposta comigo, que cada um escreva um nome num papel, meta esse papel num envelope e depois entregamos todos os envelopes ao gerente do Banco da Província para serem abertos no dia em que a Justiça divulgar a identidade do autor intelectual do atentado. Aposto com cada um de vocês dois bois Poleangos.
– Tu de novo com os teus Poleangos! – exclamou Zózimo, com ar cansado. – Aposto como estás blefando, isso sim. Mas não vou pagar pra ver.

XLII
Lucas Faia, diretor de A Verdade, tinha mandado instalar uma sereia à frente da redação de seu jornal. Sempre que havia uma notícia importante relativa ao crime, ele fazia funcionar essa sereia e em breve atraía uma pequena multidão à frente do quadro-negro em que ele pregava um papel com os dizeres do último telegrama recebido pelo jornal. Foi assim que a população de Antares acompanhou dia a dia, quase hora a hora, o desenvolvimento das investigações.
Um membro da guarda pessoal do Presidente da República tinha sido identificado como o chefe dos assaltantes. Os oficiais das Forças Aéreas haviam publicado uma nota violenta contra o governo. Na Câmara, deputados da oposição pronunciavam veementes discursos sugerindo o afastamento de Getúlio Vargas da Presidência da República. A guarda pessoal do Presidente tinha sido dissolvida. O “tenente” Gregório Fortunato havia sido submetido a um longo interrogatório. As investigações da Aeronáutica continuavam numa fúria febril mas metódica. Fora finalmente descoberto e preso o motorista do carro’ que dera fuga aos assaltantes logo após o crime. Havia agitações populares nas ruas do Rio de Janeiro. Tinha-se a impressão de que grande parte do povo responsabilizava indiretamente Getúlio Vargas pelo crime.
O noticiário de rádio do dia 12 reproduzia trechos do interrogatório de Gregório que, a certa altura, dissera: “Doutor, eu sou um negro muito posudo. Sou muito esquisito e só me meto naquilo que me diz respeito”. À pergunta “Você meteu a mão nisso, Gregório?” respondeu: “Não. Tenho matado peleando. Não sou homem que possa ser assalariado para matar alguém”. O noticiário informava também que, nos intervalos do interrogatório, Gregório lia o Fouché de Stefan Zweig, o seu livro predileto.
– Além de bandido, pernóstico! – comentou Tibério vacariano.
Na tarde do dia 14, a sereia de A Verdade tornou a soar para anunciar a notícia de que o Gen. Eurico Gaspar Dutra achava aconselhável a renúncia de Vargas. Houve protestos da parte de populares getulistas à frente da redação do diário antarense. Guardas da polícia municipal tiveram de intervir para separar um udenista e um trabalhista que, depois de se filho-da-putearem abundantemente, estavam já de revólver na mão.
Passaram-se os dias. Pelos noticiários dos jornais e das estações de rádio, ficava claro que as investigações da polícia tinham recuado para um segundo plano e quem realmente conduzia a busca dos criminosos eram os oficiais das Forças Aéreas. Um dos suspeitos tinha sido localizado, caçado e acuado como um animal, numa zona pantanosa, por cento e setenta membros da Aeronáutica, e fora capturado vivo ao cabo de vinte horas de implacável perseguição.
Dentro em pouco chegava-se à conclusão de que o mandante do atentado fora mesmo Gregório Fortunato, o anjo da guarda negro do Presidente.
Uivou a sereia de A Verdade e lá estava no quadro-negro uma notícia sensacional. O Ministro da Aeronáutica achava que os políticos tinham meios legais para obrigar o Presidente a deixar o poder. O Governador do Estado de Pernambuco manifestava-se também a favor da renúncia de Getúlio Vargas. O Ministro da Guerra havia determinado prontidão rigorosa para o Exército. No Rio tinham curso os boatos mais desencontrados.
Num discurso feito em Belo Horizonte, havia menos de duas semanas, Getúlio Vargas declarara que não renunciaria, e que havia de cumprir o seu mandato até ao fim.
No dia 22 de agosto um grupo de oficiais das Forças Aéreas encabeçado pelo Brig.ro Eduardo Gomes publicou um manifesto em que se exigia a renúncia do Presidente da República.
Getúlio, porém, recusava abandonar o seu posto, dizendo-. “Daqui só saio morto. Estou muito velho para ser desmoralizado e já não tenho, razões para temer a morte”.

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